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Queremos a Bruna Surfistinha na ABL!

Depois que o Merval Pereira derrotou o Antônio Torres na disputa por uma vaga na ABL, as massas clamam: Bruna Surfistinha na Academia! Afinal - e isto é inquestionável - de lugares de prostituição, a moça entende! Além do mais, a Surfistinha tem uma grande vantagem sobre o Merval, o Sarney, o Gen. Aurélio de Lyra Tavares, o Roberto Marinho e tantos outros "imortais" que já passaram pela casa: ela, de fato, vende livros...
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Mel e Veneno.

- Sabe que o senhor é realmente formidável? Leio tudo o que escreve. Sempre interessante. E sabe do que mais gosto? Espere...era um conto...falava de uma velha casa abandonada...
Neste momento compreendo. Trata-se de uma novela escrita há noventa anos, quando era ainda criança.
Muita gente, ao cumprimentar um artista faz essa maldade: a de louvar não suas obras recentes, que são realmente suas, mas trabalhos velhíssimos, cujo verdadeiro autor já não existe mais. Porque o eu de de vinte anos atrás é para mim um estranho com o qual tenho muito pouca coisa em comum. E se escreveu alguma coisa boa, tenho quase raiva. O eu a quem quero bem é o de hoje, no máximo o de ontem, de anteontem. Mais longe, é um estrangeiro desconhecido cujos méritos me são indiferentes.
(Dino Buzzati, em "Naquele Exato Momento". Nova Fronteira, 2004).
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And in the end...

Diego Rivera, "Vendedora de Flores", 1949.

Escrevi pouco neste blog em 2010. Na verdade, escrevi muito neste ano que finda, porém outros gêneros de escrita, pretensamente "mais sérios", publicados em outros lugares. Na verdade, acho que tenho estado tão pesado, que não consigo mais escrever textos leves, como os que usualmente publicava por aqui. Mas quem sabe, em 2011, eu volte à velha forma e consiga produzir posts que tenham, pelo menos, uma ínfima fração da inteligência e da sensibilidade dos pequenos grandes textos de Eduardo Galeano, em "O Livro dos Abraços" (oh, santa pretensão!)? Mas enquanto, este dia não chega compartilho aqui - com os abnegados que ainda acompanham este blogueiro relapso - um textinho genial desse delicioso livro do escritor uruguaio.

O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso que afinal Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha,, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.
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A Origem do Mundo.

Jackson Pollock, Sem Título, 1951.

De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

Nuno Júdice, "A Origem do Mundo".
In: Meditação sobre Ruínas. Lisboa, Livros Quetzal, 1995.

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Auto-Retratos

"Auto-Retrato", Francis Bacon, 1971.

Auto-Retrato

Está incompleto. Ainda se vê metade do rosto. Sabemos
como se acentua junto dos olhos a mesma sombra.
Os lábios fecham-se; à sua volta, um halo apenas: continuam
afastadas as pregas da cor, o rumor trazido pela luz. Há um contorno
que pode tornar-se nítido. É tudo o que se procura. Depois esperamos
que venha a respiração ao encontro dessa superfície
até se encontrar um nome. É o meu.
Se quiserem podem esquecê-lo agora.

(Fernando Guimarães, In: Poesia Completa - Vol. 1. Porto, Edições Afrontamento, 1994)
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Quer entender a fábula d'Ecim e o Careca?

Ah, o Idelber publicou uma estorinha bem boa sobre o mineiro Ecim e o paulista Careca, dá gosto de ler! Literatura da boa!

Mas, se achar a fábula enigmática, t'aqui a moral da história.

PS - E tem mais aqui.
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A Casa Onde às Vezes Regresso.

Amadeo de Souza-Cardoso, "Cozinha da Casa de Manhouce", Óleo sobre Madeira, 1913.

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo.

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.

(Mendonça, José Tolentino. A que distância deixaste o coração. Lisboa, Assírio&Alvim, 1998).
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Ah, a rotina...

Abel Manta, "Lisboa e o Tejo" (1935)

Rotina de final de semestre letivo: trabalhos e provas para corrigir, alguns congressos para participar, artigos para finalizar, enfim, as tarefas habituais para garantir o vinho nosso de cada dia e para atender ao fordismo intelectual das instituições de fomento à pesquisa (tudo pelo DataCAPES!). Por conta disto, o "Abobrinhas" tem sido deixado meio de lado nestas últimas semanas. Cheguei a começar a escrever um post sobre o Saramago - viu, Maraíza? -, mas os dias de 24 horas têm sido curtos para mim e ele ainda está a aguardar a devida finalização. Prometo voltar à ativa em breve - certo, Mariana? - e, enquanto isto, vou deixando por aqui o belíssimo "Para além do Cabo Não", o segundo dos "Três poemas portugueses," do Eduardo Alves da Costa.

Para Além do Cabo Não

Perdoa-me, paizinho, por eu
não ser o que tu querias.
Se estivesse em mim, juro
que interrompia o salto sobre o muro
deste meu fluir inconstante,
para que tuas mãos se pusessem calmas
e pudesses gozar tuas certezas.

Mas, se nem mesmo eu
estou certo da Beleza
e com ela trabalho, sem garantia,
vinte e quatro horas por dia!
Sei que meus sapatos estão gastos
e que não fica bem ao bacharel
este papel de saltimbanco.

Não está em mim evitar
o sorriso dos teus amigos,
pousados nos lábios
de retratos mortos; eles,
os que não sabem dos portos
a que minha alma vazia
vai buscar esses nadas
de que é feita a poesia.

Há os que têm filhos loucos,
tartamudos, pródigos, pernetas,
mas logo a ti sucedeu o triste fado
de um filho poeta.
Não há como explicar ao mundo
que não o podes manter nos cordéis,
como a sociedade faz a toda gente.

Se eu fosse gago, era só inventar
um susto na infância, um - sei lá -
um tombo, e as pessoas
logo se acostumavam.
Até os que desfalcam bancos
têm os seus motivos: afinal
lamber um monte de notas
acaba por dar em dissonância.
Mas este mal me vem da infância,
do colégio, algo assim
como brincar às escondidas
com o pênis
ou espreitar pelas frestas.

Juro, paizinho, que preferia
ter mantido em segredo
esta compulsão para o espanto.
esta vertigem epiléptica
em direção ao vácuo.
Diriam: é um vagabundo,
tem lá suas manias, morreu-lhe
a mãe quando criança.
E tu deixavas cair uma lagriminha,
para que a pudessem ver as comadres,
os juízes, a vizinhança,
teus colegas de profissão
e os que, na rua, te
acenam com a mão e têm
sobre mim direitos de cobrança.

Enfim, está feito; já não se pode
evitar que o óvulo engendre este traste
que o mundo insiste em
atirar para um canto.
Só nos resta esperar à beira
do cais que os destroços
de teus planos me cheguem às mãos.

Se tiveres paciência,
ficamos os dois a beber
um caneco, sem mais intenções;
e te prometo fazer
de alguns barris sem fundo
e uns sacos de farinha
uma nau, como as dos velhos tempos,
em que teus antepassados,
tão sem medo, olhavam para o mundo
não com olhos de merceeiros
mas à espera do milagre
que apartasse o não do cabo Não;
e, para além do abismo previsível,
plantasse o sonho
- que é matéria
de que teu filho se compõe.
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Camisas.

Depois de ter conseguido irritar as hostes rubro-negras com meu último post (este é um dos maiores prazeres de um vascaíno!), publico aqui trechos de uma ótima crônica do Eduardo Galeano chamada “Fervor da Camisa”, que fala justamente sobre o futebol e a paixão dos torcedores. Ela está em um belo livro – excelente leitura para estes dias de Copa do Mundo – intitulado “Futebol ao Sol e à Sombra” (editado no Brasil pela L&PM), em que o escritor uruguaio, em pequenos e preciosos textos, discorre sobre as várias copas do mundo (de 1930 a 2002), sobre grandes jogadores e seus gols inesquecíveis, sobre os usos políticos do futebol, sobre a FIFA e suas ligações perigosas e, sempre de forma apaixonada e poética, sobre o esporte como um dos principais fenômenos sociais de nossos tempos.

O escritor uruguaio Paco Espínola não se interessava por futebol. Mas uma tarde, no verão de 1960, procurando o que escutar no rádio, Paco pescou por casualidade a transmissão de uma partida. Era o clássico local. O Peñarol levou uma goleada – 4 a 0 – do Nacional.
Quando caiu a noite, Paco estava tão triste que decidiu jantar sozinho, para não amargurar a vida de ninguém. De onde vinha tanta tristeza? Ele já estava quase acreditando que era uma tristeza sem razão, que era só a simples pena de ser mortal neste mundo, quando de repente, percebeu que estava triste porque o Peñarol tinha perdido. Ele era torcedor do Peñarol e não sabia.
Quantos uruguaios estavam tristes como ele? E quantos, ao contrário, subiam pelas paredes de felicidade? Paco viveu uma revelação tardia. Normalmente, os uruguaios pertencemos ao Nacional ou ao Peñarol desde o dia em que nascemos. A pessoa diz, por exemplo, “Eu sou do Nacional”. Assim é desde princípios do século. Os cronistas daqueles tempos contam que, nos bordéis de Montevidéu, as profissionais do Amor atraíam clientes sentando-se na porta vestindo somente as camisas do Nacional ou do Peñarol.
Para o torcedor fanático, o prazer não está na vitória do próprio time, mas na derrota do outro. Em 1993, um jornal de Montevidéu entrevistou alguns rapazes que, durante a semana, ganhavam a vida carregando lenha, e nos domingos aproveitavam a vida gritando pelo Nacional nos estádios. Um deles confessou: “Para mim, ver uma camisa do Peñarol dá nojo. Quero que perca sempre, mesmo que jogue contra estrangeiros” (...)
Creio que foi Oswaldo Soriano quem me contou a história da morte de um torcedor do Boca Juniors, em Buenos Aires. Aquele torcedor havia passado a vida inteira odiando o River Plate, como era sua obrigação, mas no leito de agonia pediu que o envolvessem na bandeira inimiga. E assim pôde comemorar, num último suspiro:
- Morre um deles (...)
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O Limite do Fogo.

Pablo Picasso, "Nu Azul", 1902.

Ela é o limite
O alarido
E
O silêncio

A nascente do grande rio
A fonte
O delta
O fruto maduro da árvore antiga

A alegria
E
A loucura
O turbilhão frenético da noite ritual
Ela é a mulher
E
O limite do fogo

(Rui Rasquilho, "O Limite do Fogo". Lisboa, Editorial Presença, 1998).
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Vozes Africanas.

Uma "homenagem" ao "combativo" Senador do DEM, Demóstenes Torres, que acha que no Brasil a questão racial não tem grande importância...

MAMÁ NEGRA
(Canto de esperança)

(À memória do poeta haitiano Jacques Roumain)

Tua presença, minha Mãe - drama vivo duma Raça,
Drama de carne e sangue
Que a Vida escreveu com a pena dos séculos!

Pela tua voz
Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
[dos seringais dos algodoais!...
Vozes das plantações de Virgínia
dos campos das Carolinas
Alabama Cuba Brasil...
Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos eitos
[das pampas das minas!
Vozes de Harlem Hill District South
vozes das sanzalas!
Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi, ecoando
[dos vagões!
Vozes chorando na voz de Corrothers:
Lord God, what will have we done
- Vozes de toda América! Vozes de toda África!
Voz de todas as vozes, na voz altiva de Langston
Na bela voz de Guillén...

Pelo teu dorso
Rebrilhantes dorsos aos sóis mais fortes do mundo!
Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com suor
[amaciando as mais ricas terras do mundo!
Rebrilhantes dorsos (ai, a cor desses dorsos...)
Rebrilhantes dorsos torcidos no "tronco", pendentes da
[forca, caídos por Lynch!
Rebrilhantes dorsos (Ah, como brilham esses dorsos!)
ressuscitados em Zumbi, em Toussaint alevantados!
Rebrilhantes dorsos...
brilhem, brilhem, batedores de jazz
rebentem, rebentem, grilhetas da Alma
evade-te, ó Alma, nas asas da Música!
...do brilho do Sol, do Sol
fecundo imortal e belo...

Pelo teu regaço, minha Mãe,
Outras gentes embaladas
à voz da ternura ninadas
do teu leite alimentadas
de bondade e poesia
de música ritmo e graça...
santos poetas e sábios...

Outras gentes... não teus filhos,
que estes nascendo alimárias
semoventes, coisas várias,
mais são filhos da desgraça:
a enxada é o seu brinquedo
trabalho escravo - folguedo...

Pelos teus olhos, minha Mãe
Vejo oceanos de dor
Claridades de sol-posto, paisagens
Roxas paisagens
Dramas de Cam e Jafé...
Mas vejo (Oh! se vejo!...)
mas vejo também que a luz roubada aos teus
[olhos, ora esplende
demoniacamente tentadora - como a Certeza...
cintilantemente firme - como a Esperança...
em nós outros, teus filhos,
gerando, formando, anunciando -
o dia da humanidade
O DIA DA HUMANIDADE!...

(Viriato da Cruz, Poeta Angolano, 1961)
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Música (s) Clássica (s) e uma observação esparsa.

The Animals – The House of the Rising Sun

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The Kinks – You Really Got Me


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The Who – My Generation

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(...) Tenho a convicção que os indivíduos pouco têm a ver com os negócios de Estado, que os governos são essencialmente sistemas de preenchimento que, com o tempo, pifam por falta de espaço nos gabinetes, funcionários, máquinas de escrever, papel e talvez fé na ordem. Acho cada vez mais difícil levar a sério os negócios públicos; uma definitiva tendência esquizóide, como diria um amigo psicólogo, que me põe figurativamente num saco de borracha cinzento, onde, isolado do mundo externo, não posso encarar com prazer nem consternação o interior do meu reino privado, complacente por haver escapado tão limpamente, tão completamente.

(Gore Vidal - "Um momento de louro verde" - In: Sede do Mal - Contos de Decadência e Corrupção).
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Você não passa de uma Mulher...

Ana Cristina Cesar


"Samba-Canção".

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

In: CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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Trilha-Sonora do Dia: Joni Mitchell, com "Blue".

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Fragmentos de discursos amorosos ou nós que amávamos tanto a (tal da) revolução.

Giuseppe Pellizza da Volpedo, “O Quarto Estado”, Itália, 1901.

E sob os seus pés, continuavam as batidas cavas, obstinadas, das picaretas. Todos os companheiros estavam lá no fundo; ouvia-os seguindo-o a cada passo. Não era a mulher de Maheu sob aquele canteiro de beterrabas, curvada, com uma respiração que chegava até ele de tão rouca, fazendo acompanhamento ao ruído do ventilador? À esquerda, à direita, mais adiante, julgava reconhecer outros, sob os trigais, as cercas vivas, as árvores novas. Agora, em pleno céu, o sol de abril brilhava em toda a sua glória, aquecendo a terra que germinava. Do flanco nutriz brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se, furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grande beijo. E ainda, cada vez mais distintamente, como se estivessem mais próximos da superfície, os companheiros cavavam. Aos raios chamejantes do astro rei, naquela manhã de juventude, era daquele rumor que o campo estava cheio. Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra.

(Émile Zola, “Germinal”, França, 1881).

****************
Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prestes, burguês.

(Vladimir Maiakóvski, “Come Ananás”, Rússia, 1917).

***************
A burguesia perdeu o próprio sentido. O proletariado marxista, através de todos os perigos, achou o seu caminho e nele se fortifica para o assalto final. Enquanto as fêmeas da burguesia descem de Higienópolis e dos bairros ricos para a farra das garçonnières e dos clubs, a criadagem humilhada, de touquinha e avental, conspira nas cozinhas e nos quintais dos palacetes. A massa explorada cansou e quer um mundo melhor!

(Patrícia Galvão, sob o pseudônimo de Mara Lobo, “Parque Industrial”, Brasil, 1932).

***************
(...) E se de repente Karl Marx ressuscitasse
e os agentes de produção voltassem a chamar-se
capitalistas e proletários? E se esta ordem
desordenada
virasse toda do avesso? Mas
o muro caiu
oiço dizer todos os dias.
E um japonês chamado Fukuyama
(talvez com medo de não morrer na cama)
pôs um ponto final na História. Fim.
A partir de agora é só sondagem imagem sacanagem.
Gosto amargo do mundo
bebe-se um trago e fica um travo.
Se a História é interdita e não nos resta sequer a escrita
que farei eu com este cravo?

(Manuel Alegre, “O Cravo e o Travo”, Portugal, 1999).

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Trilha Sonora do Dia: Screaming Trees, com "Working Class Hero", de John Lennon.


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Só dez por cento é mentira.

Acabo de assistir "Só dez por cento é mentira", a "desbiografia" oficial de Manoel de Barros. Êxtase total. Dizer o que? Recorro então ao próprio Manoel:

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre
as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
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Chapeuzinho Vermelho (Quarta erótica)

Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi para a cama. Aí se surpreendeu muito de ver como era sua avó sem roupa.
Charles Perrault

Via Ovejas Elétricas, ilustração de Gustave Doré
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Versos e Imagens em uma Noite Insone.

Paul Klee - "Carnaval nas Montanhas" - 1924

"O Monte e o Rio"
(Pablo Neruda)

Na minha pátria tem um monte.
Na minha pátria tem um rio.

Vem comigo.

A noite sobe o monte.
A fome desce o rio.

Vem comigo.

E quem são os que sofrem?
Não sei, porém são meus.

Vem comigo.

Não sei, porém me chamam
e nem dizem "sofremos".

Vem comigo.

E me dizem:
"Teu povo,
teu povo abandonado
entre o monte e o rio,

com dores e com fome,
não quer lutar sozinho,
te está esperando, amigo".

Ó tu, a quem eu amo,
pequena, grão vermelho
de trigo,

a luta será bela,
a vida será dura,
mas tu virás comigo.
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Descobertas Literário-Musicais num Botequim em Botafogo.

André Dahmer, "The Botika Hotel", janeiro de 2009.

Segunda à noite, num botequim em Botafogo, eu, a Vê e o André Dahmer jogávamos conversa fora sobre quadrinhos, projetos e inúmeras coisas mais, quando no meio do papo surgiu – mencionado pelo André - o nome do Botika. Poeta, músico, compositor e romancista, o cara é, nas palavras do Dahmer (que gosta tanto dele que já postou no Blog dos Malvados um desenho - que reproduzo acima – em homenagem à figura!), um puta talento. Chegando em casa, depois de muitas cervejas, fui procurar no You Tube o vídeo de uma canção do Botika, “Mais de Uma Janela”, gravada pelo Qinho (da banda Vulgo Qinho & Os Cara) e muito elogiada pelo André. Realmente a música é bem legal, com um refrão que gruda nos ouvidos, uma melodia gostosa e uma letra aparentemente despretensiosa, mas com altas sacações. Além disso, o vídeo também ficou muito interessante, com suas imagens fragmentadas e várias referências visuais - concretas e simbólicas - a janelas. Porém, confesso que não gostei muito desta gravação: a música merece um registro melhor – fora do já batido “Voz e Violão” - e um arranjo mais elaborado. Mas o André tem razão: o cara é realmente bom! Já encomendei em uma livraria virtual um exemplar de “Uma Autobiografia de Lucas Frizzo”. Estou curioso para ver (e ler) como é o Botika romancista.

Confira o vídeo de "Mais de uma Janela":

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Registros das Viagens de um Magistral "Poetinha" ao Lado de Lá do Atlântico.

Em novembro de 2008, nos primeiros meses de existência do deste blog, escrevi um post sobre um episódio extremamente marcante da trajetória de Vinicius de Moraes. Durante uma apresentação em Portugal no dia da decretação do AI-5, o poeta - angustiado com as notícias que recebia do Brasil - declamou os versos de “Pátria Minha”, enquanto Baden Powell o acompanhava ao violão, dedilhando o Hino Nacional Brasileiro. Nos meses seguintes, com o acirramento do regime ditatorial, aquele instrumento de arbítrio acabaria interrompendo a carreira de Vinicius como diplomata. Naquele dia 13 de dezembro, porém, após o concerto em Lisboa, o "poetinha" viveu outro momento memorável, ao enfrentar o protesto de estudantes salazaristas que o esperavam à saída do teatro. Ao invés de seguir os conselhos que lhe deram para se retirar pelos fundos e evitar a multidão, Vinicius preferiu enfrentar os manifestantes de peito aberto. Parando diante deles, abriu um exemplar de sua antologia e começou a declamar a "Poética I". Diante disto, um dos jovens tirou a capa do seu traje estudantil e a colocou no chão para que ele pudesse passar sobre ela, na tradicional e secular homenagem acadêmica prestada nas universidades portuguesas, sendo imediatamente imitado pelos demais.

Alguns dias depois, em 19 de dezembro, às vésperas da partida do poeta para Roma, a cantora Amália Rodrigues organizou em sua casa um de seus famosos e habituais saraus, desta vez tendo como convidado de honra o seu amigo brasileiro. Além de Vinicius e Amália, este encontro contou com a presença de grandes nomes da literatura e da música portuguesas como David Mourão-Ferreira, Natália Correia e José Carlos Ary dos Santos. Assim, essa noite memorável transcorreu entre poemas, canções e histórias cantadas e contadas pelos presentes, ao som das guitarras portuguesas e do violão e animada por generosas doses de bebida e amizade. Na ocasião, o diretor da gravadora de Amália, ao saber do sarau que iria acontecer na casa de sua artista, para lá deslocou um engenheiro de som que, através de microfones ocultos, conseguiu registrar toda aquela reunião. Alguns meses depois, tais gravações foram lançadas em Portugal na forma de um álbum duplo, com o poeta David Mourão-Ferreira assumindo a função de narrador do que ocorreu nessa noite, em um registro feito posteriormente em estúdio. Em 2009, finalmente, este disco foi lançado no Brasil, em uma primorosa edição – como é de hábito – da gravadora Biscoito Fino: é um CD belíssimo intitulado “Amália/Vinicius”. Nele, poemas declamados, fados e sambas misturam-se harmonicamente, compondo uma rica amostra do que há de singular e original na cultura luso-brasileira.

Em 1969, de volta a Portugal, Vinicius participou de um recital na Livraria Quadrante, em Lisboa, onde declamou diversos de seus poemas. Este evento foi gravado e lançado em forma de disco pela gravadora Festa, de Irineu Garcia, naquele mesmo ano, com o título de “Vinicius em Portugal”. Desde a saída de cena desta gravadora no início dos anos 70, tal disco nunca mais foi relançado tornando-se uma raridade disputada por colecionadores. Há alguns anos atrás, porém, por iniciativa da sobrinha de Irineu, a artista plástica Gracita Garcia Bueno, o acervo da Festa começou a ser gradualmente relançado e finalmente, em 2007, “Vinicius em Portugal” voltou às lojas em forma de CD. Dentre os poemas gravados neste belo álbum, destaco “Sob o Trópico de Câncer”, composto pelo poeta entre 1960 e 1969 e o maravilhoso “O Desespero da Piedade”, que compartilho abaixo.

Enfim, são dois grandes CDs que registram as passagens de um dos nossos maiores poetas e compositores populares por Portugal, lá do outro lado - como escreveu Vinicius e cantou Amália - deste “mar que existe entre nós dois/para nos unir e separar".

Clique no Player e ouça “O Desespero da Piedade”, do disco “Vinicius em Portugal”:

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Poesia em uma Manhã de Sol.

O Traço do Mestre Carlos Zéfiro
Ilha

(David Mourão-Ferreira)

Deitada és uma ilha. E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha. Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

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Trilha Sonora do Dia: Joy Division com "Love Will Tear Us Apart".

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