Vou deixar os comentários sobre Gaza para outros blogs, que tem feito isto de maneira brilhante e extremamente competente (Grande “Cloaca News”! Valeu, “Abunda Canalha”!), denunciando a farsa da suposta “neutralidade” da mídia na cobertura do conflito (beirou o ridículo “O Globo” de ontem dedicar meia página de seu noticiário internacional a uma manifestação ocorrida em Jerusalém contra o PT, organizada por brasileiros lá residentes, devido ao fato do partido ter definido a ação israelense como “terrorismo de Estado” ). Por isto, pedindo licença ao mestre Veríssimo, vou entrar no clima de “poesia numa hora destas!?”.
Em 1966, José Saramago lançou o livro “Poemas Possíveis”, onde estava uma pequena obra-prima chamada “Fala do Velho do Restelo ao Astronauta” (posteriormente musicada pelo compositor português Manuel Freire) que estabelece uma relação intertextual com a famosa “Fala do Velho do Restelo”, do canto IV de “Os Lusíadas”. Para quem não lembra do clássico de Camões, o Velho do Restelo é aquela que se aproxima das naus de Vasco da Gama, no momento da partida, no porto de Belém e vocifera um feroz discurso contra as navegações, atribuindo a elas todas as desgraças de Portugal e em um dos trechos desta fala, o Velho tece uma crítica contundente ao fato dos portugueses irem tão longe em busca de novos inimigos e conquistas, enquanto o “velho” inimigo batia à porta (numa clara referência à presença moura no norte da África): Deixas criar às portas o inimigo,/Por ires buscar outro de tão longe/Por quem se despovoe o Reino antigo,/Se enfraqueça e se vá deitando a longe? . Pois bem, em meados da década de 1960, em plena corrida espacial – um dos momentos mais “quentes” da Guerra Fria – e com os EUA começando a se afundar no atoleiro do Vietnã, com suas tropas praticando diversos crimes de guerra – uso do Napalm, ataques à populações civis, torturas - , Saramago coloca na boca do venerável ancião uma nova fala, desta vez dirigida aos astronautas que começavam a conquista do espaço (que era, no linguajar da Guerra Fria, a “última fronteira”). A questão é que esta “nova” fala do Velho do Restelo continua impressionantemente atual, mais de quatro décadas depois. E aí, acabamos voltando a Gaza...
Fala do Velho do Restelo ao Astronauta
Aqui, na terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez,
E pusemos em ti nem eu sei que desejo
De mais alto que nós, e melhor, e mais puro.
No jornal soletramos, de olhos tensos,
Maravilhas de espaço e de vertigem:
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalme são brinquedos),
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome.
José Saramago, “Poemas Possíveis”, 1966.