"O que muda na mudança" ou o que Tancredi Falconeri acharia da eleição de Barack Obama.

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  • segunda-feira, 10 de novembro de 2008
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  • O que muda na mudança,
    se tudo em volta é uma dança
    no trajeto da esperança,
    junto ao que nunca se alcança?

    (Carlos Drummond de Andrade)

    Uma das frases mais famosas da literatura mundial encontra-se em “O Leopardo”, obra-prima de Tomasi di Lampedusa (que, por sinal, originou um belo filme de Luchino Visconti, com Burt Lancaster e Alain Delon nos papéis principais): é aquela dita pelo personagem Tancredi Falconeri ao seu tio, o Príncipe Fabrizio Salina: “Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”. Tancredi, jovem impetuoso, havia se incorporado aos exércitos que lutavam pela unificação da Itália, enquanto seu velho tio mantinha-se fiel à dinastia Bourbon do Reino das Duas Sicílias. Apesar disto, Salina percebe e se orgulha da perspicácia de seu sobrinho: os tempos haviam mudado e a decadente aristocracia (“Nós”), se quisesse sobreviver, precisava se adaptar a eles, integrando-se com a ascendente burguesia (“Eles”). Ele mesmo não se vê com estrutura para participar desta integração, mas entende que o sobrinho seria a ponte entre os velhos e os novos tempos, garantindo a preservação dos interesses de sua classe.
    O livro de Lampedusa me veio à lembrança em meio à euforia mundial pela vitória de Barack Obama (Sim, Obama é pop!! Até os porteiros de prédio e os garis brasileiros comemoraram sua eleição. Sem contar, a grande festa popular que tomou conta de várias cidades africanas) e, ao longo da última semana, o diálogo entre Tancredi e Salina ficou martelando em minha cabeça devido às incontáveis vezes que me perguntaram: o que o mundo pode esperar do governo Obama? Sem sombra de dúvidas, esta eleição tem um peso simbólico muito grande, principalmente quando se leva em conta a história de segregação racial que os Estados Unidos possuem. No entanto, se saímos do campo do simbólico e entramos no da Realpolitik, as coisas se tornam um pouco mais complicadas.
    Tradicionalmente, os Democratas têm uma visão mais cosmopolita da política internacional e dão uma ênfase maior ao multilateralismo. Porém, não podemos esquecer que os governos existem para defender os interesses de seus Estados e que os interesses de uma potência imperial como os Estados Unidos estão em toda a parte e envolvem o mundo inteiro. Desta forma, convém lembrar que foi no governo do democrata John Kennedy que ocorreu a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba; que foi no governo de Lyndon Johnson – o mesmo que assinou a Lei dos Direitos Civis dos negros norte-americanos, em 1964 – que os EUA se afundaram de vez no atoleiro do Vietnã e que o outro lado do Soft Power da era Clinton traduziu-se em intervenções militares na Somália e no Sudão. Assim, será que as expectativas geradas pela eleição de Obama em lugares como o continente africano, por exemplo, se traduzirão em resultados concretos?
    Já foi dito inúmeras vezes – inclusive pelos representantes do governo brasileiro em diversos fóruns internacionais – que uma efetiva liberalização do comércio mundial, com a conseqüente extinção dos subsídios agrícolas nos países centrais, faria mais pelos países pobres do que qualquer pacote de ajuda humanitária. É notório que os EUA são um dos Estados com mais barreiras comerciais – tarifárias e não tarifárias – no mundo. Um governo do Partido Democrata, tradicionalmente protecionista, estaria disposto a eliminar progressivamente tais barreiras em nome do bem-estar do mundo como um todo? O novo presidente assumirá o governo dos EUA em meio a uma enorme crise internacional e a história nos mostra que, em momentos como este, há uma tendência a um maior fechamento das economias nacionais. Pensando em questões que interessam a vários dentre os países chamados “emergentes”, em especial ao Brasil, num momento em que o desemprego atinge níveis preocupantes nos EUA, estaria Obama disposto a enfrentar os sindicatos de trabalhadores – tradicional base social de apoio do Partido Democrata – do decadente setor siderúrgico norte-americano e retirar as barreiras protecionistas contra o aço importado? Ou enfrentar os produtores agrícolas do “Corn Belt” e retirar os subsídios ao etanol de milho, abrindo espaço para o nosso etanol de cana? Sinceramente, parece-me muito difícil que isto ocorra. Assim, não creio que venhamos a ter mudanças muito significativas na política externa norte-americana no próximo governo, com exceção de algumas questões pontuais como a diminuição das tropas no Afeganistão e no Iraque e a busca de uma saída honrosa para os EUA nesses conflitos, mas nada que altere de forma mais contundente a maneira como se dá a inserção norte-americana no mundo.
    No âmbito da política doméstica, creio ser um equívoco – ou, no mínimo, excesso de otimismo - acreditar que a eleição de Barack Obama vira a página dos conflitos raciais nos EUA e anuncia uma nova era “pós-racial”, leitura esta que tem sido feita por boa parte da mídia, inclusive a brasileira. Uma análise mais acurada do mapa eleitoral dos EUA nos mostra algumas questões que devem ser objetos de reflexões mais profundas: 1- Um dos fatores que contribuíram para a vitória de Obama foi a mudança do perfil demográfico do país, com o aumento considerável do número de negros e de hispânicos. A candidatura de um negro à presidência e o trabalho de milhares de voluntários convencendo esses setores a se alistarem para votar e a saírem de casa no dia das eleições para fazê-lo estimularam a participação eleitoral desses segmentos, em que a abstenção é tradicionalmente grande (o número de hispânicos que foram às urnas aumentou 25% em relação a 2004 e o de negros 14%); 2- Entre o eleitorado branco, Obama obteve 43% dos votos, com este índice aumentando para 54% entre os mais jovens. Assim, apesar da vitória obtida por Obama em alguns distritos eleitorais majoritariamente brancos, a tal da “América profunda” – a base social por excelência dos Republicanos -, branca, anglo-saxônica e conservadora continua a ter um peso bastante grande na política norte-americana e estes setores não deixaram e não vão deixar de lado a clivagem racial; 3- O conservadorismo de boa parte da sociedade norte-americana se fez sentir em alguns dos plebiscitos estaduais que ocorreram paralelamente às eleições presidenciais: na Califórnia, na Flórida (estados onde Obama venceu) e no Arizona, os eleitores optaram pela proibição da união civil dos homossexuais. Logo, parece que os “ventos da mudança” não se refletiram no posicionamento em relação à questões morais.
    Por fim, é importante lembrar que Obama é o legítimo representante daquela classe média negra que se formou e se fortaleceu nos últimos anos, devido a algumas décadas de políticas de ação afirmativa. Os filhos e netos da geração que lutou pelos direitos civis na década de 1960 tiveram a oportunidade de estudar nas melhores universidades norte-americanas (Obama é de Harvard) e formaram uma espécie de elite negra que, hoje, reivindica a construção de uma “sociedade pós-racial”, em que os méritos individuais sejam levados em consideração ao invés da cor da pele. A vitória de Obama é a vitória destes setores. Mas será que é a vitória dos milhões de negros pobres dos EUA para quem a questão racial é uma barreira a mais, que se soma às barreiras de classe?
    De fato, a imagem que os norte-americanos têm de si mesmos e a imagem que o mundo tem dos EUA mudou com a eleição de Obama. Mas será que a sociedade norte-americana realmente mudou? Obama é a nova versão do sonho americano. O sonho de que qualquer criança nascida naquele país pode ser o que quiser, inclusive presidente dos EUA. Mas será que este sonho pode, de fato, ser sonhado por todos? Ou a eleição de Obama é o equivalente político do mito liberal do self-made man, a exceção que legitima a regra? Não tem jeito: aquele diabinho que fica soprando coisas em meus ouvidos vem me dizendo nos últimos dias: “lembre de Tancredi, lembre de Tancredi!”. E eu penso em Tancredi e também nos versos de Drummond...
     
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