Automóveis, caminhões e votos

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  • domingo, 23 de março de 2008
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  • Por vias transversas, sem cálculo e planejamento, aos trancos e barrancos, as eleições municipais em São Paulo parecem ter ganhado um eixo de animação.

    Depois de sucessivos picos de congestionamento, cada um pior que o anterior, houve como que um despertar coletivo: a cidade está parando, e do jeito que vão as coisas aquilo que se estimava como cenário futuro converteu-se em ameaça iminente. O horror ficou escancarado à luz do dia.

    Como bola de neve, o tema foi se consolidando na linguagem cotidiana. Todos passaram a dele se ocupar, do usuário dos transportes coletivos aos que trafegam em automóveis particulares, dos comerciantes aos caminhoneiros e motoristas profissionais. Hoje não se fala de outra coisa.

    É de se imaginar que o tema tenha sido registrado pelos homens de marketing das próximas campanhas eleitorais. A Prefeitura e a Companhia de Engenharia de Tráfego tentaram reagir, anunciando medidas concebidas para atenuar o problema. Acendeu-se uma luz de alerta para os políticos.

    A imagem de uma cidade paralisada pelos automóveis deixou de ser literária para se tornar expressão de uma fatalidade, de algo que acontecerá inevitavelmente e contra o que pouco se pode fazer. Repôs-se assim um tipo específico de pessimismo paralisante, que de algum modo tem estado entranhado na experiência dos paulistanos desde que São Paulo ingressou em seu ciclo de expansão industrial, urbanização descontrolada e gigantismo. Pouco a pouco, o morador da cidade foi-se dando conta que é a cidade que o controla e o impulsiona, como uma turbina com vontade própria. Os espaços vitais – onde se pode simplesmente viver a vida, descansar, cultivar amores, prazeres, filhos e amizades – foram sendo triturados pelo mecanismo febril que faz girar a roda do progresso, do consumo, do desenvolvimento a qualquer custo. O paulistano repentinamente se viu sem uma cidade, órfão de uma polis.

    Pelo menos desde os anos de 1960 há quem venha a público, periodicamente, pregar que a cidade deve “parar de crescer” se quiser de fato encontrar um padrão suportável de convivência entre vida urbana e vida econômica, entre população e espaços.

    São Paulo jamais parou de crescer e não há nenhum indício concreto de que venha a fazer isso proximamente. “Parar de crescer” sugere um ato de vontade, uma decisão. Desliguemos os motores, reduzamos os investimentos produtivos, planejemos a cidade para que ele funcione com menos gente e deslocamentos. Façamos algo antes que a cidade decida, por si só, estacionar e engula seus habitantes.

    Não há como imaginar, nos dias correntes, decisão semelhante. Primeiro, porque não há quem a tome ou a introduza na agenda política. Faltam estadistas para governar a cidade, faltam sujeitos coletivos organizados e capazes de ação sistemática de longo prazo. Depois, porque tudo está direcionado em sentido oposto: cresçamos mais, multipliquemos os automóveis, criemos mais empregos e interações produtivas, sejamos desenvolvimentistas. Este é o mantra do nosso tempo, e contra ele pouco podem os discursos alternativos. Até mesmo a idéia de sustentatibilidade e de um crescimento consciente, que preserve simultaneamente o meio ambiente e as pessoas, circula com dificuldade e tem pouquíssima tradução prática.

    No caso específico do trânsito de São Paulo, há um agravante desesperador: a cidade nunca teve uma política inteligente e consistente de transportes. Prefeitos e governadores se sucedem sem que nada seja feito nesta direção. Já houve um tempo em que só se pensava em obras viárias: mais espaços e facilidades para a circulação. Construíram-se viadutos, túneis, minhocões, vias expressas, como se o desafogo pudesse frear, ele próprio, o desejo de cada morador de possuir o próprio veículo particular e incentivá-lo a usar o transporte público. Nos últimos anos, voltou-se a falar em melhorar os meios coletivos de deslocamento. Fala-se muito, faz-se quase nada. O metrô mal sai do papel, arrasta-se por crateras inacabadas, movido a investimentos contidos e a ações mal articuladas. De repente, as atenções se voltam para os trens metropolitanos e para a eventual cobrança de pedágios urbanos, sem que isso traga consigo qualquer inovação ou valorização dos ônibus, que continuam entregues à própria sorte: precários, sujos, lentos, barulhentos, desconfortáveis, gerenciados por empresas pouco sensíveis à coletividade e imunes ao controle social.

    O fato é que nos aproximamos dramaticamente de um ponto de não-retorno. É insensato achar que nada mais pode ser feito, que tudo o que vier a ser proposto será inócuo, que a cidade segue em marcha batida para o caos. Existem técnicos competentes para projetar alternativas, nichos intelectuais capazes de reflexão crítica, núcleos associativos e pessoas dispostas a brigar pelo interesse geral. Além do mais, não é para processar demandas e interesses, construir consensos e tornar possível o impossível que existem políticos e governantes? Não é para isso que eles servem?

    O processo eleitoral prestes a se abrir fornece um excelente palco para que os interessados em reinventar São Paulo se apresentem. Se os candidatos agirem segundo o padrão prevalecente nos últimos anos, dando aos eleitores tão-somente mais do mesmo – ou seja, propostas midiáticas, desconexas, carentes de um plano integrado, silentes sobre os angustiantes problemas cotidianos dos paulistanos –, daremos um passo a mais em direção ao precipício. Comportando-se como se a solução fosse eminentemente técnica e não tivesse uma dimensão ético-política incontornável, que exige a educação cívica e o envolvimento ativo das grandes maiorias, poderão até ganhar votos, mas não darão um passo sequer para mudar a cidade.

    Candidatos e partidos têm uma oportunidade de ouro para fazer a diferença e plantar uma nova perspectiva para o governo da cidade. Vejamos como se sairão. (Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/03/2008, p. A2).

     
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