Ah, a rotina...

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  • sexta-feira, 16 de julho de 2010
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  • Abel Manta, "Lisboa e o Tejo" (1935)

    Rotina de final de semestre letivo: trabalhos e provas para corrigir, alguns congressos para participar, artigos para finalizar, enfim, as tarefas habituais para garantir o vinho nosso de cada dia e para atender ao fordismo intelectual das instituições de fomento à pesquisa (tudo pelo DataCAPES!). Por conta disto, o "Abobrinhas" tem sido deixado meio de lado nestas últimas semanas. Cheguei a começar a escrever um post sobre o Saramago - viu, Maraíza? -, mas os dias de 24 horas têm sido curtos para mim e ele ainda está a aguardar a devida finalização. Prometo voltar à ativa em breve - certo, Mariana? - e, enquanto isto, vou deixando por aqui o belíssimo "Para além do Cabo Não", o segundo dos "Três poemas portugueses," do Eduardo Alves da Costa.

    Para Além do Cabo Não

    Perdoa-me, paizinho, por eu
    não ser o que tu querias.
    Se estivesse em mim, juro
    que interrompia o salto sobre o muro
    deste meu fluir inconstante,
    para que tuas mãos se pusessem calmas
    e pudesses gozar tuas certezas.

    Mas, se nem mesmo eu
    estou certo da Beleza
    e com ela trabalho, sem garantia,
    vinte e quatro horas por dia!
    Sei que meus sapatos estão gastos
    e que não fica bem ao bacharel
    este papel de saltimbanco.

    Não está em mim evitar
    o sorriso dos teus amigos,
    pousados nos lábios
    de retratos mortos; eles,
    os que não sabem dos portos
    a que minha alma vazia
    vai buscar esses nadas
    de que é feita a poesia.

    Há os que têm filhos loucos,
    tartamudos, pródigos, pernetas,
    mas logo a ti sucedeu o triste fado
    de um filho poeta.
    Não há como explicar ao mundo
    que não o podes manter nos cordéis,
    como a sociedade faz a toda gente.

    Se eu fosse gago, era só inventar
    um susto na infância, um - sei lá -
    um tombo, e as pessoas
    logo se acostumavam.
    Até os que desfalcam bancos
    têm os seus motivos: afinal
    lamber um monte de notas
    acaba por dar em dissonância.
    Mas este mal me vem da infância,
    do colégio, algo assim
    como brincar às escondidas
    com o pênis
    ou espreitar pelas frestas.

    Juro, paizinho, que preferia
    ter mantido em segredo
    esta compulsão para o espanto.
    esta vertigem epiléptica
    em direção ao vácuo.
    Diriam: é um vagabundo,
    tem lá suas manias, morreu-lhe
    a mãe quando criança.
    E tu deixavas cair uma lagriminha,
    para que a pudessem ver as comadres,
    os juízes, a vizinhança,
    teus colegas de profissão
    e os que, na rua, te
    acenam com a mão e têm
    sobre mim direitos de cobrança.

    Enfim, está feito; já não se pode
    evitar que o óvulo engendre este traste
    que o mundo insiste em
    atirar para um canto.
    Só nos resta esperar à beira
    do cais que os destroços
    de teus planos me cheguem às mãos.

    Se tiveres paciência,
    ficamos os dois a beber
    um caneco, sem mais intenções;
    e te prometo fazer
    de alguns barris sem fundo
    e uns sacos de farinha
    uma nau, como as dos velhos tempos,
    em que teus antepassados,
    tão sem medo, olhavam para o mundo
    não com olhos de merceeiros
    mas à espera do milagre
    que apartasse o não do cabo Não;
    e, para além do abismo previsível,
    plantasse o sonho
    - que é matéria
    de que teu filho se compõe.
     
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