A fábula do peixe ingrato

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  • quarta-feira, 24 de outubro de 2012
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  • Os países subdesenvolvidos e o peixe ingrato da fábula 

    Faz anos, estudante ainda, assisti, no Instituto de Antropologia da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, inesquecível palestra na qual sociólogo norte-americano enviado pelo complexo USAID-USIS apresentava como incompreensível o anti-americanismo com o qual as populações dos países pobres, nós, respondiam à ajuda que lhes era proporcionada pelos EUA.

    Para ilustrar sua surpresa, valia-se de uma fábula, segundo a qual, contava-nos ele, durante enchente imprevista em floresta densamente povoada de animais, um macaco, inteligente e bondoso, subiu ao cume da mais alta árvore da região e de lá ficou salvando do afogamento os animais que passavam arrastados pela correnteza. Assim, salvou coelhos, onças, e mais outros macacos e outros bichos. De todos, agradecidos, recebeu carinhos merecidos. De todos, menos do peixe. Este, ingrato, respondeu com grosserias à sua bondade, debatendo-se nos braços do salvador,  até voltar à correnteza e de lá, depois de um mergulho, acenar com gestos inamistosos.

    Na vida real, dizia-nos o sociólogo, éramos os subdesenvolvidos salvos da miséria e da opressão pela ação benfeitora dos EUA–, o ingrato peixe da anedota.

    A historieta me voltou à mente ao deparar-me, na televisão, com Hillary Clinton, cândida e surpresa, ante o  assassinato (injustificável diga-se logo) do embaixador Christopher J. Stevens, na Líbia ‘libertada’.

    Como podem os líbios assim reagir à intervenção norte-americana em seu país para levar-lhes os valores ditos ocidentais dos quais os EUA se consideram guardiães e guerreiros?

    Como o macaco da fábula, que não entendia que o peixe preferisse “afogar-se” na enchente a secar-se no alto da árvore, não entendem os EUA que os árabes de hoje – os latino-americanos, os africanos e os asiáticos — queiram simplesmente usufruir daquele direito de que se imbuíram os fundadores da Revolução Americana: o direito coletivo à autodeterminação. Esses povos e civilizações antigas e ricas respeitam os valores do mercantilismo e do consumismo ocidentais – gostam de sua música e de sua poesia, gostam até de seus filmes–, mas desejam manter, em suas casas,  os seus valores, as suas crenças, as suas religiões, os seus territórios, as suas riquezas e, entre elas, o maldito petróleo. Não pedem muito. Querem apenas continuar árabes, persas, asiáticos, africanos…

    Os EUA, todavia, se consideram os novos Cruzados de um ocidentalismo decadente, cujos valores, como os cavaleiros medievais, procuram impor a ferro e fogo ao resto humanidade. Para os EUA – para o Departamento de Estado, o Pentágono, o Congresso e a Casa Branca–, o mundo está dividido entre o bem e o mal, e eles representam o bem, porque o mal, como o diabo sartriano, são os outros: já foi a China (em breve voltará ser), o Japão, a URSS, o Vietnã, a Coreia. Hoje, depois da pequenina Cuba, Irã, Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Líbia, passando, com suas bombas pelo Sudão. Os países podem mudar, os conceitos variar, mas sempre haverá um povo “por civilizar”, um território a ser invadido, uma riqueza a ser surrupiada, sempre em nome de “nossos” valores cristãos, sempre em nome da liberdade e da paz.

    Os dirigentes norte-americanos, como o “americano tranquilo” de Graham Greene, parecem distraídos em relação a algumas evidências. Por exemplo: o fato de que a população do chamado “mundo árabe” sabe perfeitamente bem que não houve uma só ditadura na região, desde a divisão do mundo pós-1945, sem o apoio deles, EUA. E tem fundados motivos para desconfiar do altruísmo deles, EUA, ou mesmo da sua adesão a princípios libertários: todos viram que, no caso do Bahrein, a participação dos norte-americanos na primavera árabe teve tons invernais.

    Independentemente do partido escolhido para o rodízio, seja o governo do presidente Theodore Roosevelt ou de qualquer Bush, Obama ou Mitt Romney, seja com a “Doutrina Monroe” ou sem doutrina qualquer, o establishment norte-americano se considera portador de uma missão divina (ainda ele, o destino manifesto): converter os impuros, se preciso às custas do Big Stick. Impuros são os ímpios, são os infiéis e são os que ousam opor aos interesses dos EUA seus próprios interesses, de povos, nações, civilizações.

    Os EUA não entendem a ingratidão dos que, ‘ajudados’, lhes jogam pedras, e menos ainda entendem os que não lhes reconhecem a missão providencial de cuidar do mundo. Os líderes norte americanos — Walt Street, Pentágono, o complexo industrial-militar, os tea party — não entendem que a humanidade lhes negue o papel de libertadores do mundo, de um  mundo escravizado, o qual, por estar escravizado,  necessariamente anseia por liberdade, e só existe uma única liberdade, aquela simbolizada pela estátua francesa que toma conta do porto de Nova York. Se o mundo está escravizado,  cabe aos EUA libertá-lo, porque esta é sua missão, e porque este objetivo é humanitário, a ação americana (dos seus banqueiros, dos seus exércitos, de suas bombas) é boa, e se é boa, só os maus contra ela se levantam, ou seja, os que se levantam conta os EUA estão comprometidos com o mal, e por isso precisam ser destruídos, como destruídos foram, em nome de Cristo (o nosso Maomé), pelos cruzados e pelas inquisições, os infiéis, os incréus, os endemoniados.

    Ninguém pergunta a esta humanidade “escravizada”, como ninguém perguntou ao peixe “afogado” se ele queria o conforto dos galhos frondosos, se ela deseja essa “liberdade” (“libertar-se” de sua história, de sua civilização, de seu destino)  em troca de suas terras ou de seu petróleo.

    No mesmo canal de televisão no qual aHillary Clinton carpira suas lágrimas, famoso entrevistador perguntava a três “cientistas políticos” midiáticos se havia alguma coisa que os “EUA pudessem fazer para salvar o Oriente”. O programa de debates terminou sem que os convidados encontrassem a resposta óbvia: há sim, algo que os EUA podem fazer para salvar o Oriente: sair de lá.

    Penso que mais ou menos isso foi o que disse na Assembleia Geral da ONU o novo presidente do Egito, Mohamed Mursi, ungido ao poder nas primeiras eleições realizadas após mais de 30 anos da ditadura Mubarak, sustentada pelos EUA e por Israel. Ditadura, aliás, que os EUA se viram na contingência de abandonar (leia-se “derrubar”) após a Primavera Árabe.

    Mursi condenou a “liberdade de expressão” usada para incitar o ódio, a recusa de Israel de aderir ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e sua não-aplicação para resguardar suas instalações nucleares e as ameaças ao Irã. Cobrou o direito dos sírios escolherem livremente o regime que os represente melhor, ‘salvar a Síria de uma intervenção militar estrangeira”, que rejeitou. Por fim, defendeu o reconhecimento do Estado palestino.

    Esse Mursi é um peixe ingrato.
     
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