A imagem de um mundo global, interligado e cada vez mais padronizado está na percepção de todos. Mas seria isso indício de que estariam se dissolvendo as diferenças entre povos e pessoas e desaparecendo a especificidade das distintas experiências histórico-sociais e culturas?
A questão faz sentido e tem estado na base de muitas postulações em defesa da integridade nacional e da pureza cultural.
Antes de tudo, convém lembrar que não há como não se ter diferenças enquanto se tiver desigualdades, sobretudo aquelas profundas, associadas a disparidades de renda, de poder econômico, de status, de oportunidades – ou seja, as desigualdades sociais, impulsionadas pelo afã de acumular, pelos regimes de propriedade, pela volúpia do capital. Esse é o lado perverso e desagradável das diferenças, algo que mantém a humanidade com um pé preso na barbárie. Em que pesem todos os discursos mais ou menos simplificadores e todos os esforços reformadores, a desigualdade social continua ativa, em expansão.
Mas o mundo mundializado também assiste a um ininterrupto e crescente processo de produção de diferenças que estão associadas a algo nada perverso. Povos, indivíduos, grupos e comunidades étnicas sentem-se hoje sempre mais impelidos a proclamar, vocalizar e difundir sua especificidade, aquilo que os distingue e singulariza no contexto padronizado e aparentemente “igualizado”. Podem fazer isso, precisam fazer isso e querem fazê-lo. Vista desse ângulo, a mundialização é radicalmente plural. Nunca fomos tão parecidos e tão diferentes.
Há mesmo hoje uma compulsão pela diferença, pela afirmação de identidades específicas. De um lado, impulsionadas pelo mercado e pela moda, muitas pessoas buscam nas grifes, na “customização” e na exibição de bens regra geral supérfluos um modo de se destacarem na multidão. De outro lado, grupos, comunidades e indivíduos lutam para defender sua singularidade substantiva – seu orgulho étnico, suas tradições, sua raça, sua religião – e seu direito de serem respeitados e reconhecidos como tais. Trata-se de um movimento que, no primeiro caso, exacerba uma diferenciação vazia de significado e que, no segundo, fortalece e viabiliza uma diversidade fundamental para a reprodução da humanidade como algo digno.
A sociedade mundial em constituição não tem propriamente uma cultura global a ela vinculada, sobretudo se pensarmos nisso como esmagamento das distintas culturas locais, regionais ou nacionais. É verdade que, impulsionada pela dinâmica global, uma espécie de “cultura McWorld” infiltra-se nos mais distintos arranjos sócio-culturais, ávida pela conformação de um monolítico “povo” de consumidores. Além disso, o maior intercâmbio de informações cria inúmeros incentivos para que os distintos valores culturais se aproximem uns dos outros e se misturem. Tem-se assim a impressão de que há uma única língua no mundo, de que se come uma única comida e se cantam as mesmas canções em todos os cantos. É uma impressão que reflete a realidade. Afinal, a globalização não diminuiu a diferença de potência entre os Estados, nem eliminou a capacidade que alguns atores têm de dirigir e influenciar pelos valores e pelas ideologias os demais.
Há de fato predomínio de certos hábitos e comportamentos, e não é por acaso que o inglês é uma espécie de língua global. A situação, porém, é seguramente mais complicada.
A redução das distâncias, a maior facilidade para se viajar e circular, as conexões em tempo real, a visualização de cenários simultâneos e a difusão em redes das mais diversas manifestações culturais produzem uma imaginação solta em relação aos territórios e aos Estados nacionais. Grupos e pessoas tornam-se bem mais disponíveis em termos intelectuais, éticos e comportamentais. Uma cultura mundial fica assim delineada, ganhando fôlego e se beneficiando da constituição de um espaço supraterritorial (e portanto supranacional): o ciberespaço.
Nesse movimento, alguns valores já mundializados (como, por exemplo, o fast-food, a música e o cinema norte-americanos) tendem a aumentar sua influência e são ainda mais incorporados pelas pessoas. Mas não há nada que se aproxime de homogeneização cultural. As práticas cotidianas dos povos, enraizadas em territórios e em histórias reais, passam a ter de lidar com novos ingredientes, pressões e circunstâncias. Entram em contato com outras “informações” culturais, assimilando-as e convertendo-as em material para re-elaborar seus próprios conhecimentos e experiências. Nessa dialética, também vão se expondo aos outros, comunicando-se mais e afirmando-se como identidade. Mais que multicultural, nosso mundo é fruto e palco de um cruzamento de culturas: é intercultural. No final de tudo, tem-se mais consciência das diferenças, maior aceitação daquilo que distingue uns e outros, maior respeito pela especificidade de cada um e, ao mesmo tempo, maior integração. A miséria, a desigualdade e a opressão persistem, mas não sem tensões e contradições.
A pluralização da experiência humana é um poderoso instrumento de construção do futuro, dentro e fora das sociedades nacionais que, de resto, se internacionalizam rapidamente. Representa a possibilidade de uma unificação aberta para a emancipação, a construção de uma unidade do diverso em novas bases.
Ao mesmo tempo, a luta pela afirmação e pelo reconhecimento de identidades específicas – que de modo algum é estranha à história humana – expressa a necessidade que todos sentem de encontrar um lugar ao sol, um modo de se inserir num mundo que sob vários aspectos parece fora de controle e está revirando as bases que davam equilíbrio e “cara” aos grupos, aos indivíduos, às instituições. Todos querem ser “diferentes” e passam a respeitar mais as diferenças porque desse modo, quem sabe, aumentam suas chances de encontrar a própria identidade. [O Estado de S. Paulo, 24/03/2007]