
Não conseguiu enfrentar a desigualdade social
O  melhor artigo que li sobre Mandela foi de Slavo Zizek, e foi publicado  no Guardian. Zizek saiu dos lugares comuns da beatificação ubíqua de  Mandela, e produziu um texto que faz pensar.
Seu  ponto central é que Mandela só foi aplaudido por todo mundo, incluídos  aqueles que queriam vê-lo enforcado, porque, paradoxalmente, fracassou.
O  fracasso de Mandela, nota agudamente Zizek, está estampado na abjeta  desigualdade social que persiste na África do Sul, a despeito do fim do  apartheid.
No  campo das especulações, Zizek atribui ao malogro no combate à  iniquidade a “amargura” de Mandela em seus últimos anos de vida.
Um  dos mais aclamados biógrafos de Mandela, o jornalista inglês John  Carlin, admitiu em sua eulogia de Mandela que em sua presidência de  cinco anos ele fez bem menos do que se presumia que fizesse para a  construção de uma sociedade economicamente mais justa.
Onde ambos, Zizek e Carlin, divergem é na explicação para o avanço social tímido da África do Sul sob Mandela.
Para Carlin, ele manobrou com cuidado para evitar uma guerra civil entre brancos e negros.
A  hipótese de Zizek me parece mais interessante. Mandela, de acordo com  sua interpretação, viveu o drama das esquerdas contemporâneas, em toda  parte: ao chegar ao poder, elas como que se acovardam, sob o pavor de  serem punidas pelo assim-chamado “Mercado”, seja isso o que for.
No  fim, as esquerdas no poder acabam mudando, elas mesmas, mais do que o  mundo que deveriam chacoalhar. Em vez de moldar uma nova ordem, elas se  moldam à velha.
Até  no plano simbólico: barbas são aparadas, os guarda-roupas se renovam  com o que há de mais caro na praça, a retórica passa a ser de  conciliação – e por aí vai.
É  como se a esquerda se desculpasse por ser de esquerda e garantisse ao  “Mercado”, de joelhos, que nada será feito muito diferente do que a  direita faria.
Não é preciso muito esforço para associar a visão de Zizek ao Brasil comandado pela esquerda nos últimos dez anos.
O  que foi a Carta aos Brasileiros senão a promessa de que nada de muito  diferente seria feito? E Henrique Meirelles no Banco Central?
“Não mordo”, o PT estava dizendo para a plutocracia.
E  de fato não mordeu. Lula fez questão, no correr de sua presidência, de  dizer que nunca os empresários tinham ganhado tanto dinheiro.
É uma verdade doída, sob o ponto de vista dos 99%, para usar a grande divisa do movimento Ocupe Wall St.
Num  país em que o 1% fez do Estado uma fonte inexaurível de mamatas e  negociatas, algo de que surgiu uma das sociedades mais iníquas do mundo,  não é exatamente animador que num governo de esquerda os mesmos de  sempre continuassem a ganhar tanto ou mais do que sempre ganhavam.
O  espantoso, no caso brasileiro, é que a resposta da direita à  conciliação e à moderação primeiro de Lula e depois de Dilma não foi um  agradecimento ainda que discreto. Foi um ataque brutal ao governo,  comandado por uma mídia que simplesmente abandonou o jornalismo para  tentar repetir o que fez em 1954 e 1964.
Nas  duas ocasiões, a mídia buscou os generais para fazer o serviço. Desta  vez, uma vez que os generais como administradores se desmoralizaram  inteiramente depois do caos que promoveram em todas as esferas, a mídia  tentou os juízes.
A maior lição de Mandela, aplicada ao Brasil, talvez seja a seguinte: para fazer sentido, a esquerda tem que ser de esquerda.