por Mauro Santayana
Os pensadores da véspera do Renascimento preferiam duas imagens para definir o Estado: a do relógio e a da balança. O Estado pode ser como a maquinaria de um relógio, com suas engrenagens bem lubrificadas, o pêndulo oscilando corretamente para marcar o tempo, e alguém, é claro, para suprir a corda com a energia necessária. Esse é o estado da ordem.
A ordem pode ser imposta pelo despotismo manhoso, por um estado teocrático, pelo terror policial ou pela legitimidade das leis – como deveria ser o estado democrático. Ainda que a etimologia seja a mesma, as leis nunca são absolutamente legítimas ou se fundam no espírito da justiça. Elas jamais são iguais para todos: conforme a denúncia do Abade Seiyès, elas são cúmplices dos privilégios.
Contrapondo-se à idéia do relógio, há a idéia de que o Estado deve ser como a balança, sempre em busca do equilíbrio. Melhor seria imaginá-lo como uma balança de três pratos, cada um deles significando um dos poderes republicanos. O equilíbrio entre os três é o que assegura “a verdadeira justiça”, na qual se assenta a ordem real do estado republicano, conforme o conservador Cícero em seu estudo sobre o tema. De acordo com seu texto, a verdadeira justiça se expressa na lei que assegura o bem estar comum - objetivo final do Estado.
Entre os três poderes do Estado, qual deve prevalecer? Ao restabelecer a idéia romana da República, os intelectuais que pensaram os Estados Unidos, alguns deles homens práticos que viviam da agricultura e do comércio, e outros legítimos representantes do povo comum, como Thomas Payne, decidiram que o poder legislativo prevaleceria sobre os outros dois poderes. Acompanhavam Locke: o parlamento não é um ramo do governo, mas a nação, em seu povo, que – mediante seus delegados – para garantir o Estado, legisla, fiscaliza e julga o poder executivo.
Com um pleito comum – o do cidadão Marbury, nomeado nas últimas horas da presidência Adams para juiz de paz, e cuja posse foi vetada pelo Secretário Madison, por ordem do novo presidente, Jefferson – levado à Suprema Corte (Marbury contra Madison) pelo prejudicado, seu presidente, John Marshall, ao negar o pedido, estabeleceu o direito do alto tribunal de decidir o que é e o que não é constitucional. Esse sistema foi seguido em quase todos os estados modernos, em alguns deles exercido por tribunais que só cuidam da constitucionalidade das leis.
Não foram poucos, nem privados de autoridade, que contestaram esse poder assumido pela Suprema Corte. Dois deles se destacaram como chefes de Estado: Andrew Jackson, no caso da primeira roubalheira bancária (o famoso Banking Veto), e Franklin Roosevelt, que se confrontou com o alto tribunal, a fim de assegurar a política social do New Deal.
Jackson argumentou que o mesmo juramento de cumprir a Constituição, de acordo com a sua consciência, que Marshall fizera, ele também fizera, e nada assegurava, na Constituição e nos princípios republicanos, que a consciência do juiz fosse maior, ou melhor, do que a dele. O veto presidencial de Jackson permaneceu e o monopólio do Banco de Filadélfia foi rompido.
Jackson agira em nome do povo trabalhador contra o Congresso, que lhe determinara renovar a patente do banco, e usou o argumento de que o sol e a chuva caiam igualmente sobre os ricos e os pobres, e a República não podia privilegiar uns cidadãos contra os outros.
O confronto entre Roosevelt e a Suprema Corte – então presidida pelo político republicano Charles Hughes, que havia sido nomeado em 1930, pelo presidente Hoover – também se deu na defesa do povo. Tal como ocorrera a Jackson, Roosevelt tomara medidas fortes em defesa do povo (e, assim, do capitalismo, como se veria depois) e Hughes as contestou.
Roosevelt, que dispunha de maioria no Congresso, em 1937, anunciou que tomaria medidas fortes, entre elas a da nomeação de juiz suplementar para cada um daqueles juízes que tivessem mais de 70 anos (nos EUA o cargo é vitalício), o que elevaria o número de membros do tribunal e lhe permitiria maioria. Apenas com a ameaça, Roosevelt conseguiu salvar as medidas sociais mais importantes de seu programa de governo.
Para que um estado republicano tenha equilíbrio é necessário que nenhum dos três poderes avance sobre as prerrogativas dos outros. Mas, conforme as reflexões constitucionais de Publius (pseudônimo comum a Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, em homenagem a Publius Plubícola, criador, com Junus Brutus, da República Romana), no sistema republicano o poder legislativo prevalece naturalmente.
É o poder legislativo que faz as leis e limita, constitucionalmente, as prerrogativas dos outros dois poderes. Sendo assim, é impensável que qualquer um dos outros dois poderes substitua o dever indelegável de legislar do Parlamento. Quando o eleitor vota no parlamentar, é para que ele o represente, não para que transfira aos outros o poder recebido do povo.
Há grande desencanto popular com os deputados e senadores, tendo em vista a fraca legitimidade do mandato de muitos, que ali não representam o povo, e sim, grandes interesses econômicos e corporativos. Isso sem falar na preguiça mental de um grande número de representantes.
Uma das medidas para corrigir essa deformação do estado democrático é a tão esperada e nunca obtida reforma política, que, com o financiamento público das campanhas, atrairá para a atividade política alguns dos milhões de brasileiros honrados e intelectualmente preparados para legislar.
Muitos parecem pensar que o ideal seria trocar de povo, já que o nosso, em seu juízo, não sabe votar. São os ideólogos de uma “democracia perfeita”, onde a “ordem” seja absoluta, como a do mecanismo dos relógios. Foi o que pensaram algumas elites brasileiras em 1964, e ainda não desistiram da idéia.
A experiência histórica nos mostra que é melhor equilibrar os três pratos da balança: que nenhum deles tenha mais peso do que o necessário à República, e nenhum deles deixe de exercer o seu próprio dever. É importante que o Poder Judiciário não se arrogue o direito de árbitro político, nem de legislador soberano. Limite-se a julgar, conforme as leis e o testemunho das provas.
Assim, tem razão o romano Cícero, ao estabelecer, como base real da ordem do Estado, a verdadeira justiça, que se expresse na lei e assegure o bem-estar a todos.