Sobre lembranças e esquecimentos - O outro 11 de setembro.


É interessante notar como, mais uma vez, a imprensa brasileira deu menos destaque à lembrança do 11 de setembro de 1973 do que à do 11 de setembro de 2001. Afinal, segundo a lógica dos donos da mídia, é muito mais importante lembrar os ataques às torres gêmeas – quase sempre sem nenhum senso crítico – e destacar o encontro dos “rivais” McCain e Obama nas cerimônias em homenagem aos que neles morreram, do que lembrar o golpe que deu fim à inédita experiência de construção de uma sociedade socialista e democrática na América do Sul. Este "quase silêncio" sobre o golpe que derrubou Allende é bastante eloqüente e, lembrando Jacques Le Goff, é preciso que nos interroguemos sobre os "esquecimentos" e os "hiatos", pois o espaço da memória constitui-se em um permanente campo de batalha. Assim, os "silêncios" e o "não-escrito" são tão reveladores quanto o "dito" e o "escrito". Como incluo-me entre aqueles que insistem em não deixar esquecer, reproduzo abaixo os belos versos do “Réquiem por Salvador Allende”, do poeta português Ruy Belo:

Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi
mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes
primavera no Chile primavera no mundo
Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio
enfrento meu velho Borges o muito meu destino sul-americano
Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo
o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia
talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado
ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal
mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber
embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
quando o irmão Miguel veio pequeninamente pela areia
e convulsivamente me falou da situação no Chile
veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão
mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra
erguem um poema no silêncio só circundante
Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
com eles via a vida com eles via os homens via homens
via problemas de homens e as coisas que via era coisas de homens
hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás
Nos finais de setembro nos princípios de novembro
tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar
dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais
já que projectos sociais projectos cívicos profissionais
ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais
mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças
que caridosamente deram que assim conseguiram
solucionar os prementes problemas do país
Ouvi falar também desse cargueiro Playa Larga
praia comprida mas praia deserta e não só da palavra
pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas
A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia
algum poema terminado alienado algum termo conquistado
tão inefável como por exemplo o do tancazo
atribuído ao golpe orientado por Pablo Rodriguez
homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio
na tentativa vã de destruir frases hoje históricas
do grande cavalheiro que decerto foi Allende
e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo
mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então
se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas
País amável calorosa entrada em santiago
e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas
e que depois de o ter visto e o ter ouvido
ao homem que for homem poderei chamar-lhe
seja qual for o nome Salvador Allende
Que nestas minhas minerais palavras de poeta
vibre um pouco o vigor da tua voz
bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
depois o povo bom de todo o mundo
Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto
os que têm a força mas não têm a razão
pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar
tu mandas-me do mar a ave branca do teu rosto
vento que vem do mar vento que vem do Chile
Aqui neste dia de súbito cinzento
somente povoado pelo meu sofrimento
e pelo pensamento desse sofrimento
voo também vou também eu nesse lenço
que retiro do bolso aqui à beira-mar
e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz
uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar
somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida
ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz
muito obrigada Salvador Allende
obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida
mas não pode levar de vencida a obra por Allende começada
selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer
nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo
Foi no ano de mil novecentos e setenta
ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
que uma coligação do tipo Frente Popular tomou
pela via legal conta do poder no Chile
legalidade sempre respeitada por ti allende
mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela
cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático
falavas tu dizias a verdade
uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes
saíam as palavras na verdade belas como balas
Salvador Allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina
de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento
guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz
essa palavra alada como ave ave não só de Georges Braque
mas de nós todos aves verticais aves a última estação
árvores desfolhadas num definitivo inverno
Allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo
com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos
Allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar
e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala
Pablo Neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
em Las Piedras del Cielo esse livro puríssimo
e são pedras do céu mas mais do que do céu pedras da terra
Sol que te pões e nascerás no Chile
leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas
dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato
e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de Lisboa
nem por sair nas páginas diárias dos jornais
Do Chile chegou-me não há muito a amizade do Hernán
que em Madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas
e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses
e desse país mais comprido do globo veio-me também
o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade
Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país
estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse
oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico
O Washington Post falava já do golpe dias antes do golpe
ninguém delas mas elas encontravam-se ali mesmo
as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas
vestiam mesmo as fardas do exército chileno
esses americanos gente do dinheiro e do veneno
de um veneno talvez chamado dinheiro
que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon
montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos
assunto de política estrangeira americana
Hernán Urrutia meu amigo austral
que em Barajas vi olhar voltar
para mim a cabeça pela última vez
Marcelo Coddo professor em Concepción
com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta Cardenal
e sobre a jovem poesia nicaraguense
e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome
mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso
um certo olhar visível por detrás de uns óculos
talvez hoje quebrados por quem não considera
talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida
embora porventura tenha visto aquela seqüência de Fellini
e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
Escrevo este poema no jornal com as notícias frescas
após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão
e mesmo ter ouvido a voz desse Pedro Moutinho
a voz das afluências ao nosso principal estádio o da Cova da Iria
e dos cortejos presidenciais e dessas tão espontâneas manifestações
voz afinal da CIA e da ITT e dos demais tentáculos
do imperialismo norte-americano
maneira americana de se estar no mundo
de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do Terceiro Mundo
Terceiro mundo ou melhor último mundo
que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos
que marcham mas decerto em vão na direcção
do centro de Santiago onde vingara
a rebelião dos marinheiros vindos de Valparaiso
cabeça dos imensos deserdados deste mundo
Sabíamos decerto um pouco em que consistia
essa via chilena para o socialismo
e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular
e discursos de Allende naquela cidade distante
embora houvesse muito mais notícias nos jornais
e a gente nos cafés falasse mais em futebol
livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite de outono
sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão
donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos
exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas
Era uma vez um chileno chamado Salvador Allende que
fez um grande país de um país pequeno onde
talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança
quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
todos nós fomos um pouco chilenos
Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
que um homem se detenha quando a história caminha
em frente sempre altiva e serena
como mulher de muito tempo sabedora
Posso dizer por certo como há já muitos anos
acerca dos milicianos espanhóis dizia Neruda
Allende não morreste estás de pé no trigo
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Grampos



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Waldick Soriano

Escrevi este texto no dia da morte do Waldick Soriano e enviei-o para algumas pessoas. Agora, publico-o aqui, com pequenas modificações.

Hoje de manhã cedo, quando estava a caminho do trabalho, fiquei tocado ao ouvir no rádio a notícia da morte de Waldick Soriano, aos 75 anos de idade. Waldick foi um dos ícones da minha infância suburbana - ao lado de Chacrinha, Odair José, Reginaldo Rossi e de toda aquela legião de cantores populares que freqüentava assiduamente o programa do "Velho Guerreiro" - e faz parte da memória afetiva da geração que hoje está na casa dos quarenta e que cresceu em frente à telinha vendo programas "trash" e enlatados norte-americanos como "Perdidos no Espaço", "Terra de Gigantes" ou "Túnel do Tempo". Com seu indefectível chapéu, com seu jeitão machista e cafajeste e com suas declarações polêmicas e, às vezes, fascistóides, Waldick compôs um personagem genial, que é um retrato bastante aproximado do "Brasil Profundo", de onde ele veio. Em uma de suas mais conhecidas composições, ele cantava:

Deixei minha cidade tão humilde e pequenina
Pra buscar felicidade e cumprir a minha sina
Eu sonhava ser cantor e ninguem acreditava em mim
Mas eu tinha o meu valor
Lutei muito e agradecido canto assim

A voz do povo é a voz de Deus
Chegou a hora da verdade
Muito obrigado amigos meus
Tudo de bom, felicidade

Eu devo a tanta gente a razão do meu progresso
Hoje estou constantemente nas paradas de sucesso
E ao cantar essa canção tão sincera que nasceu em mim
É feliz meu coração, sofri muito mais venci

E agradecido canto assim...


Os patrulheiros do bom-gosto colocaram todo esse grupo de cantores no gueto musical, classificando-os como "Cafonas" ou "Bregas", determinando aquilo que deve ser ouvido por aqueles que se consideram bem-pensantes ou que aspiram a isto, esquecendo-se que, parafraseando o Millôr, o "bem-pensar" é antes de tudo o livre-pensar. No entanto, boa parte desses mesmos que estigmatizaram Waldick e seus companheiros incensa as letras "nonsense do Djavan ou as "Ego trips" do Caetano ou até acham interessante o "Pop" modernoso do Jorge Vercilo ou da Ana Carolina (não, ainda não consegui digerir o "eu vou de escada para elevar a dor)!. De certa forma, ao estabelecerem este preconceito contra os cantores populares, boa parte dos críticos - que, inclusive, se dizem de 'esquerda' e andaram bebendo na fonte do José Ramos Tinhorão - , em um ato falho (?!). demonstram o seu preconceito em relação a maior parte do povo brasileiro. Em um documentário produzido recentemente - "Waldick Soriano, Sempre no Meu Coração" - , Patrícia Pillar traçou um retrato extremamente sensível do Waldick, mostrando como o velho cantor, totalmente ignorado pela mídia, ainda atraía milhares de pessoas às dezenas de shows que ele fazia por ano pelo interior do Brasil. Insisto: é este "Brasil Profundo" que permanece ignorado pela maior parte das elites culturais brasileiras, que ainda trazem introjetada aquela perspectiva do século passado, desenvolvida pelo Jacques Lambert e por outros, da existência da dicotomia entre os dois brasis: um "arcaico e rural" e outro "moderno e urbano". No entanto, como na canção do Chico, "o tempo passou na janela" e eles não viram: é este Brasil "arcaico" que movimenta boa parte do PIB brasileiro e que está por trás do grande crescimento econômico recente do país; é nele que se concentra boa parte da "nova classe média" que se formou nos últimos anos e que, junto com a população das periferias das grandes cidades, constituem-se na base de apoio do atual governo, criando um fenômeno político que as "classes médias esclarecidas", a grande imprensa e boa parte da academia insistem em não entender (por não conhecerem o Brasil): o "lulismo". Waldick, Odair José, Lindomar Castilho, Reginaldo Rossi, Paulo Sérgio e tantos outros são oriundos deste "outro" Brasil e são dignos representantes do que podemos chamar de "Sonho Brasileiro". Portanto, minhas homenagens a eles.

Um brinde ao Waldick Soriano (com cerveja Caracu)!

Ps. Waldick tem uma música genial que só quem já sofreu as dores do amor consegue apreciar. Ela é obrigatória em todas as serestas que acontecem por este Brasil afora. Os estúpidos censores do regime militar chegaram a proibí-la pela menção à palavra "tortura". Hoje, após saber da morte de Waldick, coloquei-a para tocar no do carro, na versão maravilhosa da banda de rock portuguesa, Clã. Foi minha homenagem a ele. A letra segue abaixo.

Tortura de Amor

Hoje que a noite está calma
E que minh'alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora
Volta fica comigo
Só mais uma noite
Quero viver junto a ti
Volta meu amor
Fica comigo não me desprezes
A noite é nossa
E o meu amor pertence a ti
Hoje eu quero paz
Quero ternura em nossas vidas
Quero viver por toda vida
Pensando em ti
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O Primeiro Post a Gente Nunca Esquece

Para estrear este blog, decidi homenagear um de meus poetas favoritos, o curitibano Paulo Leminski (1944-1989). Transcrevo aqui dois de seus poemas, por sinal, ambos transformados em música: "Dor Elegante" (musicado por Itamar Assumpção) e "O Velho Leon e Natalia em Coyoacán" (musicado pelo Vitor Ramil).

"Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra"


"Desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo"
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Turco com o rabo preso



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