Seja qual for o desfecho da crise que atingiu a medula do Senado brasileiro e se esparramou pelo Planalto, ela ao menos prestou para nos lançar numa situação paradoxal.
Não é de se esperar que a solução que se consiga alcançar tenha potência suficiente para expelir por completo as toxinas que contaminaram a casa, algumas das quais produzidas ao longo de um tempo histórico dilatado e, portanto, enraizadas nas profundezas da experiência social e das práticas políticas. Não haverá potência sequer para que uma eventual “bancada do bem” – cuja existência, de resto, terá de ser explicitada – cresça como liderança e imponha, no curto prazo, o reerguimento ético e institucional de que tanto se necessita.
Exacerbemos essa impotência e veremos que o único desfecho possível tem muito mais a forma de um armistício do que de uma solução verdadeira e própria.
Mas, por outro lado, o desgaste do Senado – e, por extensão, do Legislativo, do Executivo, dos parlamentares e dos partidos – mostrou ser tão profundo, chegou tão perto do osso, que terminou por produzir uma saturação e criar um ponto de inflexão. Mesmo que não estejam presentes todas as evidências, dá para admitir que uma nova agenda está a se anunciar em meio aos escombros que se acumulam.
Muitas vezes, como se sabe, as sociedades precisam chegar à beira do precipício para reunir forças, curar suas feridas e voltar a construir o futuro. A história brasileira recente é bastante rica a esse respeito. Foi preciso, por exemplo, que a ditadura de 1964 chegasse aos extremos selvagens e arbitrários de 1975 para que se começasse a falar em distensão e a redemocratização ganhasse fôlego para aos poucos empolgar a sociedade. Foi preciso que se atingissem os 230% de inflação anual em 1985 para que tivesse início, com o Plano Cruzado, todo um esforço técnico e político dedicado à estabilização monetária, que finalmente obteria sucesso alguns anos depois. Foi preciso que a lama da corrupção, das negociatas e das camarilhas escorresse pelas frestas do Palácio do Planalto para que se delineasse o caminho do impeachment do Presidente em 1992 e se desse a largada para a inauguração de outro ciclo político no país.
Reconhecer isso não significa aceitar a existência de uma lei férrea, que se manifestaria com força inflexível,. Trata-se somente de admitir a presença de uma tendência inscrita na lógica dos fatos, de uma probabilidade. Houve momentos graves na história recente em que a ultrapassagem não ocorreu, como sabemos. Seria fácil lembrar da crise do mensalão, em 2005, por exemplo. Apesar de ter feito tremer as estruturas da Presidência e do sistema político, ela não impediu que Lula se reelegesse em 2006 nem possibilitou a eliminação dos maus hábitos que impregnam e atropelam as relações entre o Executivo e o Legislativo. Mesmo naquela circunstância, porém, não se saiu com as mãos abanando nem tudo terminou em pizza: uma certa magia se desfez e pelo menos um partido teve de enveredar por uma trilha árdua e desgastante para tentar se reencontrar com a própria história.
Na crise atual, há ingredientes explosivos e o nível do debate desceu tão baixo que dá para aceitar que alguma reação fundada no bom senso e na inteligência política se manifeste no dia de amanhã. Afinal, não estamos num barco inteiramente à deriva, nem se pode dizer que o país consumiu todas as suas reservas de iniciativa, lucidez e criatividade.
Esse, porém, não é o fator mais importante. O combustível principal está em outra parte do mapa. A crise coincide com uma fase aguda de desinteresse social pela política tal como organizada e instituída. A sociedade está se convencendo de que a vida pode ser vivida sem um sistema político ativo. Olha para o sistema atual e percebe que quando ele funciona somente aborrece e cria problemas, e quando não funciona não faz a mínima diferença. Havendo um “pouco” de Estado para prover alguns serviços básicos de segurança, saúde e educação, especialmente para os mais pobres, acredita-se que a vida até melhore.
Tal sentimento avança na sociedade. Perigosamente, aliás, pois pressiona em favor de uma vida menos coesa e solidária, mais dependente do esforço e da iniciativa de cada um, incapacitada para produzir igualdade e garantir direitos para todos, dominada por lógicas administrativas “racionais”, pouco argumentativas e refratárias ao contraditório. Uma vida onde haveria “governabilidade”, mas não democracia. Se a sociedade chegar mesmo a se soltar da política – ou seja, se a política nada fizer para voltar a dialogar de modo positivo com as pessoas e a opinião pública –, então será realmente o caso de prever que nuvens carregadas despontarão nos céus do amanhã.
A crise atual, portanto, coincide com uma extensão sem precedentes da distância entre a política e a sociedade, que ameaça chegar ao divórcio e à ruptura. Esse é o sinal de alerta, a luz vermelha que está a piscar em Brasília.
Como o cenário que se pode vislumbrar não é razoável, nem desejável, como os políticos podem ser ruins o quanto queiram mas não rasgam dinheiro nem dispensam votos, como as pessoas que vivem em sociedade precisam de política e de sistema político do mesmo modo que os corpos vivos precisam de oxigênio, dá para sustentar a hipótese de que estão sendo criadas as condições para um reencontro mais virtuoso entre o político e o social.
Contra essa hipótese pesa sobremaneira o fato de que estão ausentes os protagonistas, os sujeitos dessa transformação, aqueles que colocarão o guizo no gato. O aparecimento deles, porém, é uma questão de vontade política, de determinação, de empenho existencial. É também, evidentemente, uma questão de tempo, de maturação.
A favor dela, porém, pesa o fato de que vivemos em tempos velozes e conectados, em que articulações e movimentos surpreendentes podem irromper à cena num belo dia de amanhã como se nascessem do nada. É algo para se observar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/09/2009, p. A2].
O dia de amanhã
Posted on quinta-feira, 27 de agosto de 2009 by Editor in