Sobre lembranças e esquecimentos - O outro 11 de setembro.

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  • domingo, 14 de setembro de 2008
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  • É interessante notar como, mais uma vez, a imprensa brasileira deu menos destaque à lembrança do 11 de setembro de 1973 do que à do 11 de setembro de 2001. Afinal, segundo a lógica dos donos da mídia, é muito mais importante lembrar os ataques às torres gêmeas – quase sempre sem nenhum senso crítico – e destacar o encontro dos “rivais” McCain e Obama nas cerimônias em homenagem aos que neles morreram, do que lembrar o golpe que deu fim à inédita experiência de construção de uma sociedade socialista e democrática na América do Sul. Este "quase silêncio" sobre o golpe que derrubou Allende é bastante eloqüente e, lembrando Jacques Le Goff, é preciso que nos interroguemos sobre os "esquecimentos" e os "hiatos", pois o espaço da memória constitui-se em um permanente campo de batalha. Assim, os "silêncios" e o "não-escrito" são tão reveladores quanto o "dito" e o "escrito". Como incluo-me entre aqueles que insistem em não deixar esquecer, reproduzo abaixo os belos versos do “Réquiem por Salvador Allende”, do poeta português Ruy Belo:

    Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi
    mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes
    primavera no Chile primavera no mundo
    Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
    leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio
    enfrento meu velho Borges o muito meu destino sul-americano
    Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
    sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo
    o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia
    talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado
    ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal
    mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber
    embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
    acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
    quando o irmão Miguel veio pequeninamente pela areia
    e convulsivamente me falou da situação no Chile
    veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão
    mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra
    erguem um poema no silêncio só circundante
    Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
    com eles via a vida com eles via os homens via homens
    via problemas de homens e as coisas que via era coisas de homens
    hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás
    Nos finais de setembro nos princípios de novembro
    tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar
    dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais
    já que projectos sociais projectos cívicos profissionais
    ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais
    mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
    mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças
    que caridosamente deram que assim conseguiram
    solucionar os prementes problemas do país
    Ouvi falar também desse cargueiro Playa Larga
    praia comprida mas praia deserta e não só da palavra
    pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas
    A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia
    algum poema terminado alienado algum termo conquistado
    tão inefável como por exemplo o do tancazo
    atribuído ao golpe orientado por Pablo Rodriguez
    homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio
    na tentativa vã de destruir frases hoje históricas
    do grande cavalheiro que decerto foi Allende
    e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo
    mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então
    se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas
    País amável calorosa entrada em santiago
    e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas
    e que depois de o ter visto e o ter ouvido
    ao homem que for homem poderei chamar-lhe
    seja qual for o nome Salvador Allende
    Que nestas minhas minerais palavras de poeta
    vibre um pouco o vigor da tua voz
    bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
    depois o povo bom de todo o mundo
    Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto
    os que têm a força mas não têm a razão
    pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
    Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar
    tu mandas-me do mar a ave branca do teu rosto
    vento que vem do mar vento que vem do Chile
    Aqui neste dia de súbito cinzento
    somente povoado pelo meu sofrimento
    e pelo pensamento desse sofrimento
    voo também vou também eu nesse lenço
    que retiro do bolso aqui à beira-mar
    e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz
    uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar
    somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida
    ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz
    muito obrigada Salvador Allende
    obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
    só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida
    mas não pode levar de vencida a obra por Allende começada
    selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer
    nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo
    Foi no ano de mil novecentos e setenta
    ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
    que uma coligação do tipo Frente Popular tomou
    pela via legal conta do poder no Chile
    legalidade sempre respeitada por ti allende
    mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela
    cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático
    falavas tu dizias a verdade
    uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes
    saíam as palavras na verdade belas como balas
    Salvador Allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina
    de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento
    guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz
    essa palavra alada como ave ave não só de Georges Braque
    mas de nós todos aves verticais aves a última estação
    árvores desfolhadas num definitivo inverno
    Allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo
    com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos
    Allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar
    e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala
    Pablo Neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
    em Las Piedras del Cielo esse livro puríssimo
    e são pedras do céu mas mais do que do céu pedras da terra
    Sol que te pões e nascerás no Chile
    leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas
    dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato
    e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de Lisboa
    nem por sair nas páginas diárias dos jornais
    Do Chile chegou-me não há muito a amizade do Hernán
    que em Madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas
    e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses
    e desse país mais comprido do globo veio-me também
    o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade
    Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país
    estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse
    oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico
    O Washington Post falava já do golpe dias antes do golpe
    ninguém delas mas elas encontravam-se ali mesmo
    as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas
    vestiam mesmo as fardas do exército chileno
    esses americanos gente do dinheiro e do veneno
    de um veneno talvez chamado dinheiro
    que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon
    montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos
    assunto de política estrangeira americana
    Hernán Urrutia meu amigo austral
    que em Barajas vi olhar voltar
    para mim a cabeça pela última vez
    Marcelo Coddo professor em Concepción
    com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta Cardenal
    e sobre a jovem poesia nicaraguense
    e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome
    mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso
    um certo olhar visível por detrás de uns óculos
    talvez hoje quebrados por quem não considera
    talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida
    embora porventura tenha visto aquela seqüência de Fellini
    e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
    Escrevo este poema no jornal com as notícias frescas
    após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão
    e mesmo ter ouvido a voz desse Pedro Moutinho
    a voz das afluências ao nosso principal estádio o da Cova da Iria
    e dos cortejos presidenciais e dessas tão espontâneas manifestações
    voz afinal da CIA e da ITT e dos demais tentáculos
    do imperialismo norte-americano
    maneira americana de se estar no mundo
    de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do Terceiro Mundo
    Terceiro mundo ou melhor último mundo
    que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos
    que marcham mas decerto em vão na direcção
    do centro de Santiago onde vingara
    a rebelião dos marinheiros vindos de Valparaiso
    cabeça dos imensos deserdados deste mundo
    Sabíamos decerto um pouco em que consistia
    essa via chilena para o socialismo
    e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular
    e discursos de Allende naquela cidade distante
    embora houvesse muito mais notícias nos jornais
    e a gente nos cafés falasse mais em futebol
    livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite de outono
    sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão
    donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos
    exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas
    Era uma vez um chileno chamado Salvador Allende que
    fez um grande país de um país pequeno onde
    talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança
    quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
    todos nós fomos um pouco chilenos
    Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
    que um homem se detenha quando a história caminha
    em frente sempre altiva e serena
    como mulher de muito tempo sabedora
    Posso dizer por certo como há já muitos anos
    acerca dos milicianos espanhóis dizia Neruda
    Allende não morreste estás de pé no trigo
     
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