No sábado, 21/8/, a usina nuclear na cidade de Bushehr, no sul do Irã, projeto várias vezes adiado, foi abastecida com combustível atômico. Foi o primeiro passo para a usina, construída pelos russos, entrar em funcionamento em setembro. É a realização de objetivo há muito buscado pelo Irã e que várias vezes foi ameaçado por custosos adiamentos e pelo esforço de EUA e Israel para convencer Moscou a impedir que a usina começasse a operar, pelo menos até que o Irã aceitasse render-se às resoluções da ONU e respectivas sanções.
A secretária de Estado Hillary Clinton disse várias vezes que, na opinião de Washington, Bushehr só poderia começar a operar, se o Irã convencesse o mundo de que não enriqueceria urânio, ou que mudasse de atitude, por efeito das sanções internacionais.
Pelo que se vê, o Irã continua a desafiar essas ‘ordens’. Alaedin Boroujerdi, presidente da Comissão de Segurança Nacional e Política Exterior do Parlamento, disse categoricamente que “as duas questões, do enriquecimento de urânio e de segurança nacional são questões interconectadas”. Em outras palavras, congelar a atividade de enriquecimento de urânio implicaria riscos à segurança nacional do Irã.
“Os russos têm dado sinais de que são confiáveis”, disse Boroujerdi. “Pode estar próxima a hora de reparar nossas relações, para os dois lados, de modo que se possam extrair melhores resultados do potencial que há para atender objetivos das duas nações.” Essas palavras implicam que poderá haver acordo de mais ampla cooperação nuclear entre russos e iranianos, à luz de vários memorandos de entendimento que Teerã e Moscou já assinaram, para outras usinas a serem construídas no Irã.
Agora, dadas as considerações políticas globais e internas na Rússia – onde o primeiro-ministro Vladimir Putin capitalizou os louros por ter apoiado a decisão de construir Bushehr, apesar da resistência do presidente Dmitry Medvedev, mais 'ocidentalizante' –, caberá ao Irã dar sinais de flexibilidade nas negociações nucleares, para diminuir a pressão, sobre a Rússia, que virá das nações ocidentais.
Políticos iranianos, entre os quais Ali Akbar Velayati, conselheiro do Líder Supremo Aiatolá Ali Khamenei, manifestou uma nova disposição dos iranianos para engajarem-se em negociações nucleares com Washington no contexto do Grupo de Viena – EUA, Rússia, França e a Agência Internacional de Energia Atômica [ing. International Atomic Energy Authority (IAEA) – e do grupo “Irã-6” (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha).
É muito provável que esse outono seja estação frutífera para a diplomacia nuclear, se o início das operações da usina de Bushehr for o primeiro passo para acordo multilateral com vistas à troca de combustível nuclear para o pequeno reator de pesquisas em Teerã – ou, em outras palavras, dois movimentos para construir confiança e tentar esvaziar uma crise nuclear. No início do mês, Fidel Castro, muito oportunamente, alertou para o risco de a crise nuclear evoluir para guerra nuclear (ver Castro:
Nuclear sage or siren, Asia Times Online, 12/8/2010, em
http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/LH12Ak01.html).
Do ponto de vista do Irã, alcançar seus dois objetivos-gêmeos – inaugurar a usina de Bushehr e pô-la a funcionar depois de 12 anos de atrasos e adiamentos; e conseguir combustível para o reator de Teerã – é sucesso absoluto, estabelece um novo marco e serve de garantia de pensamento novo, no difícil tema do diálogo com Washington.
“A decisão final nessa questão virá do Supremo Líder Aiatolá Khamenei, o qual já enviou sinais positivos por seus conselheiros, ao ocidente. Se a proposta do ocidente, sobre o diálogo, for proposta séria, o Irã está pronto para dialogar”, disse um professor de ciência política da Universidade de Teerã, conhecido por ser do círculo pessoal de relações do presidente.
Mas permanece o principal desafio que Teerã enfrenta: como alcançar seus objetivos de converter-se em potência nuclear e como sobreviver à pressão das sanções, sem ser obrigado a fazer concessões substantivas?
Afinal, a capacidade para enriquecer urânio já deu ao Irã um status de potência ‘proto-nuclear’, que atende vários dos objetivos de segurança nacional do país, e ganho do qual, portanto, dificilmente o país abrirá mão em troca de algum outro tipo de ganho –, o que não impede que se considerem opções intermediárias. Entre essas opções está a chamada ‘opção de reserva’ e uma inspeção mais rigorosa, pela IAEA, das instalações iranianas. Teerã já negou várias vezes as acusações, por governos ocidentais, de que estaria construindo armas nucleares para aumentar seu poder ofensivo.
Os EUA já disseram que não veem “risco de proliferação” em Bushehr, apesar de Israel ter declarado “inaceitável” o suprimento de urânio enriquecido para combustível do reator nuclear fornecido pelos russos. O canal Fox News citou Yossi Levy, porta-voz do ministro de Negócios Exteriores de Israel, para o qual “A comunidade internacional deve aumentar a pressão para obrigar o Irã a aceitar as decisões internacionais e suspender as atividades de enriquecimento e construção de reatores.”
Isso posto, deve-se considerar também a decisão dos russos, os quais (i) ignoraram a pressão dos EUA para que a inauguração de Bushehr fosse adiada (alegadamente, para que se pudesse analisar melhor o ambiente geoestratégico, que poderia ter consequências também para a segurança da Rússia, se o ocidente decidir manter a estratégia de enfraquecer o Irã) –, (ii) resistiram à expansão da OTAN e (iii) resistiram ao intervencionismo norte-americano.
Em outras palavras, é possível que também se devam considerar, para analisar esse quadro, (i) a razão (geopolítica) pela qual Putin desafiou e derrotou os políticos mais ‘ocidentalizantes’ em Moscou; (ii) as obrigações contratuais que os russos assumiram; e (iii) interesses puramente econômicos.
Quanto a isso, os EUA e a União Europeia (além de Israel) são responsáveis pelas dificuldades geradas pela grandiloquência, pelo radicalismo e pelo exagero de suas posições, seja pela imposição de novas sanções econômicas, que Moscou e Pequim desmoralizaram, seja pelas ameaças excessivas, superdramatizadas, contra o Irã, que criaram cenário inaceitável, do ponto de vista dos interesses de russos e chineses.
Se a situação de ‘confronto’ nuclear não tivesse sido inflada até o ponto em que está hoje, a inauguração de um reator atômico para finalidades de pesquisa e sob total supervisão da IAEA jamais seria objeto de tantos discursos sobre ‘riscos’ e ‘perigos’ e ‘efeitos colaterais’ e respectivas implicações.
Mas, porque os EUA conduziram o processo como o conduziram, a inauguração da usina de Bushehr tem hoje o efeito de torpedo que atingiu em cheio os que defenderam a aplicação de mais sanções – e, isso, apesar de a usina de Bushehr aparecer como exceção nas resoluções da ONU que aplicaram sanções ao Irã.
“A inauguração da usina de Bushehr é prova de que as ameaças que tantos rugem contra o Irã não passam de propaganda e tentativas de intimidar psicologicamente” – disse Kazem Jalali, porta-voz da Comissão de Segurança Nacional e Política Exterior do Parlamento. Mesmo assim, além do efeito psicológico, o bem evidente efeito político da inauguração de Bushehr é sinalizar ao ocidente que nem sanções nem ameaças conseguirão deter o Irã, na marcha para converter-se em potência nuclear.
O Irã exibe sua musculatura militarSimultaneamente, ante tantas ameaças de ataque externo às suas instalações nucleares, o Irã, nos últimos meses, tem cuidado de exibir melhor musculatura militar: já apresentou um avião-robô, que o presidente Mahmoud Ahmadinejad chamou de “embaixador da morte, contra os inimigos do Irã”. A expressão causou (outra vez!) excessivo ‘escândalo’ no ocidente: avião-robô semelhante ao iraniano, mas norte-americano, chama-se “Predador”, nome que jamais escandalizou alguém.
É a terceira geração de mísseis fabricados no Irã, parte do projeto estratégico de defesa do país, de preparar-se para uma “guerra de mísseis” contra alvos duros e “soft” em toda a região do Golfo Persa – e além –, no caso de o país ser atacado. O programa inclui produção em massa de minissubmarinos, barcos equipados com torpedos e mísseis, além de um míssil terra-terra, o Qiam 1. Esse míssil é descrito pelos militares iranianos como “de alta velocidade, invisível ao radar” e pode ser “lançado de vários tipos de plataformas”.
Sempre insistindo em que o Irã investe em melhorar sua capacidade militar para fins exclusivamente defensivos, Teerã tenta, ao mesmo tempo, abrir caminho para o mercado global exportador de armamentos. Semana passada, o ministro da Defesa do Irã Ahmad Vahidi anunciou que o Irã já pode exportar armamentos para cerca de 50 países.
Apresentando as novas armas como prova de que o Irã está cada vez mais “autoconfiante” e cada dia “mais acredita em si mesmo”, altos oficiais do exército têm chamado atenção para o quadro regional, que explica a atual orientação, no Irã, para preparar-se para o que se conhece como “guerra assimétrica”.
Essa estratégia exige, dentre outras coisas, veículos táticos de alta mobilidade; produção em massa de mísseis; capacidades para operar minas; além do que se chama “estratégia de contenção expandida” que visa a “expandir o teatro do conflito” – o que significa atingir os interesses do atacante, no Oriente Médio e em todo o planeta. Khamenei disse recentemente que “se o Irã for atacado, o contra-ataque não será só regional e alcançará cenário muito mais amplo”.
Não há como negar, no Irã, que o país tem grandes setores militares ainda extremamente vulneráveis, sobretudo nos sistemas de defesa antiaérea – motivo pelo qual o Irã espera ansiosamente que a Rússia entregue o sistema de defesa S-300, já comprado e pago, cuja entrega Moscou tem adiado por razões políticas, dentre outras, inclusive por pressão da Arábia Saudita. (...)
Seja como for, a verdade é que nem todos estão satisfeitos com a atenção que o Irã dá à própria postura exclusivamente defensiva. Nas comemorações do Dia da Indústria Militar Iraniana, Ahmadinejad disse que “o Irã jamais iniciará um ataque”. É ideia que talvez ajude a aplacar as angústias de alguns vizinhos árabes no Golfo Persa, mas, ao mesmo tempo, rouba do Irã as vantagens do “ataque preventivo”, tão essencialmente crucial na estratégia militar dos poderes ocidentais – EUA, França e Israel, com certeza.
Em outras palavras, há um fosso disfuncional entre os interesses da segurança nacional do Irã e, do outro lado, uma doutrina militar unidimensional, puramente defensiva, que se autolimita, ao excluir categoricamente a possibilidade de ataque preventivo. É fosso perigoso, que pode paralisar os esforços de contraterrorismo, sobretudo no que tenham a ver com as operações nas regiões fronteiriças, com Paquistão e Iraque.
Vários analistas da política iraniana disseram a esse autor que o Irã entra perigosamente fragilizado, na cada vez mais clara corrida armamentista na região, e não deveria atuar “unidimensionalmente” (o que está fazendo hoje, ao declarar-se “exército de defesa” e rejeitar por princípio o “ataque preventivo”). O “ataque preventivo” é instrumento que o Irã deveria manter acessível, no caso de haver informação sobre ameaça real de ataque ao país. A linha que separa “defesa” e “ataque” pode ter sido traçada com excessiva precisão (movimento que pode ter sido resultado da pressão do ocidente) – em detrimento dos interesses da segurança nacional do Irã.
Tradução: Vila Vudu