Há um mito em torno da idéia de transferência de votos por lideranças políticas cuja discussão está em voga nesse momento. Uma razão para que o tema esteja na moda é a sucessão de Lula em 2010. Com o quadro atual, o governo Lula ostentando altos índices de aprovação, o PT sem candidato natural e o principal partido de oposição com dois fortes postulantes – Aécio e Serra -, a expectativa é que Lula possa eleger seu sucessor com base em sua incrível capacidade de transferência de votos. O fato de ser uma liderança política carismática reforça essa crença. Dessa forma, mesmo possuindo bons candidatos, a oposição ao governo Lula poderia morrer na praia, vendo Lula eleger um aliado para sucedê-lo. Um teste atual para a força do fenômeno da transferência de votos acontece na eleição para a prefeitura de Belo Horizonte, em que duas figuras políticas de peso - Aécio Neves (PSDB) e Fernando Pimentel (PT) -, com administrações bem avaliadas, tentam eleger um candidato-poste para a prefeitura do município. Havendo êxito na empreitada, estaria comprovado o tal fenômeno da transferência de votos.
Todavia, o que realmente importa para o eleitor é saber se o candidato representa a continuidade administrativa ou a mudança. Como tendência geral, o eleitor deseja continuidade de governos bem avaliados. De outro lado, se o mandatário tem alto índice de rejeição, a tendência é que a eleição seja dominada pelo desejo de mudança. No primeiro caso, o candidato governista tem ampla vantagem. No segundo, a vitória eleitoral é uma tarefa bem mais tranqüila para a oposição. Somente circunstâncias muito especiais podem alterar esse quadro. Essa tendência do eleitorado pode ser verificada na maioria das eleições (seja municipal, estadual ou federal), sendo uma regra. Os casos excepcionais são a exceção que confirmam a regra. Em 2010, caso o governo Lula obtenha os índices de avaliação obtidos hoje, é natural que o eleitor deseje continuidade administrativa. Uma candidatura de oposição – Serra ou Aécio – para ter sucesso deverá preservar o governo Lula, inclusive adotando algumas de suas bandeiras – isto é, dialogar com o eleitorado de Lula. Um candidato do governo terá maior facilidade de associar-se ao governo Lula, e é uma vantagem que não pode ser menosprezada. Porém, o desejo de continuidade não pode ser confundido com transferência de votos.
Em Belo Horizonte, os governos municipal e estadual têm aprovação alta. No entanto, não devemos conferir o mesmo peso para as avaliações da esfera municipal e estadual, pois o que está em jogo é a administração local. Nesse caso, a eleição de Belo Horizonte é claramente de continuidade administrativa. Significa dizer que o candidato que identificar com maior êxito à administração municipal tem alta chance de sair vitorioso. Assim, a figura do Pimentel é muito importante. Quanto mais Márcio Lacerda (PSB) identificar-se com o prefeito Pimentel, maiores serão suas chances de vitória. Aécio, bem mais conhecido do eleitor do município, pode fazer pouco com sua imagem associada ao candidato Márcio Lacerda (PSB). Há o risco de trazer alguma confusão na cabeça do eleitor, na medida em que o PSDB sempre atuou como oposição à administração petista de Belo Horizonte. Assim, o mesmo eleitor que avalia positivamente o governo Aécio, deseja a continuidade da administração local. Tanto é verdade que o partido de Aécio, o PSDB, não possuía nenhum candidato competitivo nessa eleição, a despeito da popularidade elevada de seu governo. Para a maioria dos eleitores, bom relacionamento entre esferas administrativas não tem o mesmo significado de continuidade.
Para complicar o cenário, o candidato da aliança Aécio-Pimentel enfrenta uma candidata que desde 1993 está associada à administração municipal. É praticamente impossível emplacar em Jô Moraes (PC do B) a pecha de oposição (ou de mudança administrativa), mas o mesmo não pode ser dito com relação à candidatura de Márcio Lacerda (PSB). Se o eleitor identificar que Jô Moraes (PC do B) representa a continuidade administrativa, enquanto Márcio Lacerda (PSB) a mudança (ou oposição), a articulação de Aécio-Pimentel pode não funcionar. Não é que a transferência de votos não funcionou, é que o poder da liderança política de transferir votos para seu candidato tem óbvias limitações.
Mas como representar a mudança (ou oposição) com o apoio do prefeito? Em 1996, Patrus Ananias (PT), então prefeito de Belo Horizonte, fez de tudo para o PT apoiar a candidatura de seu vice, Célio de Castro (PSB). O partido lançou Virgílio Guimarães (PT), juntamente com outros tradicionais aliados na administração municipal, tendo o prefeito respeitado a decisão do seu partido e apoiado a candidatura petista. Célio de Castro (PSB) saiu candidato com apoio de outros partidos, alguns de oposição à administração, mas com uma proposta de continuidade, e saiu-se vencedor. Naquela época, a administração de Patrus era bem avaliada, e a população queria um governo de continuidade. Virgílio Guimarães (PT) apresentou um projeto de mudanças com relação à administração Patrus, entrando em choque com o desejo do eleitor do município.
O eleitor na época entendeu que o candidato Célio representava a continuidade, sendo que Virgílio ficou como candidato da mudança. Não era o caso de representar oposição ao partido do poder, que era o PT, mas à administração vigente na época, que também era PT. No mesmo pleito, o governo de Eduardo Azeredo (PSDB), na esfera estadual, obtinha índices de aprovação elevados no município. Todavia, o seu candidato à prefeitura, Almicar Martins (PSDB), ficou na lanterninha como terceiro colocado, muito abaixo dos principais postulantes ao cargo. Ou seja, a população aprovava o governo Azeredo (PSDB), bem como a administração de Patrus Ananais (PT), e como a eleição era local, queria uma continuidade da administração do município, não um candidato de oposição que simbolizava a mudança. O elevado índice de aprovação de Azeredo não serviu de nada para seu candidato.
Não é intenção comparar a liderança política de Azeredo à época com Aécio de hoje, e o cenário atual é bastante distinto, pois o candidato do prefeito é o mesmo do governador. É claro que há um complicador relevante nessa eleição: a desproporcional vantagem da campanha Márcio Lacerda (PSB) com relação a seus concorrentes, tanto no quesito de recursos econômicos quanto de máquina política, e ainda de horário eleitoral gratuito. Porém, a vitória ou derrota de sua candidatura deverá ser explicada pela capacidade de associação ou não com a continuidade da administração municipal. De todo modo, a importância do fenômeno de transferência de votos é mensurada com exagero, na medida em que não leva em consideração o desejo de continuidade ou de mudança do eleitor.