STF e o risco de banalizar o malPAULO MOREIRA LEITEEstou espantado diante da naturalidade com que se debate a possibilidade do Supremo cassar os mandatos de três deputados cassados pelo mensalão. Parece a coisa mais natural do mundo. Parece uma questão de opinião.
José Genoíno, um suplente de mais de 90 000 votos, também pode perder seus direitos. Como os demais, seu mandato vai até 2014.
Não é natural. Nem é uma questão de opinião.
Está lá, no artigo 55 da Constituição que, após ampla defesa, por maioria absoluta, cabe ao Congresso decidir o que acontece com o mandato dos parlamentares. A Câmara resolve, no caso dos deputados. O Senado, quando se trata de senadores.
É tão claro como o artigo que define o voto direto para presidente ou o caráter federativo da República.
É ainda mais curioso que se queira também queimar outra etapa, cassando os deputados antes mesmo que os recursos tenham sido julgados. Aliás: as sentenças sequer foram escritas nem publicadas.
Isso não é uma formalidade. Na hora de redigir uma sentença, pode-se descobrir uma incongruência e mesmo uma incorreção. Uma coisa é a frase oral. Outra, o texto escrito.
É uma garantia da acusação, de que terá seus motivos bem explicados e compreendidos.
Também é uma garantia para a defesa, que pode ter motivos claros e bem definidos para enfrentar.
Por fim, e mais importante: é uma garantia para a democracia, pois assegura a transparência da Justiça.
Qualquer cidadão, a qualquer momento, pode saber exatamente por que uma pessoa foi condenada e outra, absolvida.
O procurador Roberto Gurgel voltou a insistir para que o Supremo decrete a prisão imediata dos condenados. Gurgel já havia recolhido seus passaportes e colocado seus nomes na lista de pessoas que não podem deixar o país.
Referindo-se ao plano de prisão imediata, o constitucionalista Pedro Serrano, professor da PUC de São Paulo, afirma: “É um absurdo.” O professor lembra a necessidade de se cumprir um ritual indispensável: “Ninguém pode ser preso sem que todos os recursos sejam julgados e respondidos.”.
O risco é habituar o país a golpes — mesmo pequenos — contra a democracia. Fatos que deveriam ser vistos como estranhos e até escandalosos passam a ser vistos como naturais A ideia é aceitar que nem sempre os direitos do cidadão precisam ser respeitados e que a Justiça é a principal garantia que ele possui.
O nome disso, ensinou Hannah Arendt, é banalização do mal.
Ela se obtém quando as consciências foram anestesiadas.
Estamos assistindo a banalização de ataques contra cidadãos que, lamentavelmente ou não, receberam o voto popular em 2010.
Aplicar a palavra “poderosos” no caso específico destes réus é um esforço retórico. Num país horrorizado com a impunidade e a corrupção, que são problemas reais, a ser enfrentados e combatidos, este discurso ajuda a alimentar a ira, a dar um conteúdo “exemplar”, “redentor”, “simbólico” ao julgamento São palavras que ajudam a encobrir fatos reais e questionáveis. Você fica debatendo o “significado” do fato e esquece do próprio fato.
Falar em poderoso, concretamente, é uma falsificação.
Estamos falando de pessoas que foram despossuídas do direito a uma ampla defesa. Não foram condenadas por provas robustas nem individualizadas. Os ministros assumiram, explicitamente, a perspectiva de flexibilizar garantias oferecidas aos réus. A forma do julgamento, fatiado, já colocou a defesa em desvantagem, o que é uma situação estranha, num universo que deve funcionar como uma balança — e cega.
Mas há uma questão democrática essencial aqui.
Candidatos apontados como réus no mensalão, a espera de julgamento, receberam o voto de milhares de brasileiros. O voto dessas pessoas não tem valor?
Não deve ser pesado, julgado, examinado, pelos representantes do povo? Eu acho que sim. E foi por esse motivo que o constituinte de 1988 não deixou a decisão para a Justiça. Trouxe para o Congresso. É o que está escrito.
Tá vendo como é bom ter leis escritas?