Tradução Caia Fittipaldi
The New Yorker http://www.newyorker.com/online/blogs/newsdesk/2010/08/chasing-wikileaks.html
Marc Thiessen[1] serviu-se do meu artigo “No Secrets. Julian Assange’s mission for total transparency” (Sem segredos. A missão de Julian Assange pela transparência total, 7/6/2010[2]) na revista The New Yorker, para construir sua acusação contra Julian Assange, editor do site WikiLeaks, e argumentar que a divulgação de “segredos militares” dos EUA é crime suficiente “para levar Assange aos tribunais.”
Usar os militares para essa finalidade é péssima ideia. WikiLeaks talvez não seja organização convencional de notícias, mas não é “um sindicato do crime”, como diz Thiessen. E a ideia de que o Departamento de Defesa deva cuidar de destruir websites privados (com sede em países amigos), por causa do que esses sites publiquem, sugere abuso extremo da força militar.
Em vez de tratarem a página WikiLeaks como se fosse célula terrorista, os militares farão melhor se aceitarem que aquele é um produto da moderna idade da informação, que veio para ficar, seja como for, e não importa quem a dirija ou edite.
Os argumentos de Thiessen fazem lembrar os da indústria musical contra o Napster – website do qual, nos anos 90s se podia baixar música sem considerar qualquer copyright. Nos dois casos, esquece-se completamente a revolução tecnológica e cultural que foi a Internet, para a troca de informação. Em 2001, depois de longa batalha legal, a Recording Industry Association of America [Associação das Indústrias Gravadoras dos EUA] conseguiu extinguir o Napster. Imediatamente depois teve de assistir, impotente, a descentralização dos mesmos serviços, que se espalharam por vários outros sites[3]. A pirataria pulverizou -se, tornou-se difusa e ainda mais difícil de controlar. Só recentemente a indústria entendeu que ganha mais com a partilha de arquivos, do que com a perseguição ‘por lei’ aos piratas, e há muitos executivos da mesma indústria que falam sobre o Napster como oportunidade que não entenderam e perderam.
Calar o site WikiLeaks – supondo-se que seja possível – será meio certo para apressar o surgimento de outros sites semelhantes, concebidos por criadores ‘pós-WikiLeaks’, que saberão oferecer serviços ainda mais difíceis de controlar. Melhor abordagem, para o Departamento de Defesa, é considerar o WikiLeaks como concorrente, não como ameaça; e reconhecer que o espírito de transparência que motiva Assange e seus voluntários é partilhado por uma vastíssima comunidade de pessoas que usam a Internet. Atualmente, o governo tem duas modalidades ‘de WikiLeaks’: o Freedom of Information Act (FOIA)[4] e o Mandatory Declassification Review [5]. O problema é que são mecanismos muito lentos e inconsistentes, em boa parte porque o governo parece naufragado numa quantidade imensa de dados que, para começar, jamais deveriam ter sido classificados como secretos – fenômeno conhecido “supersecretização” [ing. Overclassification].
Gerenciar tamanha quantidade de dados mal classificados não se faz sem custo técnico, mas também há um problema humano: o pessoal da comunidade de inteligência inevitavelmente perderá parte da fé de que se alimenta, só de ver que ‘a comunidade de inteligência’ opera um sistema que não consegue distinguir com clareza o que é segredo e o que não é. O sistema desvaloriza o sigilo legítimo.
Dentre as amplas reformas que fatalmente terão de ser feitas depois do recente vazamento de documentos pela página WikiLeaks, de mais de 70 mil relatórios militares considerados secretos, poucas serão mais efetivas do que a triagem do que há, com vistas a divulgar, não a esconder, a maior quantidade possível de dados e documentos.
Vale a pena lembrar que o primeiro feito do site WikiLeaks a atrair atenção internacional foi um vídeo, filmado de dentro de um helicóptero Apache, em 2007, no Iraque, que documentou a ação de soldados dos EUA assassinando, no total, 18 pessoas. A agência Reuters lutou muito para obter acesso a esse vídeo valendo-se dos direitos assegurados pela legislação FOIA (dois jornalistas da Reuters morreram naquela ação).
Se os militares tivessem liberado o vídeo quando lhes foi solicitado, e tomado as medidas que considerassem necessárias para proteger suas operações, jamais o vídeo teria aparecido ao mundo sob o título “Collateral Murder” [Assassinato Colateral] – dado pelo site WikiLeaks –, pela suficiente razão de que não haveria o que vazar. Mesmo depois de Assange ter divulgado o vídeo, e apesar de os eventos filmados já terem sido noticiados em detalhe por um repórter do Washington Post, até julho passado os militares ainda não haviam liberado o vídeo.
Há uma lição simples a extrair disso tudo: sejam quais forem as imperfeições do site WikiLeaks como detonador do processo, é evidente que há problemas na comunidade de inteligência dos EUA.
É possível tentar manter segredos pela via de caçar e prender quem os vaze, como Thiessen propõe, para mostrar que esse comportamento implica altos riscos, como a prisão. Mas há outros meios: aprender a operar com menor quantidade de segredos, por exemplo; gerenciar melhor os segredos – e talvez, com o tempo, aprender a fazer praticamente o mesmo trabalho que WikiLeaks faz.
Não se conhece hoje, no mundo, melhor meio, inclusive para o Estado, de implementar a legislação FOIA. É rápido, uniforme, amplo e de fácil acesso. Pode-se pensar, inclusive, em meios pelos quais as próprias fontes dentro das agências federais postariam material interno, depois de um processo de revisão e redação. Seria saudável para o público e também para os encarregados de zelar pelos segredos do Estado.
[2] Em inglês em http://www.newyorker.com/reporting/2010/06/07/100607fa_fact_khatchadourian (19 pp., matéria enormíssima).
[3] Pode-se ler o processo em http://www.fraber.de/gem/Napster%20and%20the%20Music%20Industry%20010617.pdf
[4] Para ver o que é, http://www.state.gov/m/a/ips/
[5] Nos dois casos, são páginas do Departamento do Estado, pelas quais os cidadãos podem pedir vistas de documentos classificados como secretos. Para saber o que é um requerimento desse tipo, ver http://www.epa.gov/open/MandatoryDeclassificatio nReview_040610.pdf