Automóveis, caminhões e votos

Por vias transversas, sem cálculo e planejamento, aos trancos e barrancos, as eleições municipais em São Paulo parecem ter ganhado um eixo de animação.

Depois de sucessivos picos de congestionamento, cada um pior que o anterior, houve como que um despertar coletivo: a cidade está parando, e do jeito que vão as coisas aquilo que se estimava como cenário futuro converteu-se em ameaça iminente. O horror ficou escancarado à luz do dia.

Como bola de neve, o tema foi se consolidando na linguagem cotidiana. Todos passaram a dele se ocupar, do usuário dos transportes coletivos aos que trafegam em automóveis particulares, dos comerciantes aos caminhoneiros e motoristas profissionais. Hoje não se fala de outra coisa.

É de se imaginar que o tema tenha sido registrado pelos homens de marketing das próximas campanhas eleitorais. A Prefeitura e a Companhia de Engenharia de Tráfego tentaram reagir, anunciando medidas concebidas para atenuar o problema. Acendeu-se uma luz de alerta para os políticos.

A imagem de uma cidade paralisada pelos automóveis deixou de ser literária para se tornar expressão de uma fatalidade, de algo que acontecerá inevitavelmente e contra o que pouco se pode fazer. Repôs-se assim um tipo específico de pessimismo paralisante, que de algum modo tem estado entranhado na experiência dos paulistanos desde que São Paulo ingressou em seu ciclo de expansão industrial, urbanização descontrolada e gigantismo. Pouco a pouco, o morador da cidade foi-se dando conta que é a cidade que o controla e o impulsiona, como uma turbina com vontade própria. Os espaços vitais – onde se pode simplesmente viver a vida, descansar, cultivar amores, prazeres, filhos e amizades – foram sendo triturados pelo mecanismo febril que faz girar a roda do progresso, do consumo, do desenvolvimento a qualquer custo. O paulistano repentinamente se viu sem uma cidade, órfão de uma polis.

Pelo menos desde os anos de 1960 há quem venha a público, periodicamente, pregar que a cidade deve “parar de crescer” se quiser de fato encontrar um padrão suportável de convivência entre vida urbana e vida econômica, entre população e espaços.

São Paulo jamais parou de crescer e não há nenhum indício concreto de que venha a fazer isso proximamente. “Parar de crescer” sugere um ato de vontade, uma decisão. Desliguemos os motores, reduzamos os investimentos produtivos, planejemos a cidade para que ele funcione com menos gente e deslocamentos. Façamos algo antes que a cidade decida, por si só, estacionar e engula seus habitantes.

Não há como imaginar, nos dias correntes, decisão semelhante. Primeiro, porque não há quem a tome ou a introduza na agenda política. Faltam estadistas para governar a cidade, faltam sujeitos coletivos organizados e capazes de ação sistemática de longo prazo. Depois, porque tudo está direcionado em sentido oposto: cresçamos mais, multipliquemos os automóveis, criemos mais empregos e interações produtivas, sejamos desenvolvimentistas. Este é o mantra do nosso tempo, e contra ele pouco podem os discursos alternativos. Até mesmo a idéia de sustentatibilidade e de um crescimento consciente, que preserve simultaneamente o meio ambiente e as pessoas, circula com dificuldade e tem pouquíssima tradução prática.

No caso específico do trânsito de São Paulo, há um agravante desesperador: a cidade nunca teve uma política inteligente e consistente de transportes. Prefeitos e governadores se sucedem sem que nada seja feito nesta direção. Já houve um tempo em que só se pensava em obras viárias: mais espaços e facilidades para a circulação. Construíram-se viadutos, túneis, minhocões, vias expressas, como se o desafogo pudesse frear, ele próprio, o desejo de cada morador de possuir o próprio veículo particular e incentivá-lo a usar o transporte público. Nos últimos anos, voltou-se a falar em melhorar os meios coletivos de deslocamento. Fala-se muito, faz-se quase nada. O metrô mal sai do papel, arrasta-se por crateras inacabadas, movido a investimentos contidos e a ações mal articuladas. De repente, as atenções se voltam para os trens metropolitanos e para a eventual cobrança de pedágios urbanos, sem que isso traga consigo qualquer inovação ou valorização dos ônibus, que continuam entregues à própria sorte: precários, sujos, lentos, barulhentos, desconfortáveis, gerenciados por empresas pouco sensíveis à coletividade e imunes ao controle social.

O fato é que nos aproximamos dramaticamente de um ponto de não-retorno. É insensato achar que nada mais pode ser feito, que tudo o que vier a ser proposto será inócuo, que a cidade segue em marcha batida para o caos. Existem técnicos competentes para projetar alternativas, nichos intelectuais capazes de reflexão crítica, núcleos associativos e pessoas dispostas a brigar pelo interesse geral. Além do mais, não é para processar demandas e interesses, construir consensos e tornar possível o impossível que existem políticos e governantes? Não é para isso que eles servem?

O processo eleitoral prestes a se abrir fornece um excelente palco para que os interessados em reinventar São Paulo se apresentem. Se os candidatos agirem segundo o padrão prevalecente nos últimos anos, dando aos eleitores tão-somente mais do mesmo – ou seja, propostas midiáticas, desconexas, carentes de um plano integrado, silentes sobre os angustiantes problemas cotidianos dos paulistanos –, daremos um passo a mais em direção ao precipício. Comportando-se como se a solução fosse eminentemente técnica e não tivesse uma dimensão ético-política incontornável, que exige a educação cívica e o envolvimento ativo das grandes maiorias, poderão até ganhar votos, mas não darão um passo sequer para mudar a cidade.

Candidatos e partidos têm uma oportunidade de ouro para fazer a diferença e plantar uma nova perspectiva para o governo da cidade. Vejamos como se sairão. (Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/03/2008, p. A2).

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Daniel, Daniels

Assistindo Sangue Negro, vi na ganância, na falta de medidas, no testempero, no egoísmo, na falta de ética, na crueldade, na sede de jogar do personagem Daniel Plainview, semelhanças inquestionáveis com o nosso homem de negócios Daniel Dantas.

But. Não acredito em idiossincrasias.
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Sobre descontinuidades


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Permanência no IBest e outros passos

Este blog não concorre ao IBest, fiz selo contra o prêmio, mas agora, de cabeça fria e pensando politicamente, acho que os sites de esquerda que concorrem devem continuar. Até mesmo para mostrar as contradições do IG, como a do Conversa Afiada liderar em sua categoria, enquanto foi justificado que ele não dava audiência. Ou mesmo para impedir que notórios blogs de direita tenham algum motivo para comemorar. Mas continuo não dando valor ao prêmio. Não gosto da concorrência entre blogs alternativos à grande mídia. O que desejo mesmo, e gostaria de estar presente, é na criação de um grande movimento destes blogs, talvez apontados em um grande portal, com ações unitárias que ajudem a ampliar a nossa voz. Não tenho idéias prontas, mas estou disponível para trabalhar por este projeto. Quem assim também desejar, pode contar com nosso empenho.
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Em defesa dos Territórios da Cidadania

Um belo artigo de Ladislau Dowbor, cientista político e professor de pós-graduação da PUC-SP. Retoma a discussão em torno da relação entre programas sociais e votos. Programas direcionados aos pobres são eleitoreiros? A resposta a esta questão não é sim ou não. Não há nada de errado nos pobres escolherem para votar aqueles políticos ou partidos que investem em programas em que são beneficiários. São pobres, não ignorantes. Da mesma forma que não é errado os ricos e parte expressiva da classe média votarem nos candidatos que direcionam políticas e recursos públicos que os beneficiem.

Na eleição de 2004, a classe média paulistana estava pé da vida com a prefeita Marta Suplicy, justamente porque suas políticas beneficiavam majoritariamente os mais pobres. A classe média paulistana sentia-se fora da partilha do bolo. A verdade é que qualquer política pública influencia a decisão do voto. A classe média urbana brasileira em grande parte dava apoio à ditadura militar porque era beneficiária de políticas públicas como financiamento habitacional generoso. Não era eleição, mas o resultado é o mesmo. Fica difícil questionar agora as políticas públicas voltadas à redução da pobreza e da desigualdade social. É o caso dos Territórios da Cidadania.

As políticas públicas voltadas para os mais ricos, além do voto dos seus beneficiários diretos, têm potencial de elevar o financiamento eleitoral para os políticos e partidos políticos que as produzem. É fato notório que o financiamento eleitoral beneficia políticos e partidos com maior quantidade de recursos. Não quer dizer que serão eleitos, mas dinheiro não atrapalha eleição. É a maneira que os ricos compram o apoio dos políticos e partidos que defendem seus interesses. Por que ninguém vem dizer que são políticas eleitoreiras. Veja o artigo abaixo:

Em defesa dos Territórios da Cidadania

Ladislau Dowbor*

Política que favorece os pobres sempre renderá votos, pois os pobres são pobres, mas não burros. E são muitos, efeito indiscutível de séculos de políticas elitistas. Ao tentar bloquear um programa que abre portas para um processo modernizador inclusivo, a oposição a Lula dá um tiro no pé.

Às vezes a gente precisa desabafar um pouco. Escutando entrevistas na CBN, ouvi um desabafo indignado (no sentido parlamentar da palavra), de um deputado dizendo-se escandalizado com o programa Territórios da Cidadania. Como é dinheiro para as regiões mais pobres do país, evidentemente trata-se de uma medida eleitoreira, de uma autêntica compra de votos, raciocina ele. Há quem queira declarar o programa inconstitucional.

A armadilha que prende os pobres é impressionante. Eles votam. E como são muitos, o que se fizer em favor de seus direitos rende votos. Logo, raciocinam alguns, qualquer medida que favoreça os pobres constitui demagogia, autêntica compra de votos. Ah, se os pobres não pudessem votar... Considerando que a desigualdade é de longe o principal problema do país, tentar travar políticas que a reduzam não é oposição, é sabotagem.

O programa Territórios da Cidadania destina 9,3 bilhões de reais (valor próximo do valor do Bolsa-Família) a 958 municípios situados nas regiões mais pobres do país. Vem sendo preparado desde o início da primeira gestão de Lula, através de identificação de territórios a serem privilegiados, no quadro de uma metodologia desenvolvida pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). A seleção envolveu critérios como baixo IDH, e agrupou os territórios segundo o sentimento de identidade efetivamente existente nas comunidades interessadas. Assim uma bacia hidrográfica pode, por exemplo, constituir um “território” mais significativo do que um município isolado. Isto favorece a apropriação organizada dos aportes pelas comunidades. Foram alguns anos de trabalho.

Paralelamente, e mais modestamente, desenvolveu-se uma pesquisa nacional, coordenada por Paulo Vannuchi, Pedro Paulo Martone Branco, Márcio Pochmann, Juarez de Paula, Silvio Caccia Bava e eu mesmo. Agentes econômicos e sociais locais (pequenas empresas, ONGs, sindicatos, gerentes de banco, prefeitos, pesquisadores) foram consultados, para identificar medidas capazes de gerar um ambiente de dinamização do desenvolvimento local. Partindo da diferenciação de Milton Santos entre o circuito superior e o inferior da economia, fomos perguntar ao andar de baixo o que seria bom para ele se apropriar do seu próprio desenvolvimento.

Dezenas de organizações como o Sebrae, Cepam, Ibam, Instituto Pólis etc. participaram.

O programa prevê apoio tecnológico e institucional; sistemas de informação e comunicação; geração de emprego e renda; programas ambientais. O que falta ao pobre não é iniciativa, é oportunidade.

O resultado foram 89 propostas descritas num documento-síntese, entregue ao presidente Lula e amplamente divulgado, nos principais foros de discussão sobre o desenvolvimento local. O documento, com o título “Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local” está disponível, entre outros, no meu site (em formatos doc ou pdf. A linha geral do documento reflete a demanda: no plano local, além do apoio financeiro, são necessários apoio tecnológico, apoio institucional, sistemas locais de informação e de comunicação, programas de capacitação, programas de geração de emprego e renda e programas ambientais. Em outros termos, necessitamos de um programa integrado de apoio. O que falta ao pobre não é iniciativa, é oportunidade, e isto se organiza. Aliás, a pesquisa nos familiarizou com a riqueza de sistemas de apoio ao pequeno produtor e ao desenvolvimento local que existe em outros países. O MDA também participou do projeto.

É fácil dizer que se trata da compra de votos. O programa tem prioridades, em particular o saneamento básico. E a aplicação passa pela constituição de conselhos locais destinados a gerir os recursos. É um eterno problema: os municípios têm capacidade de geri-los? Trabalho há anos com o desenvolvimento local — e com pessoas e instituições que compreenderam que a pobreza não é apenas um problema de distribuição, mas sobretudo um problema mais amplo de inclusão produtiva. Já parei de me colocar a questão filosófica do ovo e da galinha. Se não houver recursos, ninguém aprenderá a administrá-los. Isto vale inclusive para as bobagens que escrevem os que se opõem ao Bolsa-Família, dilema semelhante, mas que remonta aos peixes: na realidade, ninguém aprende a pescar com a barriga vazia.

O importante é fazer os recursos chegarem. E igualmente importante, assegurar que junto com eles, cheguem políticas mais amplas de apoio. Lembro-me de ter feito muitas vezes, em outros tempos, sugestões em Brasília, para que fossem destinados recursos à base da pirâmide social, pois não só com soja e automóvel se faz desenvolvimento. Eram rechaçadas com um argumento definitivo: "eles não sabem administrar, vai haver corrupção". Eu ficava comovido com as preocupações de Brasília em impedir a corrupção dos pobres.

A oposição ao programa Territórios da Cidadania é uma besteira monumental. A pressão não deveria buscar o travamento do programa, como estão tentando pessoas que têm uma visão curiosa do que é ser “democrata”. Mas, ao contrário, a ampliação do mesmo — para assegurar que haja apoio institucional, capacitação, informação e outras medidas que permitam que o processo seja apropriado de maneira criativa em cada localidade. Esta apropriação, ou empoderamento como tem sido chamado, é essencial. Trata-se de uma mudança de cultura política, da compreensão de que o desenvolvimento não se espera, se faz.

As ONGs são fundamentais para a apropriação das políticas pelos interessados. Também aqui, ouvem-se vozes indignadas: não estaria muito melhor gerido o recurso na mão de uma empreiteira? Aprendemos penosamente, nas últimas décadas, que sem recursos não se faz nada; mas também que programas de pára-quedas, respondendo apenas à lógica da oferta e não da demanda, são insuficientes. As organizações da sociedade civil têm sido fundamentais nesta apropriação das políticas pelos próprios interessados, como se vê, por exemplo, no sucesso do programa de cisternas da ASA ou da Pastoral da Criança.

Naturalmente, também aqui ouvem-se vozes indignadas (sempre no sentido parlamentar) querendo uma CPI correspondente para investigar ONGs: não estaria muito melhor gerido o recurso na mão de uma empreiteira? É um jogo de faz-de-conta. Fiz avaliações de políticas deste tipo para numerosos países, a serviços das Nações Unidas. Aprendi a separar as contas do faz-de-conta. Não faço a minha avaliação pelo volume de discursos parlamentares, e sim por conversas com o primeiro e segundo escalão técnico, que são os que dirigem os projetos, que carregam o piano, com pouco tempo para discursos. Tiram freqüentemente leite de pedra, pois a máquina administrativa herdada não foi feita para ter agilidade na prestação de serviços, e sim para administrar privilégios. Raramente aparece na imprensa a avaliação concreta dos projetos e programas. As indignações parlamentares são muito mais coloridas, e fazer contas é mais complicado.

Por outro lado, dei-me ao trabalho de ler a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgada há poucos meses. No conjunto, os resultados são extremamente, e inegavelmente, positivos. Positivos num mar de atraso; atraso que nos reduziu à situação da nação considerada modelo de desigualdade, padrão a ser evitado (avoid Brazilianization, comenta-se nos organismos internacionais). O balanço simplificado dos números pode ser num artigo anterior para Le Monde Diplomatique Brasil. Apresentar resultados positivos, segundo uma minha aluna, é suspeito: eu devo ser amigo do Lula. O argumento é curioso: apresentar números negativos é mais objetivo?
Aliás, permitam-me deixar aflorar o economista que sou: se fizermos um zoom e olharmos a grande imagem, o fato de termos 100 milhões de pessoas que mal participam da nossa economia – mais certo seria dizer que em torno dela gravitam – aponta claramente para os rumos de desenvolvimento: dinheiro no andar de baixo não é aplicado em mecanismos financeiros nem em viagens internacionais. Transforma-se em demanda de bens simples e úteis, o que estimula o mercado interno, o que por sua vez gera pequenos negócios e intensifica os grandes, promovendo emprego e gerando mais demanda. Este círculo virtuoso já começou. Pequeno, incipiente, mas já começou. Vale a pena preservá-lo, ampliá-lo. E se der certo, será bom para todos.

Política que favorece os pobres sempre renderá votos, pois os pobres são pobres, mas não burros. E são muitos, efeito indiscutível de séculos de política de direita. Uma oposição que queira travar estas políticas acaba dando um tiro no próprio pé. O país está maduro para um processo modernizador inclusivo. Tentar impedi-lo para quê? Oposição é ótimo: pressionem para que se faça mais.
Ladislau Dowbor é economista político graduado na Universidade de Lausanne, Suiça; doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente, é professor titular da pós-graduação da PUC-SP e presta consultoria para agências da ONU, governos e instituições.
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