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And in the end...

Diego Rivera, "Vendedora de Flores", 1949.

Escrevi pouco neste blog em 2010. Na verdade, escrevi muito neste ano que finda, porém outros gêneros de escrita, pretensamente "mais sérios", publicados em outros lugares. Na verdade, acho que tenho estado tão pesado, que não consigo mais escrever textos leves, como os que usualmente publicava por aqui. Mas quem sabe, em 2011, eu volte à velha forma e consiga produzir posts que tenham, pelo menos, uma ínfima fração da inteligência e da sensibilidade dos pequenos grandes textos de Eduardo Galeano, em "O Livro dos Abraços" (oh, santa pretensão!)? Mas enquanto, este dia não chega compartilho aqui - com os abnegados que ainda acompanham este blogueiro relapso - um textinho genial desse delicioso livro do escritor uruguaio.

O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso que afinal Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha,, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.
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A Origem do Mundo.

Jackson Pollock, Sem Título, 1951.

De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

Nuno Júdice, "A Origem do Mundo".
In: Meditação sobre Ruínas. Lisboa, Livros Quetzal, 1995.

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Auto-Retratos

"Auto-Retrato", Francis Bacon, 1971.

Auto-Retrato

Está incompleto. Ainda se vê metade do rosto. Sabemos
como se acentua junto dos olhos a mesma sombra.
Os lábios fecham-se; à sua volta, um halo apenas: continuam
afastadas as pregas da cor, o rumor trazido pela luz. Há um contorno
que pode tornar-se nítido. É tudo o que se procura. Depois esperamos
que venha a respiração ao encontro dessa superfície
até se encontrar um nome. É o meu.
Se quiserem podem esquecê-lo agora.

(Fernando Guimarães, In: Poesia Completa - Vol. 1. Porto, Edições Afrontamento, 1994)
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A Casa Onde às Vezes Regresso.

Amadeo de Souza-Cardoso, "Cozinha da Casa de Manhouce", Óleo sobre Madeira, 1913.

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo.

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.

(Mendonça, José Tolentino. A que distância deixaste o coração. Lisboa, Assírio&Alvim, 1998).
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Ah, a rotina...

Abel Manta, "Lisboa e o Tejo" (1935)

Rotina de final de semestre letivo: trabalhos e provas para corrigir, alguns congressos para participar, artigos para finalizar, enfim, as tarefas habituais para garantir o vinho nosso de cada dia e para atender ao fordismo intelectual das instituições de fomento à pesquisa (tudo pelo DataCAPES!). Por conta disto, o "Abobrinhas" tem sido deixado meio de lado nestas últimas semanas. Cheguei a começar a escrever um post sobre o Saramago - viu, Maraíza? -, mas os dias de 24 horas têm sido curtos para mim e ele ainda está a aguardar a devida finalização. Prometo voltar à ativa em breve - certo, Mariana? - e, enquanto isto, vou deixando por aqui o belíssimo "Para além do Cabo Não", o segundo dos "Três poemas portugueses," do Eduardo Alves da Costa.

Para Além do Cabo Não

Perdoa-me, paizinho, por eu
não ser o que tu querias.
Se estivesse em mim, juro
que interrompia o salto sobre o muro
deste meu fluir inconstante,
para que tuas mãos se pusessem calmas
e pudesses gozar tuas certezas.

Mas, se nem mesmo eu
estou certo da Beleza
e com ela trabalho, sem garantia,
vinte e quatro horas por dia!
Sei que meus sapatos estão gastos
e que não fica bem ao bacharel
este papel de saltimbanco.

Não está em mim evitar
o sorriso dos teus amigos,
pousados nos lábios
de retratos mortos; eles,
os que não sabem dos portos
a que minha alma vazia
vai buscar esses nadas
de que é feita a poesia.

Há os que têm filhos loucos,
tartamudos, pródigos, pernetas,
mas logo a ti sucedeu o triste fado
de um filho poeta.
Não há como explicar ao mundo
que não o podes manter nos cordéis,
como a sociedade faz a toda gente.

Se eu fosse gago, era só inventar
um susto na infância, um - sei lá -
um tombo, e as pessoas
logo se acostumavam.
Até os que desfalcam bancos
têm os seus motivos: afinal
lamber um monte de notas
acaba por dar em dissonância.
Mas este mal me vem da infância,
do colégio, algo assim
como brincar às escondidas
com o pênis
ou espreitar pelas frestas.

Juro, paizinho, que preferia
ter mantido em segredo
esta compulsão para o espanto.
esta vertigem epiléptica
em direção ao vácuo.
Diriam: é um vagabundo,
tem lá suas manias, morreu-lhe
a mãe quando criança.
E tu deixavas cair uma lagriminha,
para que a pudessem ver as comadres,
os juízes, a vizinhança,
teus colegas de profissão
e os que, na rua, te
acenam com a mão e têm
sobre mim direitos de cobrança.

Enfim, está feito; já não se pode
evitar que o óvulo engendre este traste
que o mundo insiste em
atirar para um canto.
Só nos resta esperar à beira
do cais que os destroços
de teus planos me cheguem às mãos.

Se tiveres paciência,
ficamos os dois a beber
um caneco, sem mais intenções;
e te prometo fazer
de alguns barris sem fundo
e uns sacos de farinha
uma nau, como as dos velhos tempos,
em que teus antepassados,
tão sem medo, olhavam para o mundo
não com olhos de merceeiros
mas à espera do milagre
que apartasse o não do cabo Não;
e, para além do abismo previsível,
plantasse o sonho
- que é matéria
de que teu filho se compõe.
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O Limite do Fogo.

Pablo Picasso, "Nu Azul", 1902.

Ela é o limite
O alarido
E
O silêncio

A nascente do grande rio
A fonte
O delta
O fruto maduro da árvore antiga

A alegria
E
A loucura
O turbilhão frenético da noite ritual
Ela é a mulher
E
O limite do fogo

(Rui Rasquilho, "O Limite do Fogo". Lisboa, Editorial Presença, 1998).
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Fragmentos de discursos amorosos ou nós que amávamos tanto a (tal da) revolução.

Giuseppe Pellizza da Volpedo, “O Quarto Estado”, Itália, 1901.

E sob os seus pés, continuavam as batidas cavas, obstinadas, das picaretas. Todos os companheiros estavam lá no fundo; ouvia-os seguindo-o a cada passo. Não era a mulher de Maheu sob aquele canteiro de beterrabas, curvada, com uma respiração que chegava até ele de tão rouca, fazendo acompanhamento ao ruído do ventilador? À esquerda, à direita, mais adiante, julgava reconhecer outros, sob os trigais, as cercas vivas, as árvores novas. Agora, em pleno céu, o sol de abril brilhava em toda a sua glória, aquecendo a terra que germinava. Do flanco nutriz brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se, furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grande beijo. E ainda, cada vez mais distintamente, como se estivessem mais próximos da superfície, os companheiros cavavam. Aos raios chamejantes do astro rei, naquela manhã de juventude, era daquele rumor que o campo estava cheio. Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra.

(Émile Zola, “Germinal”, França, 1881).

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Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prestes, burguês.

(Vladimir Maiakóvski, “Come Ananás”, Rússia, 1917).

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A burguesia perdeu o próprio sentido. O proletariado marxista, através de todos os perigos, achou o seu caminho e nele se fortifica para o assalto final. Enquanto as fêmeas da burguesia descem de Higienópolis e dos bairros ricos para a farra das garçonnières e dos clubs, a criadagem humilhada, de touquinha e avental, conspira nas cozinhas e nos quintais dos palacetes. A massa explorada cansou e quer um mundo melhor!

(Patrícia Galvão, sob o pseudônimo de Mara Lobo, “Parque Industrial”, Brasil, 1932).

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(...) E se de repente Karl Marx ressuscitasse
e os agentes de produção voltassem a chamar-se
capitalistas e proletários? E se esta ordem
desordenada
virasse toda do avesso? Mas
o muro caiu
oiço dizer todos os dias.
E um japonês chamado Fukuyama
(talvez com medo de não morrer na cama)
pôs um ponto final na História. Fim.
A partir de agora é só sondagem imagem sacanagem.
Gosto amargo do mundo
bebe-se um trago e fica um travo.
Se a História é interdita e não nos resta sequer a escrita
que farei eu com este cravo?

(Manuel Alegre, “O Cravo e o Travo”, Portugal, 1999).

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Trilha Sonora do Dia: Screaming Trees, com "Working Class Hero", de John Lennon.


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Versos e Imagens em uma Noite Insone.

Paul Klee - "Carnaval nas Montanhas" - 1924

"O Monte e o Rio"
(Pablo Neruda)

Na minha pátria tem um monte.
Na minha pátria tem um rio.

Vem comigo.

A noite sobe o monte.
A fome desce o rio.

Vem comigo.

E quem são os que sofrem?
Não sei, porém são meus.

Vem comigo.

Não sei, porém me chamam
e nem dizem "sofremos".

Vem comigo.

E me dizem:
"Teu povo,
teu povo abandonado
entre o monte e o rio,

com dores e com fome,
não quer lutar sozinho,
te está esperando, amigo".

Ó tu, a quem eu amo,
pequena, grão vermelho
de trigo,

a luta será bela,
a vida será dura,
mas tu virás comigo.
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Vivendo em Tempos Interessantes: Saudações ao Futuro que Chega.

Tarsila do Amaral - "Carnaval em Madureira" - 1924

Eric Hobsbawm, o grande historiador britânico, vem reiterando incessantemente nos últimos anos que o grande programa político destes nossos dias deve ser a retomada e a defesa dos valores iluministas, como um contraponto necessário ao irracionalismo e a barbárie. Posso dizer que a adesão – mas sem perder o espírito crítico e uma boa dose de iconoclastia – a este programa tem marcado o “Abobrinhas Psicodélicas” neste pouco mais de um ano de existência. Neste tempo, passei a ter uma noção efetiva do que representa hoje a grande rede e da capacidade daquilo que vem sendo chamado de “blogosfera”, de intervir e de influenciar o real. Sem ufanismos ou otimismos exagerados, percebo hoje que a “guerrilha virtual” levada a cabo por milhares de pessoas em todo o Brasil tem conseguido causar alguns pequenos estragos na, até agora, intransponível barreira midiática. É lógico que ainda estamos longe da quebra do monopólio da informação, mas – pela primeira vez – vemos os senhores da mídia acusando os golpes que vem sofrendo das fundas cibernéticas dos inúmeros “Davis” da internet. Neste sentido, os blogueiros estão entre os primeiros que perceberam, consciente ou inconscientemente, o fenômeno que foi traduzido em palavras pelo teólogo e deputado democrata-cristão alemão Heiner Geibler: “Antigamente, nas revoluções, as estações de trem eram ocupadas. Hoje, ocupamos conceitos”. Assim, o que começou meio que na brincadeira – um espaço para exorcizar fantasmas e também para publicar textos que fugissem dos padrões mais rígidos dos artigos acadêmicos que habitualmente escrevo – acabou se tornando um gostoso vício e, por que não, uma pequena trincheira onde eu exponho e debato idéias. E neste relativamente curto período de existência do blog, encontrei diversos companheiros e companheiras de caminhada que participaram – concordando ou discordando – das discussões aqui travadas e que, principalmente, mostraram que apesar de aparentemente estarmos nadando contra a corrente, ainda há espaço para a construção de utopias coletivas. Sem sombra de dúvidas, vivemos em tempos interessantes. E para nós que vivemos no sempre tão propalado “País do Futuro”, eles se mostram mais interessantes ainda, porque parece que, finalmente, o futuro chegou e, ao passarmos da contemplação para a ação, estamos participando de uma pequena revolução silenciosa – à brasileira – que tem atordoado os setores que secularmente foram os fiadores e intermediários da nossa miséria e da nossa dependência. Assim, é com esperança e com ânimo renovado para continuar a "combater o bom combate" que desejo a todos (as) um ótimo 2010 e que deixo aqui dois poemas que traduzem bem o espírito deste blog. O primeiro é da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen e foi escrito dois dias após a Revolução dos Cravos, em abril de 1974; o segundo, é de um grande poeta brasileiro, já citado aqui outras vezes, Eduardo Alves da Costa:

Revolução
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro ínicio
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

27 de Abril de 1974

Não Te Esqueças do Mundo
(Eduardo Alves da Costa)

Ainda que o divino te chame pelo nome
e te ofereça a sua intimidade,
não te esqueças do mundo.
Porque é aqui, entre dores e esperanças
que teus irmãos caminham,
atados aos esquecimento.
E se tu, que recebeste a benção da recordação,
não te importares mais com eles,
quem os receberá na região dos sonhos,
para lhes traduzir o sentido das visões
que os tornam tão próximos dos Deuses?

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Trilha Sonora do Dia: "Bom Tempo", de Chico Buarque, cantada por Mônica Salmaso.

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Sobre o Tempo ou Eu Tinha Tanto pra Dizer...

Henri Matisse - "Luxe, Calme et Volupté" - 1905

Tenho tido idéias para vários posts, mas o tempo (ou melhor, a falta dele) não tem me deixado colocá-las no papel (quero dizer, no blog). Final de semestre letivo: dezenas de provas, trabalhos e monografias para ler. E ainda a escrita de um artigo que já era para estar terminado há algumas semanas... Portanto, sem tempo para escrever, mas querendo sustentar este vício de blogueiro, posto agora uma improvável combinação de Matisse, Ezra Pound e Belle and Sebastian. E assim se passam os dias...

A Água-furtada

(Ezra Pound)

Vamos, lamentemos os que estão em melhor situação que a nossa.
Vamos, meu amigo, e lembra-te:
os ricos têm mordomos e não têm amigos,
E nós temos amigos e não temos mordomos.
Vamos, lamentemos os casados e os solteiros.

A aurora entra com os pés pequenos
Pavlova dourada,
E estou perto do meu desejo.
E não há nada melhor
Que esta hora de claro frescor,
a hora de acordar juntos.

Tradução de Mário Faustino

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E como trilha-sonora, "Beautiful", do Belle and Sebastian:



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Um nada caído entre momentos.

Paul Klee - "Estrada e Atalhos"

Um nada caído entre momentos
(Rui Rasquilho)

Desces pelo caminho de saibro
Por entre as azáleas
Na direção dos meus olhos
Trazendo um sentimento longínquo
Na serenidade da tarde

Sou o único habitante da casa
Os outros fecharam as portas e as janelas
E pediram-me que escolhesse a margem

Acenaste ao passar
Rasgando com o teu gesto
A silenciosa cor do poente
Forçando a coincidência dos lábios
Oferecendo o clamor esplêndido do teu rosto

A tua mão torna-se uma ausência opaca
Uma flor de fogo
Um nada caído entre momentos

Escolho cuidadosamente a árvore
Recolho o fruto transparente
E coloco o sabor da terra
Nos meus olhos.

(In: O Limite do Fogo. Lisboa, Editorial Presença, 1998.)
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Na Madrugada.

Edvard Munch - "Melancolia" (1892)

Vejo-os: durante a conversa, alguém, de repente, se distrai fica parado e pensativo, talvez por alguns segundos, mas é quanto basta para compreender que sua verdade está lá, naquele silêncio. Como alguém que, defronte de casa, esteja conversando com amigos e de repente se afasta, corre para casa para ver sabe Deus o quê e volta logo depois, com exatamente a mesma expressão de antes e ninguém sabe o que foi fazer, e se alguém lhe pergunta, responde “nada”, e, de outro lado, não se podia ver nada através da porta quando a abriu, o que havia lá dentro, via-se apenas um retângulo escuro.
Uma praça imensa, portanto, tendo ao redor uma infinidade de casas, esta é a vida; e, no centro, os homens que negociam entre si e nunca alguém consegue conhecer as outras casas; somente a sua, e mesmo esta, geralmente mal, porque permanecem muitos ângulos escuros e às vezes quartos inteiros que o dono não tem paciência ou coragem para explorar. E a verdade se encontra somente nas casas e não fora delas. De maneira que, do resto do gênero humano, nunca se sabe nada. O homem passa distraído no meio destes infinitos mistérios e isso finalmente não parece desagradar-lhe demasiadamente.

(BUZZATI, Dino. “A Solidão”. In: Naquele Exato Momento. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.)

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Tempos Adversos

Fui eu
Vem ver
Fui eu
Vem ver
Há vidros no chão
Há folhas no chão
Há livros no chão
Lutamos em vão

Claro que temos que andar
são os tempos adversos
Que puxam para trás
É claro que temos que ver a estrada
Que um dia a história acaba...

Quem foi?
Quem viu?
Quem foi?
Quem viu?
Os vidros no chão
São restos de nós
Os vidros no chão
Perdem a voz.

Claro que vamos andar
entre tempos adversos
que puxam para trás
é claro que temos que ver a estrada
Que um dia a história acaba...

...Que um dia a história acaba.

( Toranja, Álbum "Segundo", Universal Music Portugal, 2005)

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Ouça "Tempos Adversos", com o Toranja.


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História.

Paul Klee - "Angelus Novus"

No início de setembro de 1939, a invasão alemã na Polônia deu início à Segunda Guerra Mundial que, ao seu final, deixou um saldo de mais de cinquenta milhões de mortos, praticamente o triplo da Primeira – aquela que na época foi chamada de “a guerra que iria pôr fim a todas as guerras” – com seus quase 20 milhões de vítimas fatais. Em 1920, após a tragédia sem precedentes do conflito de 1914-1918, o pintor suíço-alemão Paul Klee pintou o seu célebre quadro “Angelus Novus”. Vinte anos depois, sob o impacto da assinatura do Pacto Germano-Soviético e da invasão da Polônia, o filósofo Walter Benjamin lançou suas “Teses sobre o Conceito de História” (publicadas em português, pela Editora Brasiliense, no livro "Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política", com tradução de Sergio Paulo Rouanet). A partir da análise do quadro de Klee, ele enxerga o drama e a dor da sua época e, de forma profética, antevê os horrores dos anos seguintes - dos quais ele seria uma das vítimas - e expõe a sua trágica visão sobre a História:

Existe um quadro de Paul Klee que se intitula “Angelus Novus”. Ele representa um anjo que parece ter a intenção de distanciar-se do lugar em que permanece imóvel. Seus olhos estão encarquilhados, sua boca aberta, suas asas estendidas. Tal é o aspecto que deve ter necessariamente o anjo da história. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde se nos apresenta uma cadeia de eventos, ele não vê senão uma só e única catástrofe, que não cessa de amontoar ruínas sobre ruínas e as joga a seus pés. Ele bem que gostaria de se deter, acordar os mortos e reunir os vencidos. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se abate sobre suas asas, tão forte que o anjo não as pode tornar a fechar. Essa tempestade o empura incessantemente para o futuro, para o qual ele tem as costas voltadas, enquanto diante de si as ruínas se acumulam até o céu. Essa tempestade é o que nós denominamos progresso.

********************

A Segunda Guerra Mundial também vitimou o grande historiador francês Marc Bloch, fundador - com Lucien Febvre – da “Revue des Annales” (1929). Militando na Resistência Francesa, Bloch foi detido pelos nazistas e fuzilado em junho de 1944. Na prisão, escreveu a sua “Apologia da História ou o Ofício do Historiador” (A edição brasileira é da Jorge Zahar), dedicada ao seu filho Étienne. É deste livro que retiro o trecho abaixo:

(...) mesmo que julgássemos a história incapaz de outros serviços, seria certamente possível alegar a seu favor que ela distrai. Ou, para ser mais exato – pois cada um procura as distrações onde lhe apraz, - tal se afigura, incontestavelmente, a um grande número de homens. Pessoalmente, tão longe quanto a minha memória abarca, a história sempre me divertiu muito. Como sucede com todos os historiadores, creio eu. De outro modo, por que razões teriam escolhido tal ofício? Aos olhos de quem não seja tolo chapado, todas as ciências são interessantes. Mas cada sábio quase só encontra uma cuja prática o divirta. Descobri-la para consagrar-se a ela, é o que se chama propriamente vocação.

********************

Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores contemporâneos, também vivenciou de perto os horrores da Segunda Guerra. Filho de um britânico e de uma austríaca, ambos judeus, ele passou seus primeiros anos de vida em Viena e Berlim, de onde saiu em 1933, fugindo das perseguições nazistas. Durante a guerra, serviu no exército britânico, onde atuou no Setor de Inteligência. O trecho abaixo foi retirado de uma palestra que ele ministrou, na década de 1990, em uma Universidade do leste europeu, após o colapso do chamado“Socialismo Real” e que está na coletânea de ensaios intitulada "Sobre História" (Cia. das Letras):

O que eu quero lembrar a vocês é algo que me disseram quando comecei a lecionar em uma Universidade. “As pessoas em função das quais você está lá”, disse meu próprio professor, “não são estudantes brilhantes como você. São estudantes comuns com opiniões maçantes, que obtêm graus medíocres na faixa inferior das notas baixas, e cujas respostas nos exames são quase iguais. Os que obtêm as melhores notas cuidarão de si mesmos, ainda que seja para eles que você gostará de lecionar. Os outros são os únicos que precisam de você”. Isso não vale apenas para a universidade, mas para o mundo. Os governos, o sistema econômico, as escolas, tudo na sociedade, não se destina ao benefício de minorias privilegiadas. Nós podemos cuidar de nós mesmos. É para o benefício da grande maioria das pessoas, que não são particularmente inteligentes ou interessantes (a menos que, naturalmente, nos apaixonemos por uma delas), não têm um grau elevado de instrução, não são prósperas ou realmente fadadas ao sucesso, não são nada de muito especial. É para as pessoas que, ao longo da história, fora de seu bairro, apenas têm entrado para a história como indivíduos nos registros de nascimento, casamento e morte. Toda a sociedade na qual valha a pena viver é uma sociedade que se destina a elas, e não aos ricos, inteligentes e excepcionais, embora toda a sociedade em que valha a pena viver deva garantir espaço e propósito para tais minorias. Mas o mundo não é feito para o nosso benefício pessoal, e tampouco estamos no mundo para nosso benefício pessoal. Um mundo que afirme ser essa o seu propósito não é bom e não deve ser duradouro.

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Cântico Negro.

Francis Bacon - "Head VI" - 1949

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

("Cântico Negro". In: RÉGIO, José. Poemas de Deus e do Diabo. Porto: Brasília Editora, 1972.)

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Trilha Sonora do dia: "These Days", do Jackson Browne, na voz da Nico.


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Drops de Sabores Variados.

É muito interessante a ética seletiva de setores da classe “mérdia” - são os velhos fantasmas udenistas que insistem em continuar nos assombrando – e da mídia que “forma” a sua opinião. Se há toda uma enorme indignação – com todos os motivos, por sinal - em relação aos atos praticados pelo velho oligarca Sarney, por que este mesmo sentimento não existe em relação a uma série de outras situações que listo abaixo?

1-Os jatinhos que o senador Tasso Jereissati freta com dinheiro público;
2- O funcionário-fantasma do gabinete do senador Arthur Virgílio que recebeu salários durante um ano, mesmo morando na Espanha;
3- A viagem da filha do Fernando Gabeira ao Havaí, utilizando a cota de passagens da Câmara de Deputados e a contratação da empresa da mulher do deputado verde para lhe prestar serviços na montagem de um site, utilizando a verba de representação de seu gabinete;
4- O fato de Luciana Cardoso, filha do ex-presidente Fernando Henrique, ter sido funcionária-fantasma do gabinete do Senador Heráclito Fortes;
5- A utilização da cota de passagens da ex-senadora Heloísa Helena por seu filho e por dois militantes do PSOL, mesmo depois da “combativa” parlamentar ter encerrado o seu mandato.

Sei não, mas esta história de “Fora Sarney!” está parecendo mais “Cansei II: A Missão”...
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Estou ouvindo agora o disco “Nouvelle Cuisine” (1988) da banda paulista do mesmo nome. Como ele nunca foi lançado em CD, estava pensando em levar o meu velho vinil para convertê-lo , mas antes tive a idéia de ver se alguma alma caridosa já não tinha feito isto e o estava compartilhando na grande rede. Não deu outra: alguém (God Bless You!) converteu todas as faixas do “bolachão” para o formato mp3 e ainda se deu ao trabalho de copiar a capa e o encarte do disco, disponibilizando tudo isto em formato rar. Quem quiser curtir excelentes interpretações de standards do Jazz é só acessar o link abaixo e fazer o download do arquivo.
O glorioso Vasco da Gama finalmente conseguiu chegar a vice-liderança da série B do Brasileirão e, dependendo da combinação de resultados, pode terminar esta rodada em primeiro lugar. O problema é que a irregularidade tem sido a marca da equipe na competição: quando parece que o time vai engrenar, ocorre um daqueles tropeços injustificáveis. De qualquer forma, amanhã estarei em São Januário para assistir a estréia do Aluísio Chulapa e para cantar um dos mais belos cantos de torcida – “Vou torcer pro Vasco ser campeão/São Januário, meu caldeirão” – que utiliza a melodia de um dos clássicos do Rock Brasil, “Bebendo Vinho”, composto pelo Vander Wildner e gravado pelo Ira!

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É absolutamente imperdível a Exposição “Virada Russa” que está em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro, até o dia 23 de agosto. Nela estão presentes diversas obras pertencentes ao acervo do Museu Estatal de São Petersburgo, que constituem uma amostra bastante representativa da produção das vanguardas artísticas russas das primeiras décadas do século XX. Ficar frente a frente com um Chagall ou um Kandinsky é algo indescritível. Porém, a tela que mais me marcou foi “A Guerra Alemã”, de Pável Filónov. É a “Guernica” da Primeira Guerra Mundial.
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Sobre o mar.

Claude Monet, "La promenade sur la falaise", 1882.

Olhando o mar de Fortaleza daqui da janela deste quarto de hotel, na Praia de Iracema, vieram-me à cabeça a imagem de um quadro do Monet e os versos de um pequeno e belo poema da Fiama Hasse Pais Brandão. Sei não, acho que estou ficando embebedado pelo Atlântico...

Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

In: Três Rostos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1989.
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Poesia numa manhã de inverno.

Camille Pissarro - "Café au Lait", 1881.

Espere, Baby
(Chacal)

espere baby não desespere
não me venha com propostas tão fora de propósito
não acene com planos mirabolantes mas tão distantes

espere baby não desespere
vamos tomar mais um e falar sobre o mistério da lua vaga
dylan na vitrola dedo nas teclas
canto invento enquanto o vento marasma

espere baby não desespere
temos um quarto uma eletrola uma cartola
vamos puxar um coelho um baralho e um castelo de cartas
vamos viver o tempo esquecido do mago merlin
vamos montar o espelho partido da vida como ela é

espere baby não desespere
a lagoa há de secar
e nós não ficaremos mais a ver navios
e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida
e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim

espere baby não desespere
porque nesse dia soprará o vento da ventura
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos.
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Cartazes da Guerra Civil Espanhola.


Em 1936, as esquerdas espanholas uniram-se na Frente Popular e venceram as eleições gerais naquele país, tendo como suas principais bandeiras a realização da reforma agrária e a modernização da velha Espanha. Esta vitória fez com que os setores mais conservadores da sociedade espanhola – que incluíam os “tierratenientes” (latifundiários), o clero católico, a incipiente burguesia e militares direitistas – começassem a conspirar contra o governo republicano de esquerda, culminando com o levante das tropas sediadas no Marrocos, comandadas pelo general Francisco Franco, em julho de 1936. Entrando na Espanha, via Gibraltar, as tropas franquistas deram início a uma guerra civil que se transformou em um dos mais importantes acontecimentos do século XX e que acabou sendo uma prévia dos horrores da Segunda Guerra Mundial. A neutralidade/omissão das potências liberais (França, Inglaterra e EUA) no conflito e o apoio decisivo da Itália e da Alemanha – que usou a Guerra Civil Espanhola como “laboratório” para testes de armamentos e táticas de guerra – aos franquistas, levaram à derrota do governo republicano, em 1939, e à implantação de uma longa ditadura de características fascistas, que se prolongaria até a morte de Franco, em 1975. Naquele momento, os únicos auxílios obtidos pela esquerda espanhola foram o discreto apoio da URSS – mais envolvida com suas questões internas – e a ajuda dos voluntários das Brigadas Internacionais, que reuniram militantes antifascistas do mundo inteiro (incluindo brasileiros como Apolônio de Carvalho e José Gay da Cunha) para o combate contra os fascistas na Espanha. Este conflito, que deixou mais de 500.000 mortos, também serviu de inspiração para que surgissem grandes obras artísticas e literárias, em apoio aos republicanos espanhóis ou denunciando os horrores da guerra, das quais a mais famosa é, sem dúvida, o gigantesco painel “Guernica”, pintado por Pablo Picasso, em 1937, que retrata a dor e o sofrimento gerados pelos bombardeios alemãs sobre aquela pequena cidade basca. Já no campo da Literatura, romancistas e poetas de todo o mundo produziram inúmeras belas e tocantes obras sobre o conflito. Em prosa, um dos textos mais conhecidos sobre a Guerra Civil Espanhola é o romance “Por quem os sinos dobram”, do norte-americano Ernest Hemingway, que lutou como combatente das Brigadas Internacionais; dentre os livros de memórias destaca-se “Lutando na Espanha”, do escritor inglês George Orwell, outro ex-brigadista. Porém, foi através da poesia que a luta pela liberdade em terras espanholas acabou sendo mais bem retratada. No Brasil, os poemas No vosso e em meu coração, de Manuel Bandeira e Notícias de Espanha , de Carlos Drummond de Andrade, são bons exemplos do engajamento de intelectuais de todo o mundo na luta antifascista, que mobilizava as forças libertárias e progressistas de diversos países nas décadas de 30 e 40 do século passado. Recentemente, a Guerra Civil Espanhola também rendeu uma pequena e tocante obra-prima do cinema: o pungente “Terra e Liberdade” (1995), do diretor britânico Ken Loach. Porém, no calor da própria luta, também se produzia arte. E esta arte tomava as ruas nos cartazes produzidos pelo governo republicano ou por sindicatos e organizações anti-fascistas que também estavam na luta contra as tropas franquistas. Influenciados pelas vanguardas artísticas da época, em especial pelo construtivismo soviético, alguns nomes extremamente importantes do cenário artístico espanhol e europeu como Bardasano, Monleón e Huertas participaram ativamente desta produção cartazista. Até o dia 02 de agosto, 95 destes cartazes estarão em exposição no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, em dobradinha com a mostra de fotografias de Pierre Verger, “Andalucía, 1935”. Muitos deles, setenta anos após o fim da Guerra Civil, ainda aparecem como extremamente contemporâneos, com alguns chegando a lembrar as grafitagens mais engajadas presentes em qualquer grande cidade, neste início do século XXI. No entanto, outros nos dão uma sensação – ao mesmo tempo estranha e dolorida - de pertencerem a um outro mundo que já não existe mais (e que, de certa forma, também não nos diz mais respeito) e de retratarem as ruínas das utopias que foram sendo enterradas pela sucessão de tragédias que marcaram o século XX. Ao olhar, melancolicamente, as fotografias sorridentes de alguns combatentes que aparecem em alguns dos cartazes, sem poder – é claro – prever a derrota de seus sonhos pouco tempo depois, não pude deixar de me lembrar dos versos de “Apologia y peticíon”, do poeta Jaime Gil de Biedma, lindamente adaptados e musicados pelo guitarrista Paco Ibañez (com o nome de “Triste Historia”), no primeiro disco que gravou após o seu retorno à Espanha, depois de alguns anos de exílio (“A Flor de Tiempo”, 1978):

¿Y qué decir de nuestra madre España,
este país de todos los demonios
en donde el mal gobierno, la pobreza
no son, sin más, pobreza y mal gobierno,
sino un estado místico del hombre,
la absolución final de nuestra historia?

De todas las historias de la Historia
la más triste sin duda es la de España
porque termina mal. Como si el hombre,
harto ya de luchar con sus demonios,
decidiese encargarles el gobierno
y la administración de su pobreza.

Nuestra famosa inmemorial pobreza
cuyo origen se pierde en las historias
que dicen que no es culpa del gobierno,
sino terrible maldición de España,
triste precio pagado a los demonios
con hambre y con trabajo de sus hombres.

A menudo he pensado en esos hombres,
a menudo he pensado en la pobreza
de este país de todos los demonios.
Y a menudo he pensado en otra historia
distinta y menos simple, en otra España
en donde sí que importa un mal gobierno.

Quiero creer que nuestro mal gobierno
es un vulgar negocio de los hombres
y no una metafísica, que España
puede y debe salir de la pobreza,
que es tiempo aún para cambiar su historia
antes que se la lleven los demonios.

Quiero creer que no hay tales demonios.
Son hombres los que pagan al gobierno,
los empresarios de la falsa historia.
Son ellos quienes han vendido al hombre,
los que le han vertido a la pobreza
y secuestrado la salud de España.

Pido que España expulse a esos demonios.
Que la pobreza suba hasta el gobierno.
Que sea el hombre el dueño de su historia.
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Sobre a beleza...

Final de tarde de um domingo nublado. Tédio total. Penso na derrota do Vasco para o Botafogo, nas crônicas pseudo-indignadas do Jabor, nos comentários engraçadinhos do Mainardi no Manhatan Connection, nas egotrips públicas - e publicizadas - do Caetano e do FHC, naquelas musiquinhas chatas e modernosas do Djavan... Mas tudo bem. Apesar de tudo, ainda há beleza neste mundo. Basta lembrar de um certo rosto de mulher - bonito e profundo, admirar um quadro do Chagall ou ouvir a Fernanda Takai cantando “Insensatez”. Definitivamente, a vida ainda é bela...

A beleza existe! Clique e ouça "Insensatez", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, na voz de Fernanda Takai.


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Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya.

Há quase cinquenta anos, Jorge de Sena (1910-1978), um dos maiores poetas portugueses do século XX, escreveu uma belíssima carta-poema intitulada "Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", a partir do quadro "El tres de mayo", pintado em 1814 por Francico Goya. Hoje, ao findar 2008, os seus versos permanecem tristemente atuais em um mundo onde estão ocorrendo atualmente, pelo menos, catorze conflitos armados de grandes proporções. Não pude deixar de pensar nesta carta-poema neste momento em que o ano termina e em que o "Espírito Natalino" se apresenta como sinônimo de consumo e não de solidariedade. Assim, os desejos de Jorge de Sena para seus filhos são os de todos nós que acreditamos que resistir é possível e preciso.

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós.
Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.

Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».

E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.


Lisboa, 25/6/1959
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