Por causa de Jandira - Murilo Mendes

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  • quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
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  • O mundo começava nos seios de Jandira.

    Depois surgiram outras peças da criação:
    Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
    (Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
    E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
    E surgiram sereias da garganta de Jandira:
    O ar inteirinho ficou rodeado de sons
    Mais palpáveis do que pássaros.
    E as antenas das mãos de Jandira
    Captavam objetos animados, inanimados.
    Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
    E os mortos acordavam nos caminhos visíveis
    [ do ar
    Quando Jandira penteava a cabeleira...

    Depois o mundo desvendou-se completamente,
    Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
    E Jandira apareceu inteiriça,
    Da cabeça aos pés,
    Todas as partes do mecanismo tinham
    [ importância.
    E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
    De sua mãe, de seus irmãos.
    Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
    Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
    Os namorados passavam, cheiravam os seios de
    [ Jandira
    E eram precipitados nas delícias do inferno.
    Eles jogavam por causa de Jandira,
    Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
    Por causa de Jandira.
    E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
    E vieram retratos no jornal
    E apareceram cadáveres boiando por causa de
    [ Jandira.
    Certos namorados viviam e morriam
    Por causa de um detalhe de Jandira.
    Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
    Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
    [ de Jandira.

    E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
    [ das máquinas;
    Não caía nem um fio,
    Nem ela os aparava.
    E sua boca era um disco vermelho
    Tal qual um sol mirim.
    Em roda do cheiro de Jandira
    A família andava tonta.
    As visitas tropeçavam nas conversações
    Por causa de Jandira.
    E um padre na missa
    Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
    [ Jandira.

    E Jandira se casou
    E seu corpo inaugurou uma vida nova.
    Apareceram ritmos que estavam de reserva.
    Combinações de movimento entre as ancas e os
    [ seios.
    À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
    [ que repetem
    As formas e os sestros de Jandira desde o
    [ princípio do tempo.

    E o marido de Jandira
    Morreu na epidemia de gripe espanhola.
    E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
    Desde o terceiro dia o marido
    Fez um grande esforço para ressuscitar:
    Não se conforma, no quarto escuro onde está,
    Que Jandira viva sozinha,
    Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
    [ cidade
    E que ele fique ali à toa.

    E as filhas de Jandira
    Inda parecem mais velhas do que ela.
    E Jandira não morre,
    Espera que os clarins do juízo final
    Venham chamar seu corpo,
    Mas eles não vêm.
    E mesmo que venham, o corpo de Jandira
    Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
    [ transparente.
     
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