O Princípio e o Fim.

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  • sábado, 10 de outubro de 2009
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  • Sábado chuvoso e eu cá sem o mínimo saco para sair de casa. Mas, ao mesmo tempo, não consigo me concentrar nas milhares de coisas que tenho para fazer neste fim-de-semana prolongado (terminar um artigo, corrigir trabalhos, elaborar avaliações, pôr em dia as leituras...). A chuva bate na janela, por onde vejo a cidade vazia e sonolenta. Definitivamente o mau tempo faz com que as pessoas fujam das ruas. Ouço a voz aveludada de Madeleine Peyroux a cantar “Weary Blues” e tenho uma xícara de chocolate quente ao meu lado (Sim, é verdade: eventualmente eu bebo líquidos não-alcoólicos!). Começo a pensar nos tantos livros que caíram em minhas mãos nestes quarenta anos de vida – definitivamente não estou no pique de trabalho – e tento me lembrar qual foi o melhor começo de uma obra literária que eu já li. Lembro-me logo de “Crônica de uma Morte Anunciada”, do Gabriel García Marquez: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros”. Fantástica abertura, mas não é esta. “A Jangada de Pedra”, do Saramago? “Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se”. Maravilhosa, mas também não é esta. Talvez a aparente simplicidade do começo de “O Deserto dos Tártaros”, do Dino Buzzati: “Nomeado oficial, Giovanni Drogo deixou a cidade numa manhã de setembro para alcançar o forte Bastiani, seu primeiro destino. Pediu que o acordassem de noite ainda e vestiu pela primeira vez o uniforme de tenente. Quando terminou, olhou-se no espelho à luz de um lampião de querosene, mas sem sentir a alegria que imaginava”. Não, também não. Vem-me então à cabeça a abertura de um livro lido pela primeira vez na adolescência e depois relido incontáveis vezes: “Um conto de duas cidades”, do Charles Dickens. Decididamente, esta é a melhor de abertura de todos os livros (de ficção) que li:

    Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sensatez, foi a era da tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo à nossa frente, tínhamos nada à nossa frente, íamos todos direto para o céu, íamos todos direto para o lado contrário – em suma, era um período tão parecido com o atual, que algumas de suas autoridades mais destacadas insistiam em que ele fosse recebido, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.

    Continuo a divagar e começo a pensar também sobre qual teria sido o melhor final dos livros que já li. Gosto muito da maneira como Umberto Eco termina “O Nome da Rosa”: “Está fazendo frio no scriptorium, dói-me o polegar; deixo esta escritura, não sei para quem, não sei mais sobre o quê: stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”. Mas não, não é este . Talvez “O Estrangeiro”, do Camus: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”. Ótimo, mas ainda não é o melhor. Forçando a memória, lembro-me então de um fecho maravilhoso para uma obra perfeita: “Cem Anos de Solidão”, do García Marquez. É este:

    Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.

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    Trilha sonora da noite: Madeleine Peyroux, com "Weary Blues".


     
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