Perguntaste-me outro dia/Se eu sabia o que era o fado/Disse-te que não sabia/Tu ficaste admirado/Sem saber o que dizia/Eu menti naquela hora/Eu disse que não sabia/Mas vou te dizer agora:/Almas vencidas/Noites perdidas/Sombras bizarras/Na Mouraria/Canta um rufia/Choram guitarras/Amor, ciúme/Cinzas e lume/Dor e pecado/Tudo isto existe/Tudo isto é triste/Tudo isto é fado./Se queres ser o meu senhor/E teres-me sempre a teu lado/Não me fales só de amor/Fala-me também do fado/E o fado é o meu castigo/Só nasceu pr'a me perder/O fado é tudo o que digo/Mais o que eu não sei dizer.
(Aníbal Nazaré e F. Carvalho)
Embora sem estar na trilha sonora do filme, foi esta a canção – tão ouvida em minha infância – que me veio à cabeça ao término da exibição de “Fados”, de Carlos Saura. Surgido na primeira metade do século XIX, o Fado se origina daquele caldo de cultura da Lisboa oitocentista, onde as influências mouras mesclavam-se com a tradição das modinhas e dos lunduns, trazidos do Brasil pelos portugueses retornados, e com as cantigas rurais dos camponeses que migravam para a grande cidade. Tendo se tornado o gênero musical português por excelência, ao longo do século XX, ele acabou sendo um pouco deixado de lado nos anos seguintes à Revolução dos Cravos (1974). Porém, desde a década passada, o Fado tem sido redescoberto e reinventado – em um processo análogo ao que aconteceu com o samba carioca – por jovens artistas como Mariza, Mísia e Mafalda Arnauth. Esta música dolente e melancólica é a “personagem” principal do filme de Saura, que passeia com grande delicadeza e sensibilidade por suas inúmeras variações e pelas marcas deixadas por ela no mundo de língua portuguesa. Mesclando a beleza das canções com a plasticidade dos números de dança – que o cineasta espanhol sabe dirigir como ninguém – “Fados” possui alguns momentos sublimes como a cena em que Carlos do Carmo canta “Um Homem na Cidade”, de Alfredo Marceneiro, enquanto cenas cotidianas de Lisboa vão sendo projetadas (assista aqui) ou aquela em que o áudio de "Grândola, Vila Morena" é substituído sutilmente por Chico Buarque cantando o seu “Fado Tropical” – com o mesmo Carlos do Carmo interpretando as partes declamadas - tendo ao fundo as emocionantes imagens da Revolução dos Cravos. Isto sem falar nas várias participações da maravilhosa Mariza – o grande nome da nova geração de fadistas -, dentre as quais destaco a interpretação da deliciosa canção de levada moçambicana, “Transparente” (confira aqui), que também conta com a participação especialíssima da guitarra do veterano Rui Veloso, um dos grandes nomes do rock/blues português. A única cena do filme da qual eu realmente não gostei – até o Caetano cantando em falsete “Estranha Forma de Vida”, da Amália Rodrigues, ficou interessante – e que considero perfeitamente dispensável é aquela em que Toni Garrido canta a modinha “Menina você que tem”. Ao tentar criar um clima de sensualidade, a única coisa que o cantor brasileiro conseguiu foi uma interpretação over e extremamente canastrona. Mas, apesar disto, “Fados” é um grande filme e mantém o padrão de qualidade da obra de Carlos Saura que continua a ser, indiscutivelmente, um dos melhores tradutores da cultura ibérica.
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Saindo de Portugal e indo para o lado mais ao leste da velha Ibéria, assisti ontem “Antíteses”, da Cia. de Arte Flamenca, no Teatro SESI, no Centro do Rio. Sendo um freqüentador razoavelmente assíduo de apresentações de Flamenco, posso dizer que este é um dos melhores e mais inovadores espetáculos que já vi. Mesclando a tradicional música/dança espanhola, com ritmos brasileiros e latino-americanos, as bailarinas e os músicos da Cia. de Arte Flamenca constroem um verdadeiro melting pot da cultura de matriz ibérica. Um dos momentos altos da apresentação - justamente por ser o que melhor representa esta mistura - é o número final, quando a siguirya é dançada ao som de ritmos e canções nordestinas como "Último Pau-de-Arara" e "Lamento Sertanejo". Muito bom também é o bloco “humorístico” do espetáculo, em que a cantora Ana Bayer interpreta o bolerão-brega “Amendoim Torradinho”, com direito ao acompanhamento das bailarinas, em uma coreografia no melhor estilo “Discoteca do Chacrinha”. Enfim, gostei demais e posso garantir que assistir “Antíteses” é um ótimo programa para este ou para o próximo fim-de-semana.