Mostrando postagens com marcador Fim de Ano. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fim de Ano. Mostrar todas as postagens

Auld Lang Syne



Should auld acquaintance be forgot
and never brought to mind?
Should auld acquaintance be forgot
and days of auld lang syne?

For auld lang syne, my dear,
for auld lang syne,
we'll take a cup of kindness yet,
for auld lang syne.

Should auld acquaintance be forgot
and never brought to mind?
Should auld acquaintance be forgot
and days of auld lang syne?

And here's a hand, my trusty friend
And gie's a hand o' thine
We'll tak' a cup o' kindness yet
For auld lang syne
Clique para ver...

Pronunciamento de fim de ano da presidenta Dilma Rousseff

Clique para ver...

And in the end...

Diego Rivera, "Vendedora de Flores", 1949.

Escrevi pouco neste blog em 2010. Na verdade, escrevi muito neste ano que finda, porém outros gêneros de escrita, pretensamente "mais sérios", publicados em outros lugares. Na verdade, acho que tenho estado tão pesado, que não consigo mais escrever textos leves, como os que usualmente publicava por aqui. Mas quem sabe, em 2011, eu volte à velha forma e consiga produzir posts que tenham, pelo menos, uma ínfima fração da inteligência e da sensibilidade dos pequenos grandes textos de Eduardo Galeano, em "O Livro dos Abraços" (oh, santa pretensão!)? Mas enquanto, este dia não chega compartilho aqui - com os abnegados que ainda acompanham este blogueiro relapso - um textinho genial desse delicioso livro do escritor uruguaio.

O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso que afinal Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha,, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.
Clique para ver...

Vivendo em Tempos Interessantes: Saudações ao Futuro que Chega.

Tarsila do Amaral - "Carnaval em Madureira" - 1924

Eric Hobsbawm, o grande historiador britânico, vem reiterando incessantemente nos últimos anos que o grande programa político destes nossos dias deve ser a retomada e a defesa dos valores iluministas, como um contraponto necessário ao irracionalismo e a barbárie. Posso dizer que a adesão – mas sem perder o espírito crítico e uma boa dose de iconoclastia – a este programa tem marcado o “Abobrinhas Psicodélicas” neste pouco mais de um ano de existência. Neste tempo, passei a ter uma noção efetiva do que representa hoje a grande rede e da capacidade daquilo que vem sendo chamado de “blogosfera”, de intervir e de influenciar o real. Sem ufanismos ou otimismos exagerados, percebo hoje que a “guerrilha virtual” levada a cabo por milhares de pessoas em todo o Brasil tem conseguido causar alguns pequenos estragos na, até agora, intransponível barreira midiática. É lógico que ainda estamos longe da quebra do monopólio da informação, mas – pela primeira vez – vemos os senhores da mídia acusando os golpes que vem sofrendo das fundas cibernéticas dos inúmeros “Davis” da internet. Neste sentido, os blogueiros estão entre os primeiros que perceberam, consciente ou inconscientemente, o fenômeno que foi traduzido em palavras pelo teólogo e deputado democrata-cristão alemão Heiner Geibler: “Antigamente, nas revoluções, as estações de trem eram ocupadas. Hoje, ocupamos conceitos”. Assim, o que começou meio que na brincadeira – um espaço para exorcizar fantasmas e também para publicar textos que fugissem dos padrões mais rígidos dos artigos acadêmicos que habitualmente escrevo – acabou se tornando um gostoso vício e, por que não, uma pequena trincheira onde eu exponho e debato idéias. E neste relativamente curto período de existência do blog, encontrei diversos companheiros e companheiras de caminhada que participaram – concordando ou discordando – das discussões aqui travadas e que, principalmente, mostraram que apesar de aparentemente estarmos nadando contra a corrente, ainda há espaço para a construção de utopias coletivas. Sem sombra de dúvidas, vivemos em tempos interessantes. E para nós que vivemos no sempre tão propalado “País do Futuro”, eles se mostram mais interessantes ainda, porque parece que, finalmente, o futuro chegou e, ao passarmos da contemplação para a ação, estamos participando de uma pequena revolução silenciosa – à brasileira – que tem atordoado os setores que secularmente foram os fiadores e intermediários da nossa miséria e da nossa dependência. Assim, é com esperança e com ânimo renovado para continuar a "combater o bom combate" que desejo a todos (as) um ótimo 2010 e que deixo aqui dois poemas que traduzem bem o espírito deste blog. O primeiro é da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen e foi escrito dois dias após a Revolução dos Cravos, em abril de 1974; o segundo, é de um grande poeta brasileiro, já citado aqui outras vezes, Eduardo Alves da Costa:

Revolução
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro ínicio
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

27 de Abril de 1974

Não Te Esqueças do Mundo
(Eduardo Alves da Costa)

Ainda que o divino te chame pelo nome
e te ofereça a sua intimidade,
não te esqueças do mundo.
Porque é aqui, entre dores e esperanças
que teus irmãos caminham,
atados aos esquecimento.
E se tu, que recebeste a benção da recordação,
não te importares mais com eles,
quem os receberá na região dos sonhos,
para lhes traduzir o sentido das visões
que os tornam tão próximos dos Deuses?

********************************************************
Trilha Sonora do Dia: "Bom Tempo", de Chico Buarque, cantada por Mônica Salmaso.

Clique para ver...

A Estrela.

Manuel Alegre*

Dedicado "à minha avó Margarida"

Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em Dezembro, no princípio das férias. Primeiro pela colheita do musgo, nos recantos mais húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias despegarem-se da areia, dos muros ou dos troncos das árvores velhas, principalmente da ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que se chamaria hoje as estruturas, ou mesmo infraestruturas, junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes, caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, ao mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde os rios e os lagos, com bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes, caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém.
Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-se logo que era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista baptizava nas águas do Jordão e aquele monte, ao longe, podia ser o Sinai ou talvez o último lugar de onde Moisés, sem lá entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel. Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe, de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas não, saía de cima de uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns amigos, todos a caminho de Belém.
- E a avó?, perguntava eu.
- Eu já estou velha para essas andanças.
De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda não se via a cabana, nem Maria, nem José.
Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que todas.
- Esta é a estrela, dizia a avó.
E era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau, talvez por influência de uma misse de origem russa que em pequeno lhe falava de renas e trenós e de S. Nicolau atravessando as estepes.
Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente / Já chegaram a Belém.”
- Não chegaram nada, atalhava a avó, ainda não.
Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-nos um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela descobria.
- Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo.
Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu ia à janela e via a projecção daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós.
Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao sótão ( nós dizíamos forro ), abria uma velha arca e desempacotava a cabana. Depois, muito comovida, quase sempre com lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José.
- Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós.
Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto.
À noite, quando regressávamos da missa do galo, a que a avó não ia, chegávamos a casa e finalmente estávamos em Belém. A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não éramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio, brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio, tínhamos chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do Oriente, Magos, não conseguia deixar de corrigir o meu pai. Mas mágica, verdadeiramente mágica era a avó. Era ela que fazia o milagre da transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa e levava-nos a todos até Belém. O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos e caminhos que iam para Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até Belém.
Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios que é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido.
Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada de um sexto andar numa velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrot onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrot, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas.
- Conta uma história de Natal do teu país, pediu o velho.
- Só se for a do presépio da minha avó.
- Então conta.
Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua o africano apontou o céu e disse-me: Olha.
E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três.
Então eu perguntei ao africano como se chamava. E ele respondeu:
- Baltazar.
Perguntei ao velho e ele disse:
- Melchior.
E sem que sequer eu lhe perguntasse o eslavo disse:
- O meu nome é Gaspar.
Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai.
- E agora? perguntei a Baltazar.
- Agora, respondeu o africano apontando a estrela, agora vamos para Belém.

Lisboa, 3/10/2000

*Manuel Alegre, poeta e político português, tem sido um dos nomes mais expressivos da esquerda democrática daquele país, nas quatro últimas décadas. Nas últimas eleições presidenciais portuguesas, em 2006, lançou-se como candidato independente e ficou em segundo lugar, obtendo mais de um milhão de votos.
Clique para ver...

Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão.

Para fechar neste blog - espaço de minhas "viagens" e idiossincrasias -, o difícil e complicado ano de 2008, resolvi postar alguns dos mais belos versos escritos por um dos maiores poetas desta língua pela qual sou apaixonado, Carlos Drummond de Andrade, cujos poemas, desde a minha infância (juntos com os de Pessoa, de Sophia, de Bandeira e de tantos outros), têm sido meus companheiros de todas as horas. Adeus, 2008! E que 2009 seja um ano "onde a dor não tem razão"!

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Clique para ver...

And so this is christmas...

Desde bem garoto, percebo que o Natal se aproxima devido a alguns sinais: as rádios começam a tocar “Happy Xmas” – a original, com o próprio John Lennon ou a indefectível versão em português, com a Simone -, a Rede Globo começa a pôr no ar os seu tradicionais – e muito chatos – comerciais de fim-de-ano (“hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa...”) e a anunciar o especial do Roberto Carlos, os grandes bancos fazem comoventes anúncios em que se apresentam quase que como instituições de caridade e a palavra “solidariedade” passa a freqüentar a boca de alguns dos mais execráveis representantes da espécie humana. Confesso que, a cada ano que passa, tenho menos paciência para estas coisas. Esta alegria forçada e este “espírito natalino” imposto - traduzidos na lógica do “consuma, consuma e o que sobrar dê aos pobres”- me indignam cada vez mais. Deve ser a idade: os quarenta anos começam a pesar. Será que é tão complicado perceber que “solidariedade” não é sinônimo de “esmola”, que a ação contra as desigualdades deve ser permanente e durar o ano todo - e todos os anos - e que isto passa necessariamente pela prática política, no mais nobre sentido dessa palavra tão prostituída? Ah, sei lá. Só sei que uma das melhores definições deste nosso Natal consumista foi dada em forma de poema pelo poeta português António Gedeão (1906-1997). Reproduzo-o abaixo:

Dia de Natal

Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopéia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
Clique para ver...

Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya.

Há quase cinquenta anos, Jorge de Sena (1910-1978), um dos maiores poetas portugueses do século XX, escreveu uma belíssima carta-poema intitulada "Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", a partir do quadro "El tres de mayo", pintado em 1814 por Francico Goya. Hoje, ao findar 2008, os seus versos permanecem tristemente atuais em um mundo onde estão ocorrendo atualmente, pelo menos, catorze conflitos armados de grandes proporções. Não pude deixar de pensar nesta carta-poema neste momento em que o ano termina e em que o "Espírito Natalino" se apresenta como sinônimo de consumo e não de solidariedade. Assim, os desejos de Jorge de Sena para seus filhos são os de todos nós que acreditamos que resistir é possível e preciso.

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós.
Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.

Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».

E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.


Lisboa, 25/6/1959
Clique para ver...
 
Copyright (c) 2013 Blogger templates by Bloggermint
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...