Para a teóloga e especialista em hebraico Ellen Van Wolde (foto), da Universidade Radboud, na Holanda, "Agora é insustentável a visão tradicional de Deus como o criador" (Telegraph.co.uk). Isso porque essa visão estaria apoiada em um erro de tradução milenar, o qual levou filósofos como Agostinho e Tomás a supor que o Gênesis 1 trataria da criação do universo a partir do nada.
O estudo de Van Wolde foi publicado em uma edição de 2009 do Journal for the Study of the Old Testament [Revista de Estudo do Velho Testamento]:
O exame do verbo ברא [bara] no Gênesis 1 leva à conclusão que o verbo ברא em Gênesis 1 não significa "criar", mas "separar". Essa hipótese é subsequentemente testada contra evidência externa da literatura cognata na Mesopotâmia. Nesses relatos mesopotâmicos da criação, as linhas de abertura frequentemente descrevem os atos (divinos) de separação do céu e da terra. O verbo sumérico bad e o verbo acadiano parasu empregados nesses textos designam claramente "separar". Evidência textual da Bíblia hebraica também parece suportar essa hipótese. Por exemplo, o fato que na Bíblia hebraica o substantivo "criador" nunca é expressado com o particípio de ברא, mas sempre com o particípio de outros verbos. Assim, baseado em evidência linguística e textual interna e externa e em uma argumentação controlada, é altamente plausível e muito provável que o tipo de ação expressada pelo verbo ברא em Gênesis 1 é de um caráter espacial e físico muito concreto, e pode ser apresentado como "separar".
O artigo de Van Wolde foi resenhado por Jones Mendonça, em 15 de outubro de 2009, no blog Numinosum Teologia:
[...] a discussão gira em torno de novas possibilidades para a tradução do verbo hebraico bara (בָּרָא). Tradicionalmente esse verbo tem sido interpretado como dando a ideia de uma “criação do nada (ex nihilo)”. A autora faz comparações entre o capítulo 1 de Gênesis e o famoso e extremamente antigo mito sumeriano da criação. Este último relato não fala de uma criação a partir do nada, mas narra a organização do mundo em três níveis: céu, terra e mundo inferior, separados pela ação de uma das inúmeras divindades existentes. Para a autora do artigo, a Bíblia seguiria o mesmo padrão do relato mesopotâmico, mas foi interpretada de forma diferente ao longo da história do pensamento judaico cristão.
Na página 10 a autora chama atenção para os versículo 21 do primeiro capítulo do Gênesis. Para ela, esse versículo descreveria os tipos de animais que habitam um mundo existente em três níveis: mundo inferior (monstros marinhos), mundo intermediário (répteis) e mundo superior (aves). O texto teria a intenção de narrar a separação, e não a criação a partir do nada, dos animais que habitam esses três níveis.
Mendonça também mostra que o estudo de Van Wolde é importante para quem estuda filosofia medieval, pois o resultado de Van Wolde põe em xeque a ideia de criação a partir do nada, a qual não era questionada por filósofos medievais como Agostinho e Tomás. Ou seja, uma parte importante da teologia cristã estaria baseada em um erro de tradução.
O jornal Telegraph.co.uk de 8 de outubro de 2009 traz mais informações. Para Van Wolde, o tema do início do Gênesis não é o início dos tempos, mas o início de uma narração. O livro está contando a história de um personagem, Deus, o qual está separando céu e terra pré-existentes, de modo a torná-los habitáveis. Esse personagem criou os animais, incluindo humanos, mas não criou céu e terra. Ou, ao menos, não é disso que o livro se ocupa.
Ellen Van Wolde já trabalhou com o novelista e semioticista Umberto Eco, e é autora dos livros Words Become Worlds (1994), Narrative Syntax and the Hebrew Bible (1997) e Job 28.
A foto vem do blog Punto Franco.