Rio de Janeiro: quem ganha com a guerra?

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  • segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
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  • O Rio de Janeiro acaba de passar por mais um triste e violento episódio de violência urbana. As favelas do Complexo do Alemão, da Vila Cruzeiro e seu entorno acabam de ser reconquistadas pelo Estado fluminense. Matando algumas dezenas de pessoas (todas taxadas como criminosos perigosos), desrespeitando direitos humanos e constituicionais e impondo um regime de medo sobre a população local, a operação foi considerada um sucesso pela mídia e grande parte da população que assisitu a tudo pela TV.

    Os mesmos alvos de sempre

    É sempre bom ressaltar o que afirmou Nancy Cardia, do Núcleo de Estudos de Violência da USP : “Você não espera que o Estado não domine áreas de uma capital de Estado que já foi capital da República! Tanque da Marinha, helicóptero da Aeronáutica, tropas do exército para ajudar uma polícia a recuperar o Estado, para mim indicam que alguma coisa fracassou!"

    Agora que a poeira assentou (ou seja, dá para ligar a TV e ver outra coisa passando), A CORTIÇA também gostaria enfia seus dedos gordos nas feridas abertas.

    BRINCANDO DE MOCINHO E BANDIDAGEM

    Para um breve histórico desse recente "combate à violência no Rio de Janeiro", vale a leitura do artigo de Bruno Lima Rocha, "A Ação Bélica no Estado do Rio de Janeiro" (basta clicar no link).

    Não é a primeira vez que as Forças Armadas atuam de forma tão espetacularizada sobre o Rio.  Entre novembro de 1994 e maio de 1995, no fim do Governo Brizola (PDT) e início do Governo Marcello Alencar (PSDB), ocorreu a "OPERAÇÃO RIO", na qual inúmeras favelas foram ocupadas pelas Forças Armadas, policiais militares e civis do Rio de Janeiro, com a justificativa de acabar com a violência e o narcotráfico no Estado... Será que funcionou? E agora, no que será que vai dar?


    Já era um fato conhecido que seria necessário transformar o Rio em um Estado policial por conta da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. O mesmo já foi feito para os Jogos Pan-Americanos de 2007, na cidade de Rio de Janeiro. Não se lembra? Então acesse esse link do Centro de Mídia Independente sobre o Pan-2007, refresque sua memória e, sim, fique muito assustado de ver o que nos aguarda!


    Portanto, que Estado iria tratar o cidadão (sobretudo o pobre) como "supeito" já era conhecido. A surpresa talvez seja o fato de ter acontecido agora,  ainda em 2010, passado apenas um mês das eleições presidenciais. O que será que aconteceu?

    É muito diíficil acreditar na versão que vai para a imprensa sobre a origem dos ataques no Rio. Foi apresentado ao Brasil que alguns dententos do Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Catanduvas, no oeste do Paraná (uma das quatros penitenciárias federais construídas para receber os criminosos  considerados como mais perigosos do país), em pleno contato com traficantes Comando Vermelho (CV), aliados a setores da Amigo dos Amigos (ADA), insatisfeitos pela perda de territórios às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), conseguiram dar ordens para que se iniciasse uma série de ataques na cidade do Rio de Janeiro. 

    Mesmo Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, conhecido do grande público por ser um dos co-autores dos livros "Elite da Tropa" e "Elite da Tropa vol2" (isso mesmo, os que geraram os dois filmes "Tropa de Elite"), rejeita essa versão dos fatos. Em entrevista concedida ao programa Roda Viva (de 29 de novembro), da TV Cultura, contesta essa motivação dos ataques e faz outras explicações extremamente esclarecedoras sobre a violência urbana do Rio de Janeiro. Veja abaixo


    E foi isso! Do domingo de 21 de novembro até a quarta-feira de 1º de dezembro,  um total 105 veículos foram incendiados. Além disso, cabines da PM atacadas e uma viatura da Aeronáutica metralhada. Bom, "era a brecha que o sistema queria. Avisa o IML, a mídia, avisa todo mundo: chegou o grande dia". Então, tendo como como motivação os ataques, começaramos preparativos para os eventos esportivos de 2014 e 2016.

    MAS QUEM LUCRA COM ESSA GUERRA?

    O modelo de tráfico estabelecido no Rio de Janeiro está e franco declínio. Já não funciona mais da mesma forma e nem consegue manter a estabilidade econômica de outros tempos. Perde espaço para as milícias (que atuam em áreas muito além do narco-tráfico). 

    Para Luiz Eduardo Soares: “o modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. 

    "Bem amigos da Rede Globo, falamos ao vivo diretamente do reality-show da Vila Cruzeiro, 
    onde tem gente fuzilada, pé na porta de barraco e tudo para agradar a você da zona sul carioca"

    É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.”

    Então, se há guerra, é porque há alguns setores da sociedade que tiram muito proveito dela. Acima de todos o Estado e a mídia corporativa. E ambos unidos para favorecer as elites (que, claro, controlam ambos).

    Nos principais canais de TV (Globo, Record, SBT, enfim esses aí) as ações policiais eram transmitiadas ao vivo. Em tempo real, você poderia ver repórteres com coletes à prova de bala participando das incursões militares e policiais sobre o a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão. Os repórteres corriam junto com os policiais, deitavam e rolavam no chão quando ouviam tiros, corriam atrás dos tanques da marinha, etc, esptáculo, etc, espetáculo! Violência na TV (sobretudo no bairro dos outros) é sempre um bom programa de domingo!


    As revistas semanais (Veja, Época, IstoÉ) unificaram seus discursos e suas capas (exceção honrosa à Carta Capital que, em vez do espetáculo, preferiu falar sobre a saída de Henrique Meirelles do Banco Central... você sabe, um evento aí sem qualquer importância!).

    A mídia FDP ... ou seja, falta de pauta

    Não apenas unificaram suas capas, mas também o seu conteúdo extremamente paupérrimo, apresentando uma versão dos fatos onde, no Rio de Janeiro, está em curso uma guerra do bem contra o mal. Para Luiz Eduardo Soares: "a polaridade [polícias versus tráfico] esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la -- isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia -- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias."

    Nessa linha de raciocínio, questionando a polariadade, Leandro Uchoas, do Brasil de Fato, faz uma excelente análise do confronto carioca no artigo "Guerra do Bem Contra o Mal?" (clique e leia). 

    Em meio a tantas informações, sempre vem à memória o excelente documentário de Kátia Lund e João Moreira Salles: Notícias de Uma Guerra Particular (2005). Dá um panorâma muito amplo da guerra que ocorre no Rio de Janeiro relacionada com o tráfico de drogas. O destaque é para a entrevista do ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Hélio Luz (bombástica)! Se ainda não viu, clique no nome abaixo e se prepare!


    E, no momento em que a mídia corporativa investe nessa imagem das Forças Armadas e das polícias invadindo favelas, estourando casas, prendendo e matando, sabemos muito bem qual é o esteriótipo de bandido que os telespectadores e os assinantes da Veja querem ver mortos: preto, pobre, fodido!

    OS DERROTADOS DE SEMPRE

    Novamente recorrendo aos textos e às entrevistas de Luiz Eduardo Soares, ao tratar sobre a coexistência entre corrupção e abuso de autoridade na política, ele afirma: "É sistêmico! As instituições policiais estão produzindo essa brutalidade endêmica que é indissociável com a corrupção. No Rio de Janeiro, de 2003 a 2009, inclusive, foram mortas 7.854 pessoas por ações policiais. Mais de mil por ano. Nas pesquisas realizadas, mais de 65% caracterizam-se como execuções extra-judiciais. Esses números são escandalosos. São recordes mundiais. Num ambiente desse tipo [corrupto] quantas foram investigadas? Quem é que morre? É o negro, pobre jovem, que vive nessas áreas! Sempre! Será que isso é um caso individual? É um padrão institucionalizado que se reproduz"
     Há 500 anos, o mesmo estereótipo do marginal padrão 
    larga e fartamente reproduzido na mentalidade nacional
    Conforme afirmou na entrevista concedida à Carta Capital, Rubens Casara, Conselheiro e Coordenador do Núcleo do Rio de Janeiro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), vê as reclamações de abuso policial com preocupação e afirma que demonstram uma crise de legalidade. Casara defende que a violação de preceitos da constituição pela polícia é incompatível com o regime democrático. "Agir dessa maneira significa duas opções:ou rasgamos a Constituição, ou acabamos com a hipocrisia e admitimos que a democracia não é para todos". Leia essa entrevista excelente neste link.

    Ou seja, colocar as Forças Armadas contra a população assim como ocorreu na Ditadura Militar não tem nenhum problema para uma parcela considerável da sociedade, afinal, a vítima agora é o preto, pobre, fodido, morando na favela, esperando para aparecer na TV como "mais um maldito traficante morto"!
    Em 2001, a psicóloga Cecília Coimbra, uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais e coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, publicou um estudo chamado "Operação Rio – o mito das classe perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública" (Editora Oficina do Autor e Intertexto de Niterói). 
    A pesquisadora analisa a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, entre janeiro de 1994 e maio de 1995, e desarma uma série de mentiras da mídia corporativa. O primeiro deles é o de que a ocupação pelas Forças Armadas dos locais ditos perigosos acabaria com a violência urbana. E o que acontece na prática, segundo a autora, é que essa ocupação se volta contra a população pobre! Aos poucos a mídia vai preparando o espírito da população e abrindo o caminho para a intervenção das Forças Armadas, sobretudo em áreas carentes, o que aconteceria em novembro de 1994. Em janeiro desse mesmo ano, os jornais apresentavam como chamada de primeira página "Empresários querem Exército nos morros". Estava em curso a Operação Rio. E com o esquema já em andamento os jornais informavam com títulos como "Exército Comanda a Operação contra o crime", "Nova Fase da Operação vai corrigir erros" e assim sucessivamente. 
    Fuzileiros Navais e policiais do BOPE invadindo o Complexo do Alemão
    Por conta disso, a política de segurança atua contra a população pobre! Até o dia 02 de dezembro, a Corregedoria da Polícia Militar do Rio de Janeiro já havia recebido 27 denúncias por parte de moradores da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão acusando os prejuízos provocados por policiais nas operações. Eletrodomésticos destruídos, desaparecimento de bens, roubo de dinheiro, invasão de domicílios e outras condutas consideradas ilegais ou abusivas pelos moradores foram, inclusive, noticiadas pela mídia.
    Ocupação militar na rua dos outros (sobretudo porque os "outros" são pobres), ao vivo na TV, é refresco para muitos! Dos 51 mortos registrados desde o início dos ataques, quantos foram execuções sumárias?

    DEFENDENDO A CAUSA PERDIDA

    E não dá para encerrar o assunto antes de lembrar do seguinte: das cerca de 42 toneladas de drogas apreendidas na ocupação militar no Complexo do Alemão, cerca de 38 toneladas eram apenas de maconha. O resto era LSD, cocaína, lança-perfume, etc.

    Se fosse legalizada, haveria essa guerra?

    Quer dizer então que quase a totalidade do poder dos traficantes do Complexo do Alemão provinha da venda de maconha? Quer dizer então que se a maconha fosse legalizada todos esses "inimigos públicos" não teriam mais como ter poder de fogo?

    Fato: o consumo da maconha não é tão danoso, ao indivíduo e a sociedade, quanto os efeitos do consumo do cigarro e do álcool!

    Partindo desse pressuposto simples e lógico, sempre que você ver na TV (ou sentir na pele) problemas relacionados com violência urbana e tráfico de drogas, lembre-se de que se a maconha fosse legalizada, tais problemas seriam drasticamente reduzidos. Pense a respeito..... mas com cuidado!
    A manutenção da proibição só é boa para quem continua lucrando com a guerra.


     
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