Um trem suicida rumo ao abismo
Por Gabriel Fabri, na revista Fórum:
Considerado um dos maiores pesquisadores em Karl Marx e Walter Benjamin, entre outros autores, Michael Löwy esteve no Brasil para divulgar o seu novo livro, “O Capitalismo como Religião” (Boitempo Editorial), que reúne escritos de Benjamin, das mais variadas fases de sua carreira. Walter Benjamin foi um dos mais importantes teóricos da Escola de Frankfurt.
Em entrevista à Revista Fórum, Löwy explica a relação entre capitalismo e religião na obra de Walter Benjamin, e também discorre sobre questões como o sistema capitalista hoje e o pensamento do romantismo e do surrealismo. Confira:
Como a questão do capitalismo como religião está inserida na obra do Benjamin? Ela a permeia? De que maneira?
Eu não diria que ela permeia a obra do Benjamin. “O Capitalismo como Religião” é um texto de um momento muito específico e não é uma questão que ele voltou a discutir como tal. Em 1921, quando ele o escreveu, ele ainda não era marxista. É um escrito mais de inspiração romântico-libertária, eu diria. Quando ele descobre o marxismo, ele vai retomar a questão, mas sobre um ponto de vista um pouco diferente, quando ele usa o conceito do fetichismo da mercadoria de Marx. Esse conceito tem uma dimensão religiosa, por que o fetichismo é uma forma de culto, de idolatria. Ele se refere à Bolsa de Paris, por exemplo, como “templo da mercadoria”. E usa expressões relacionadas com o tema do fetichismo que, metaforicamente, tem a ver com a religião.
E qual seria o tema que atravessa toda obra de Benjamin?
O tema que atravessa toda sua obra é a crítica ao capitalismo. É uma crítica feroz, que não é necessariamente marxista, no começo não é. Não só ao capitalismo no sentido econômico, mas como civilização – moderna, industrial, capitalista, burguesa. É uma crítica de inspiração romântica a essa civilização. Esse é o fio condutor dessa coletânea de textos.
Na orelha do livro, Maria Rita Kehl afirma que a “unidade dos textos” selecionados se explica a partir do ensaio-título escolhido para a coletânia. Como você pensa essa relação?
Segundo a Maria Rita Kehl, o texto ilumina o sentido da melancolia benjaminiana. Até certo ponto, eu diria que sim. Esse texto fala que o capitalismo conduz ao desespero. Tal desespero suscita a melancolia, o sentimento de que não há saída, de que nada se pode fazer. Eu acho que a melancolia de Benjamin tem a ver com esse desespero, mas não é uma melancolia resignada, ela é ativa. Por exemplo, ele tem um ensaio de 1929 sobre surrealismo que fala da importância do pessimismo para a revolução. Ele diz que o capitalismo pretende nos fechar numa espécie de jaula de ferro, mas que temos que procurar uma saída e, assim, ele analisa várias hipóteses de como sair. Então é evidente nessa busca que Benjamin não se dá por satisfeito com o desespero do capitalismo.
O texto “o capitalismo como religião” é uma feroz crítica a esse sistema. O que torna esse texto atual?
Muito do que o Benjamin diz corresponde de maneira surpreendente ao funcionamento atual do capitalismo. Realmente há algo de um culto religioso na maneira como os representantes do sistema capitalista, seus economistas e os seus meios de comunicação se referem à propriedade privada, ao mercado, à bolsa… Mas talvez a coisa mais surpreendente e atual é quando Benjamin fala da ambivalência, na língua alemã, do conceito de Schuld, que é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Ele acha que essa coincidência é diabólica e que isso está no coração da religião capitalista: a dívida é uma culpa, quem está endividado é culpado. O capitalista está sempre em dívida com o seu capital, o pobre está sempre em dívida porque não tem dinheiro, então todos somos endividados, todos somos culpados. Hoje em dia nós vemos na Europa um discurso teológico de que todos os países que estão em crise estão por culpa deles, porque não trabalham, são preguiçosos, esbanjaram dinheiro. Todo um discurso moralista querendo culpabilizar esses países, quando sabemos que a dívida resulta da lógica do próprio sistema capitalista, de sua irracionalidade profunda.
Faz sentido pensar numa adoração ao capitalismo agora que ele vem sendo tão contestado com a crise econômica?
A crise tremenda do capitalismo atual, a maior sem dúvida depois de 1929, intensifica ao máximo o desespero provocado pela religião capitalista, a tal grau que o desespero se transforma em alguma outra coisa. As pessoas se suicidam ou buscam algum bode expiatório, como os imigrantes, por exemplo. Todavia, para alguns, o desespero leva a colocar em questão a religião capitalista, e mesmo a rejeitá-la. Então, ele pode levar à raiva e à indignação, sendo essa última o traço comum de todos os movimentos de protesto que surgiram, da Primavera Árabe às jornadas de junho no Brasil. Implicitamente ou explicitamente, encontramos também uma rejeição à religião capitalista. Mas em suma, esses movimentos são o desespero transformado em raiva e indignação, o que é, evidentemente, um grande passo à frente.
Benjamin pensou a modernidade do século XIX-XX. Quais aspectos dessa modernidade continuam até hoje?
A modernidade capitalista está baseada no princípio da mudança permanente, ela nunca é a mesma, mudando constantemente, de um minuto para o outro. Tudo muda, mas, como diria o famoso romance “O Gattopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, tudo muda para ficar a mesma coisa: a matriz econômica, social, política e cultural do sistema permanece. A civilização capitalista-industrial, com suas características analisadas por Marx e retomadas por Walter Benjamin, continua igual.
Quais são as principais críticas de Benjamin ao mundo “civilizado” do século XX?
Ele aponta para as potencialidades destrutoras da civilização capitalista do século XX. Então rejeita a ideia de progresso, acha uma mistificação a ideia de que o capitalismo nesse século é mais civilizado ou mais humano do que no passado. Ele tem essa percepção de que o progresso capitalista vai acumulando catástrofes e que o fascismo é algo que corresponde perfeitamente a uma dinâmica possível do sistema: o fascismo e o nazismo são vistos como a expressão mais dramática da barbárie potencial do capitalismo. Assim, Benjamin alerta para os perigos de catástrofe que estão no bojo do sistema capitalista. Um dos elementos apontados é o uso da tecnologia científica mais avançada para a guerra. O texto “As armas do Futuro”, presente na antologia, fala sobre a arma química, por exemplo. Embora Benjamin fosse o mais pessimista e o mais lúcido sobre os perigos da tecnologia a serviço da guerra, nem ele conseguiu prever a arma atômica.
O senhor afirma que a crítica de Benjamin é de inspiração romântica. Como se dá essa relação do Benjamin com o romantismo?
Nos manuais, se apresenta o romantismo como uma escola literária do século XIX. É muito mais do que isso, pois está presente na poesia, na arte, na música, na teoria política, na religião, na economia. O romantismo é uma visão do mundo, que atravessa todos os campos da cultura. Partindo de um texto de Marx, o romantismo é definido como uma crítica da civilização capitalista em nome do passado pré-capitalista. Acho que é exatamente isso, o romantismo é um protesto cultural contra a civilização moderna-industrial em nome de um passado idealizado. Ele surge no século XIII e existe até o século XXI, o que Marx já tinha previsto, dizendo que, enquanto existir o capitalismo, o romantismo será a sua sombra.
O romantismo possui duas vertentes principais. Uma quer restaurar o passado, então ela é conservadora, reacionária. A outra quer uma volta pelo passado, em direção a um futuro utópico, revolucionário. Nessa segunda vertente figura o Jean-Jacques Rousseau, pois ele fala do selvagem como livre, em contraponto ao homem da sociedade moderna que é um escravo, mas o teórico não quer voltar a viver na floresta, e sim restaurar essa liberdade perdida numa sociedade futura, democrática. Essa dialética romântica entre passado e futuro já está em Rousseau e continua ao longo dos séculos XIX, nos socialistas utópicos, e XX, nos surrealistas, entre outras correntes do pensamento. O Walter Benjamin é um exemplo dessa atitude romântico-revolucionária. Ele vai utilizar a teologia e a religião que vem do passado como arma para uma luta revolucionária contra uma civilização burguesa.
Como a visão romântica permanece até hoje?
Você vê o romantismo reacionário nas pessoas que querem restaurar alguns valores aristocráticos e tradicionalismos, como, por exemplo, as correntes religiosas fundamentalistas, que querem resgatar a religião como era no passado. Esse fundamentalismo, todavia, nem sempre é critico do capitalismo, então, nesse caso, não é romantismo, e sim uma variante da religião capitalista. Mas existem formas religiosas retrógradas que rejeitam a civilização moderna, então elas têm essa forma de protesto reacionário.
Há também as formas românticas utópicas ou revolucionárias. No campo religioso, por exemplo, a Teologia da Libertação é crítica à civilização capitalista e se refere a alguns valores do passado, a uma imagem idealizada do cristianismo nas origens e à ideia de que existem tradições comunitárias populares que o capitalismo vai destruindo, mas que devem ser resgatadas. Então eles querem restaurar o espírito comunitário que existiu no passado, mas sem voltar a ele, criando algo novo como, por exemplo, a comunidade de base, que incorpora aspectos da modernidade, entre eles a adesão individual das pessoas.
De que maneira as reflexões do romantismo se prolongam até o surrealismo?
Um dos elementos do protesto romântico contra a civilização é aquilo que o Max Weber chama de “desencantamento do mundo”. O capitalismo acaba com o que é encantamento, dissolvendo tudo em prol da mercadoria, do dinheiro, do mercado, das coisas prosaicas. O romantismo protesta contra isso, sendo uma tentativa de reencantamento do mundo. No caso do surrealismo, essa tentativa tem uma forma revolucionária, pois eles querem reencantar o mundo por meio da poesia, do sonho, do acaso e da utopia, e não por meio da restauração do passado. André Breton, fundador do surrealismo, vê o movimento como uma continuação do romantismo, quando diz que o seu movimento é a “cauda do cometa romântico”. Os surrealistas, além de críticos do sistema, também criticavam a civilização ocidental, sendo violentamente anticolonialistas, pois o colonialismo é a tentativa de impor essa civilização aos povos da periferia. Assim, um dos primeiros atos políticos do surrealismo foi o apoio a um levante árabe no Marrocos, reprimido pelo colonialismo francês. Já em 1925, logo quando é fundado o movimento surrealista, eles vão apoiar essa revolta anticolonial.
Benjamin achava que só uma revolução podia interromper a marcha da sociedade burguesa rumo ao abismo. Essa marcha continua?
A marcha para o abismo continua, mas tem uma forma diferente. Na época de Benjamin, era a marcha à guerra, à II Guerra Mundial. Hoje em dia a mais nítida é a corrida, não “marcha”, para o abismo, que é a catástrofe ecológica. A marcha vai devagar, mas a corrida do trem vai rápido. É evidente que a civilização capitalista industrial está indo como um trem suicida, com rapidez crescente, em direção a esse abismo, o que é uma catástrofe sem procedentes na história humana. Isso está ligado à dinâmica própria do capitalismo, de expansão ilimitada. Mais uma vez se coloca a urgência do que o Benjamin dizia: precisamos de uma revolução, isso é, puxar os freios desse trem louco.
Considerado um dos maiores pesquisadores em Karl Marx e Walter Benjamin, entre outros autores, Michael Löwy esteve no Brasil para divulgar o seu novo livro, “O Capitalismo como Religião” (Boitempo Editorial), que reúne escritos de Benjamin, das mais variadas fases de sua carreira. Walter Benjamin foi um dos mais importantes teóricos da Escola de Frankfurt.
Em entrevista à Revista Fórum, Löwy explica a relação entre capitalismo e religião na obra de Walter Benjamin, e também discorre sobre questões como o sistema capitalista hoje e o pensamento do romantismo e do surrealismo. Confira:
Como a questão do capitalismo como religião está inserida na obra do Benjamin? Ela a permeia? De que maneira?
Eu não diria que ela permeia a obra do Benjamin. “O Capitalismo como Religião” é um texto de um momento muito específico e não é uma questão que ele voltou a discutir como tal. Em 1921, quando ele o escreveu, ele ainda não era marxista. É um escrito mais de inspiração romântico-libertária, eu diria. Quando ele descobre o marxismo, ele vai retomar a questão, mas sobre um ponto de vista um pouco diferente, quando ele usa o conceito do fetichismo da mercadoria de Marx. Esse conceito tem uma dimensão religiosa, por que o fetichismo é uma forma de culto, de idolatria. Ele se refere à Bolsa de Paris, por exemplo, como “templo da mercadoria”. E usa expressões relacionadas com o tema do fetichismo que, metaforicamente, tem a ver com a religião.
E qual seria o tema que atravessa toda obra de Benjamin?
O tema que atravessa toda sua obra é a crítica ao capitalismo. É uma crítica feroz, que não é necessariamente marxista, no começo não é. Não só ao capitalismo no sentido econômico, mas como civilização – moderna, industrial, capitalista, burguesa. É uma crítica de inspiração romântica a essa civilização. Esse é o fio condutor dessa coletânea de textos.
Na orelha do livro, Maria Rita Kehl afirma que a “unidade dos textos” selecionados se explica a partir do ensaio-título escolhido para a coletânia. Como você pensa essa relação?
Segundo a Maria Rita Kehl, o texto ilumina o sentido da melancolia benjaminiana. Até certo ponto, eu diria que sim. Esse texto fala que o capitalismo conduz ao desespero. Tal desespero suscita a melancolia, o sentimento de que não há saída, de que nada se pode fazer. Eu acho que a melancolia de Benjamin tem a ver com esse desespero, mas não é uma melancolia resignada, ela é ativa. Por exemplo, ele tem um ensaio de 1929 sobre surrealismo que fala da importância do pessimismo para a revolução. Ele diz que o capitalismo pretende nos fechar numa espécie de jaula de ferro, mas que temos que procurar uma saída e, assim, ele analisa várias hipóteses de como sair. Então é evidente nessa busca que Benjamin não se dá por satisfeito com o desespero do capitalismo.
O texto “o capitalismo como religião” é uma feroz crítica a esse sistema. O que torna esse texto atual?
Muito do que o Benjamin diz corresponde de maneira surpreendente ao funcionamento atual do capitalismo. Realmente há algo de um culto religioso na maneira como os representantes do sistema capitalista, seus economistas e os seus meios de comunicação se referem à propriedade privada, ao mercado, à bolsa… Mas talvez a coisa mais surpreendente e atual é quando Benjamin fala da ambivalência, na língua alemã, do conceito de Schuld, que é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Ele acha que essa coincidência é diabólica e que isso está no coração da religião capitalista: a dívida é uma culpa, quem está endividado é culpado. O capitalista está sempre em dívida com o seu capital, o pobre está sempre em dívida porque não tem dinheiro, então todos somos endividados, todos somos culpados. Hoje em dia nós vemos na Europa um discurso teológico de que todos os países que estão em crise estão por culpa deles, porque não trabalham, são preguiçosos, esbanjaram dinheiro. Todo um discurso moralista querendo culpabilizar esses países, quando sabemos que a dívida resulta da lógica do próprio sistema capitalista, de sua irracionalidade profunda.
Faz sentido pensar numa adoração ao capitalismo agora que ele vem sendo tão contestado com a crise econômica?
A crise tremenda do capitalismo atual, a maior sem dúvida depois de 1929, intensifica ao máximo o desespero provocado pela religião capitalista, a tal grau que o desespero se transforma em alguma outra coisa. As pessoas se suicidam ou buscam algum bode expiatório, como os imigrantes, por exemplo. Todavia, para alguns, o desespero leva a colocar em questão a religião capitalista, e mesmo a rejeitá-la. Então, ele pode levar à raiva e à indignação, sendo essa última o traço comum de todos os movimentos de protesto que surgiram, da Primavera Árabe às jornadas de junho no Brasil. Implicitamente ou explicitamente, encontramos também uma rejeição à religião capitalista. Mas em suma, esses movimentos são o desespero transformado em raiva e indignação, o que é, evidentemente, um grande passo à frente.
Benjamin pensou a modernidade do século XIX-XX. Quais aspectos dessa modernidade continuam até hoje?
A modernidade capitalista está baseada no princípio da mudança permanente, ela nunca é a mesma, mudando constantemente, de um minuto para o outro. Tudo muda, mas, como diria o famoso romance “O Gattopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, tudo muda para ficar a mesma coisa: a matriz econômica, social, política e cultural do sistema permanece. A civilização capitalista-industrial, com suas características analisadas por Marx e retomadas por Walter Benjamin, continua igual.
Quais são as principais críticas de Benjamin ao mundo “civilizado” do século XX?
Ele aponta para as potencialidades destrutoras da civilização capitalista do século XX. Então rejeita a ideia de progresso, acha uma mistificação a ideia de que o capitalismo nesse século é mais civilizado ou mais humano do que no passado. Ele tem essa percepção de que o progresso capitalista vai acumulando catástrofes e que o fascismo é algo que corresponde perfeitamente a uma dinâmica possível do sistema: o fascismo e o nazismo são vistos como a expressão mais dramática da barbárie potencial do capitalismo. Assim, Benjamin alerta para os perigos de catástrofe que estão no bojo do sistema capitalista. Um dos elementos apontados é o uso da tecnologia científica mais avançada para a guerra. O texto “As armas do Futuro”, presente na antologia, fala sobre a arma química, por exemplo. Embora Benjamin fosse o mais pessimista e o mais lúcido sobre os perigos da tecnologia a serviço da guerra, nem ele conseguiu prever a arma atômica.
O senhor afirma que a crítica de Benjamin é de inspiração romântica. Como se dá essa relação do Benjamin com o romantismo?
Nos manuais, se apresenta o romantismo como uma escola literária do século XIX. É muito mais do que isso, pois está presente na poesia, na arte, na música, na teoria política, na religião, na economia. O romantismo é uma visão do mundo, que atravessa todos os campos da cultura. Partindo de um texto de Marx, o romantismo é definido como uma crítica da civilização capitalista em nome do passado pré-capitalista. Acho que é exatamente isso, o romantismo é um protesto cultural contra a civilização moderna-industrial em nome de um passado idealizado. Ele surge no século XIII e existe até o século XXI, o que Marx já tinha previsto, dizendo que, enquanto existir o capitalismo, o romantismo será a sua sombra.
O romantismo possui duas vertentes principais. Uma quer restaurar o passado, então ela é conservadora, reacionária. A outra quer uma volta pelo passado, em direção a um futuro utópico, revolucionário. Nessa segunda vertente figura o Jean-Jacques Rousseau, pois ele fala do selvagem como livre, em contraponto ao homem da sociedade moderna que é um escravo, mas o teórico não quer voltar a viver na floresta, e sim restaurar essa liberdade perdida numa sociedade futura, democrática. Essa dialética romântica entre passado e futuro já está em Rousseau e continua ao longo dos séculos XIX, nos socialistas utópicos, e XX, nos surrealistas, entre outras correntes do pensamento. O Walter Benjamin é um exemplo dessa atitude romântico-revolucionária. Ele vai utilizar a teologia e a religião que vem do passado como arma para uma luta revolucionária contra uma civilização burguesa.
Como a visão romântica permanece até hoje?
Você vê o romantismo reacionário nas pessoas que querem restaurar alguns valores aristocráticos e tradicionalismos, como, por exemplo, as correntes religiosas fundamentalistas, que querem resgatar a religião como era no passado. Esse fundamentalismo, todavia, nem sempre é critico do capitalismo, então, nesse caso, não é romantismo, e sim uma variante da religião capitalista. Mas existem formas religiosas retrógradas que rejeitam a civilização moderna, então elas têm essa forma de protesto reacionário.
Há também as formas românticas utópicas ou revolucionárias. No campo religioso, por exemplo, a Teologia da Libertação é crítica à civilização capitalista e se refere a alguns valores do passado, a uma imagem idealizada do cristianismo nas origens e à ideia de que existem tradições comunitárias populares que o capitalismo vai destruindo, mas que devem ser resgatadas. Então eles querem restaurar o espírito comunitário que existiu no passado, mas sem voltar a ele, criando algo novo como, por exemplo, a comunidade de base, que incorpora aspectos da modernidade, entre eles a adesão individual das pessoas.
De que maneira as reflexões do romantismo se prolongam até o surrealismo?
Um dos elementos do protesto romântico contra a civilização é aquilo que o Max Weber chama de “desencantamento do mundo”. O capitalismo acaba com o que é encantamento, dissolvendo tudo em prol da mercadoria, do dinheiro, do mercado, das coisas prosaicas. O romantismo protesta contra isso, sendo uma tentativa de reencantamento do mundo. No caso do surrealismo, essa tentativa tem uma forma revolucionária, pois eles querem reencantar o mundo por meio da poesia, do sonho, do acaso e da utopia, e não por meio da restauração do passado. André Breton, fundador do surrealismo, vê o movimento como uma continuação do romantismo, quando diz que o seu movimento é a “cauda do cometa romântico”. Os surrealistas, além de críticos do sistema, também criticavam a civilização ocidental, sendo violentamente anticolonialistas, pois o colonialismo é a tentativa de impor essa civilização aos povos da periferia. Assim, um dos primeiros atos políticos do surrealismo foi o apoio a um levante árabe no Marrocos, reprimido pelo colonialismo francês. Já em 1925, logo quando é fundado o movimento surrealista, eles vão apoiar essa revolta anticolonial.
Benjamin achava que só uma revolução podia interromper a marcha da sociedade burguesa rumo ao abismo. Essa marcha continua?
A marcha para o abismo continua, mas tem uma forma diferente. Na época de Benjamin, era a marcha à guerra, à II Guerra Mundial. Hoje em dia a mais nítida é a corrida, não “marcha”, para o abismo, que é a catástrofe ecológica. A marcha vai devagar, mas a corrida do trem vai rápido. É evidente que a civilização capitalista industrial está indo como um trem suicida, com rapidez crescente, em direção a esse abismo, o que é uma catástrofe sem procedentes na história humana. Isso está ligado à dinâmica própria do capitalismo, de expansão ilimitada. Mais uma vez se coloca a urgência do que o Benjamin dizia: precisamos de uma revolução, isso é, puxar os freios desse trem louco.