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Do Baú do Mello, "A Metáfora de Drácula", conto que deu nome a meu primeiro livro

Da época da publicação do livro (1982) pra cá, pouco mudou, mas alguma coisa melhorou. Já não existem mais os infames bancos de sangue, que pagavam pelo sangue dos pobres para abastecer os hospitais.

A Metáfora de Drácula

in A Metáfora de Drácula, de Antonio Carlos de Mello, Livraria José Olympio Editora, 1982

MESMO DEPOIS DO LANCHE, O copo de leite, ela não se sente bem, a cabeça como se com o peso do mundo. O coração, desses de bolero, batendo desesperado. Palpitações. Vertigem. As pálpebras pesando. Um mal-estar geral, como se tudo estivesse desabando ali, com ela, no banco de sangue.

De repente, louca, a impressão (falsa?) de vê-lo novamente. Num canto, como sempre, todo de preto, quase como se escondido, olhando por sobre o ombro com seu olhar tímido. Ela resolve levantar-se, ir até ele. Mas sente-se tão mal. . . Ele sorri para ela. Um sorriso de lado, caninos proeminentes, rosto pálido, olhar violeta.

Não era a primeira vez que o via. Em várias outras vezes, ela doando sangue, ele, ao fim do lanche dela, aparecia sua presença pálida, mágica, enigmática. Aparecia e sumia, quase uma miragem, quando ela menos esperava.

Mas, antes, sempre, olhares. Olhares que prometiam não o comum, corriqueiro, mas um enigma, decifra-me. No entanto, esse olhar nunca foi correspondido - ela se enchia de medo.

Quando ele saía, pensava em ir atrás. Mas nunca. Por algum motivo acabava ficando sentada, paralisada. No fim, imaginava (belisco-me?) se o havia visto realmente.

Mas, agora, mais uma vez, ele está ali (ou não está?) à sua frente.

Novamente repetindo os mesmos gestos, o mesmo sorriso de caninos, o rosto de lado, enviesado por cima do ombro, o olhar violeta convidativo. O coração (como resistir?) disparado, ela já não sabe se por mal alimentada, pelo pouco sangue, ou se por ele, sua presença...

Mas, dessa vez, descobre tudo. O enigma, decifra- o. Ou. .. Não importa, resolve: hoje, ele saindo, sai com ele. Sente-se mal e não quer ir pra casa. O menino, pode ficar tranquila, com dona Firmina. Qualquer coisa pega ele: "Menino! Vem cá, moleque!" bate nele. A ela ele obedece. Tem mesmo medo de dona Firmina.

Uma voz:
- Tá sentindo bem não?
Ela, meio confusa, procurando a boca da voz, vê, nublado, um rosto gordo e negro a seu lado. Que segue:
- Tá sentindo mal? Tá branca. . .
Ela procura, olhos pesados, por ele. Que sumiu. Responde:
- Não, tô mais ou menos. Já passa. Tô melhor. Isso dito assim, picadinho, solto como cocô de cabra, aos poucos. E a outra se aquieta. Ela, então, olhando a porta, consegue vê-lo novamente. Mais um sorriso e o olhar final, o mais convidativo. Logo, sai. Agora, ela sabe, ou sai com ele ou fica só.


O mal-estar aumenta, sente-se zonza, os olhos pesando, o corpo gelado e suando. E, de repente, a doce sensação, a maravilhosa impressão de levantar-se e ir atrás dele. Pela primeira vez, a coragem necessária, o coração batendo, agora sim, por aquele amor doido.

Na rua, ele a espera. Mal ela surge, ele segue. Ela, atrás. Na estação do bonde, coisa tão estranha, as pessoas falando, as bocas mexendo, as línguas também, mas ela não ouve nada. Dele, vêm o olhar violeta, o sorriso de caninos.

Quando percebe, o bonde está à sua frente, parado; e ele, nele. Mal ela entra, o motorneiro dá a partida. Como se a esperasse. É essa a sensação, tudo funcionando como numa engrenagem.

O condutor, em sua habilidade, aproxima-se. Estranhamente, ela não tem ímpeto algum de procurar dinheiro. Mal se lembra mesmo de ter bolsa, bolso. Essa viagem, não paga. Qualquer coisa, pensa, desce andando - quanto tempo... Além do mais, não sabe por que, tem absoluta certeza de que esta viagem é gratuita, o condutor. . . Essa, agora: se olha com mais cuidado, nem vê condutor, e ri de tudo, um riso que vem de dentro.

Mas, novamente, vem um medo. Um medo dele, três bancos à sua frente. Ela olha Santa Teresa, as curvas, casas, e às vezes chove, às vezes não. Mas o que ela estranha não é o tempo mas a nuca dele, muito branca, muito fina. As mãos, no encosto, como a nuca, brancas, finas. Educação de príncipe com certeza. Melhores colégios. Dinheiro.

Lembra-se do filho, coisa mais louca. E, por isso, olhando a nuca e as
mãos daquele homem à sua frente, pensa, encantada, que, além do amor, há o dinheiro. Colégio para o menino que já chega aos sete.

De repente, a seu lado, porque cutucada, percebe uma passageira negra, gorda:
- Moça, num é melhor chamar um médico?
- O quê?
Ela olha incrédula, aquele rosto; o mesmo que estava a seu lado no banco de sangue. Automaticamente, responde que está bem, não precisa se preocupar. E torna a olhar para a frente procurando por ele.

Em pé no estribo do bonde. Quando percebe que ela o olha, desce, ágil. O bonde andando. A ladeira lenta. . . Ela, num ímpeto, levanta-se. Resolve agradecer ao motorneiro, mas, olhando para onde ele deveria estar, vê apenas um gato, um gato cinzento, que pula para um dos bancos, mia e salta os estribos ganhando as ruas. Ela, então, faz o mesmo. Desce, e o chão parece fofo demais, faz cócegas nos pés. Ela tem vontade de rir, rir muito, rir, rir, rir rir.
Mas, apenas, acelera o passo, recupera tempo. Ou o perde, que ele anda rápido agora - com pequenas olhadinhas para trás.

Será que se arrependeu?, ela pensa.

Já no alto da ladeira. Casa, apenas uma. O mato crescendo em volta em verde desalinho. Uma casa como se abandonada no tempo, antiga, tão grande. Bonita como se de um filme. Podia mesmo imaginar histórias.

No grande portão de ferro, ele para. Mexe no bolso, no cabelo bem penteado. O olhar por sobre o ombro procurando-a. Ela: do outro lado da rua. Rija. Tem medo, indecisa. Desde o marido morto, nunca mais outro homem. Mas, dentro, o coração querendo o risco.
Agora, o sorriso de caninos, convidativo. Logo, o portão aberto, passos rápidos, ausência.

Do outro lado, ela se sente zonza, bambeia, senta-se. Atrás dela, uma parede (mas, como, se só havia mato?). Sente-se mal, como se dentro de um pesadelo (sonho?). Acima de sua cabeça, uma placa, Banco de Sangue. E, colado, um cartaz, campanha para doadores: Hoje os hospitais precisam de sangue. Amanhã pode ser você.

Pensa que já está ali sentada há um tempo. Precisa decidir-se.
E ele, aparecendo na janela do segundo andar da casa, decide por ela. Irá. Não há nada a perder. A não ser ele, que desaparece.

Ela, então, em frente ao portão - imenso, grades de ferro pesadas. Numa mágica, move-se, aberto. Ela, estupefata. Sua primeira reação, dois passos atrás, numa defesa. Logo, acalma-se. Que deve entrar, pensa, seguir o corredor à sua frente.

Igual a filme de terror, o corredor é comprido, sinistro, tendo ao fundo uma porta que, como se esperasse por seu olhar, repentina como antes o portão, numa mágica, abre-se, chama-a. .

Chegando à porta, um susto grande: duas galinhas, pescoços depenados e quebrados, abandonadas no ladrilho branco, respingado de sangue, mortas. Olhando para a direita, reconhece-o, sentando, avental no colo (sujo de sangue), comendo, voraz, algo parecido com uma sopa.

- Servida?
A primeira coisa que lhe passa pela cabeça é sair dali, ir embora. Que é uma loucura isso tudo.
- É molho pardo. Galinha eu não gosto. Mas o molho. . .
Ela não sabe com o que está mais surpresa. As palavras fogem pela boca:
- Sangue!?
Ele, na sua natureza:
- Sangue... molho pardo... como preferir. Ela, os olhos nas duas galinhas mortas:
- Mas, e as galinhas?
- Eu não como carne. A não ser que você. . . Esteja à vontade. Eu tenho nojo.

Sem saber por que, quando percebe, está deitada, tudo rodando à sua volta. Sente que passou um tempo. Um minuto, dia, quanto? Pisca os olhos, tenta, em meio àquela névoa à sua frente, enxergá-lo. Procura o branco de sua nuca, dos dedos longos e finos. Vê apenas o sol com seus raios de luz faiscantes, transformando, dentro de seus olhos imediatamente fechados, tudo em fundo negro com bolas (bolhas?) vermelhas, transparentes.

A voz dele, sensual:
- Você tem umas pernas lindas, roliças. . .

Ela, abrindo os olhos, percebe seu vestido dobrado, a calcinha aparecendo - sua pior calcinha. .. Num impulso, tenta arrumar-se. Mas sente-se fraca. Pensa, então: dele mesmo, a voz? E, levantando os olhos, torna a vê-lo, ainda na sopa, molho pardo, sangue. Torna a vê-lo e sente um só tremor, fundo, no coração. Que as pernas eram lindas, ele disse. Arrumar o vestido, pra quê?, pensa. E pensa mais: não terá ouvido mal? Anda embaralhando tudo, nunca esteve assim, tão ausente.
E as palavras saem meio bêbadas:

- O que foi que você falou? E ele, enigmático:
- Minha casa, se acha que é bonita.
O que dizer?
- É grande. Deve dar trabalho limpar, fazer faxina nela toda.
A cabeça pesa, os olhos fecham. Bolhas, como pulgas transparentes, saltando lá dentro, no corredor escuro dos olhos fechados.
- Um peito muito gostoso você deve ter.
A voz dele é um vento frio, arrepia-a. Tenta abrir os olhos, um sorriso. Mas a boca ainda duvida:
- O quê?
- Perguntei o que é que você faz.
- Como assim?
- Se trabalha, se é casada...
- Viúva.
Ele, com frases na ponta da língua:
- Tão nova. Há muito tempo? Que tragédia. Tem filhos?
- Um menino. Chama F.
- F.? Que nome bonito. E o seu?
O sorriso de caninos mal disfarçando o mal-estar.
- M.
- M. M. também é bonito.
Há um silêncio, constrangimento. Ela pensa: no que faz ali; em ir embora; no filho.
- O meu é Drácula. Gosta? Ela estranha:
- Draque?!
- Drácula. Drá-cu-Ia. Nunca ouviu falar?
- Nunca.
E, como se significasse alguma coisa, ele:
- Ótimo. Assim está bem. Sou o único.

O corpo balança. Ela sente que mexem em seu ombro, mãos que a apalpam, vozes longínquas. Pisca os olhos, tem medo de estar ficando louca e ânsias de vômito.

- Viúva. .. Deve estar louca por... Muito tempo que não. .. Eu tenho vontade
de chupá-Ia.
Cada palavra dessas, uma carícia. Com elas, o bem-estar, mas também a dúvida:
- O quê?
- Se ele a deixou em boa situação.
Nada do que ela esperava. Mais uma vez.
- Meu marido?
Ele faz que sim com a cabeça. Logo depois, arrepende-se:
- O ex-marido.
- Uma miséria. Era vigia. Pensão que num dá nem pra comer. Tenho vergonha de... Não, vergonha coisa nenhuma! Muitas vezes já passei fome. Quando muito, um pão, assim, de manhã, e mais nada.

Ele apenas observa. No que pensa?, ela pensa. Será que deveria ter dito isto? Medo.
Tentando, em sua ingenuidade, melhorar:
- Às vezes, um café ralo. . . Agora, com toda a coragem:
- Por isso é que eu vou lá no banco, preciso.
Ele, assustado, saltando da cadeira, um bicho tenso:
- Banco?!
- É, o banco de sangue. Lá dão um lanche. E também o dinheiro. Num é nada, num é nada, com ele é que eu me viro.
Ele, lê-se no rosto, transtornado, desiludido:
- Pensei que fosse por. . . Eu pensei que. . . Ela, preocupada:
- O quê? Que foi que eu disse?
Ele, sentando-se, sentido e quase chorão, um menino contrariado:
- Pensei que você gostasse. Que fosse lá, não pelo dinheiro mas pelo prazer de ter seu sangue... ahn...uhn. . . doado.
Ela ri, indicador enrolando os cabelos, um cacho:
- Prazer?! Tá brincando comigo. . .
Ele, não querendo acreditar:
- Eu sempre a via. . . quase que diariamente. . . Pensei que. .. Mas vejo que não, que me enganei.
Ela, ainda no cacho, faceira, não entendendo:
- Enganou, com o quê? Seco:
- Nada, nada. . .
Ingênua:
- É mais por causa do menino, você sabe, criança, se a gente tem. . . Porque eu penso assim, num deixo largado por aí, não. . .

E, de repente, tudo gira, ela sente que tudo está confuso, a voz dele parecendo mil vozes, ecos, todo mundo falando ao mesmo tempo, e o sol, o sol batendo forte, lançando chamas em seus olhos, pontas de fogo, o sol...

- Eu seria atrevido se dissesse que gostei de você desde a primeira vez em que a vi?
Ele sabe como falar, que palavras usar. O mal-estar, como num encanto, cessa. O coração dela não mais resiste. E resistir, pra quê, se a solidão de viúva chega ao fim, se o colégio para o filho. . .
A voz:
- M., estou apaixonado por você. Doidamente. Completamente.
Ela não sabe o que fazer, sensação tão boa. Parece que delira. Tenta abrir os olhos, mas há o sol, o sol lançando raios. . .
Sol que some. Tudo negro. E ela, então, pode vê-lo: sentado, ainda na sopa.
- Eu tô entendendo bem? Que foi que você disse? E ele, um punhal:
- Você quer trabalhar aqui pra mim? Toda a distância entre os dois. . .
- Pode trazer o menino, a casa tem tantos quartos. . . Ela, refazendo-se, pensando no filho, mordendo as palavras, doída:
- Trabalho, de quê?
Ele, com uma formalidade de patrão:
- Todo o serviço. Lavar, passar, cozinhar, arrumar. Em troca, casa, comida
(pra você e pro seu filho) e. . .
Raios apertam seus olhos. Ela pensa que está morrendo, o coração dando pequenos saltos sem ritmo - um pião que, depois de muito girar, exausto, bambeia, bambeia cada vez mais, já não se agüenta, cairá.
Num esforço, ela volta os olhos pra ele. E estranha seus gestos, como se algo se repetisse:
Ele, com uma formalidade de patrão:
- É, todo o serviço. Lavar, passar, cozinhar, arrumar. Em troca, casa, comida (pra você e pro seu filho) e...
Ela não sabe, coração ferido, o que pensar. Ele prossegue:
- ... quanto é mesmo um salário mínimo? Quanto? Eu dobro. Casa, comida e dois mínimos.
Levanta-se, paternal. Pela primeira vez, um carinho: rápida, a mão nos cabelos dela.

Uma voz, em meio a outras:
- Peraí, gente, dá espaço aí, colabora, dá espaço pra ela poder respirar. (Respirar?). Quando percebe, está no quintal, escuro, da casa, as duas galinhas mortas na mão. Não sabe por que, chama um nome, Lobo, duas vezes.
E um lobo imenso sai por uma porta baixa, estreita, feroz em cima das galinhas, despedaçando-as, devorando-as e rosnando, enquanto ela, assustada, sem compreender, olhos esbugalhados, grita por Drácula.
Que aparece, aos berros:
- M., eu avisei a você! É burra?! Dê a comida daqui, do lado de fora!
Falando assim com ela, aos esporros. Tudo em nada. Todo dia a mesma rotina, o pó da casa pra espanar, regador nas plantas, a comida de Lobo (às vezes, animais vivos)... Vida vã, o filho nem no colégio. . .
- Colégio, pra quê? Novo ainda. Ano que vem, eu coloco, palavra. Ele ainda está na idade de aproveitar a vida, M.
Ela: que sim com a cabeça.
O menino aproveitando a vida: todo dia ao aviário apanhar galinhas; pela manhã, uma graxa nos sapatos de Drácula; brincar, só pelo quintal da casa, correr em círculo, catar formiga, passar o tempo.
F., com seus motivos, não gosta dele. Esperto que era, até desobediente, vive chorão, atrás das saias dela, um medo imenso de Drácula. Vendo-o, enrosca-se nas pernas dela, geme, murmura, corre. No pescoço, como pequenos sinais, dois buraquinhos, feridinhas que nunca cicatrizam. . .
- Mãe, vamos embora daqui.

Mas Drácula parecia adivinhar: nesses dias, bombons pra ela e pro menino, dois, Sonho de Valsa. E mais:
- O dinheiro, fique tranquila, depois de amanhã. . .
Feliz:
- Tudo de uma vez!? Quanto?

Ele diz uma mixaria. Que o dinheiro vai sair (após meses, anos, quanto?), mesmo não tendo entrado, pois atravessa grave crise financeira. .. Mas vai sair descontado: tanto do vidro da janela que F. quebrou; tanto de médico pra sarar a mão do menino que, na falta de algo pra fazer, infantil, quis brincar com Lobo; tanto de isso e de aquilo; até os Sonho de Valsa. . .

Um dia, por causa de F., resolve ir embora. Os olhos de Drácula molham-se, tristes. Lágrimas escorrem, gota, gotas.
- Por quê?
E ela, o coração na mão, responde que o ama, sempre o amou, e ele sempre abusou dela, se aproveitou mesmo disso, nunca cumprindo o prometido, obrigando-a a trabalhar dia e noite; e que, além do mais, o pior de tudo, ele não gosta de F., nunca gostou. . .

De repente (e ela bem que tenta proteger-se, mas não tem forças), sente que abrem seu vestido, rasgando-o a partir do pescoço. Ouve, lívida, vozes, descargas de automóveis. .. Abre um pouco os olhos, para logo fechá-Ios: o sol...

Ouve-o, ao mesmo tempo em que se aproxima, apaixonado, como num filme imaginário, entre beijos:
- Nunca, M., nunca! Você não vai me abandonar. Eu não vou deixar, meu amor! Casaremos. Você ficará para sempre aqui comigo. Prometo tratar de F. como se fosse meu próprio filho e...
Ela não quer saber de mais nada. O coração tem seus mistérios. . . Era tudo o que queria ouvir. Com a ponta dos dedos cerra seus lábios, os de Drácula, lábios pálidos. Apaixonada, aceita ficar. Por ele, tudo, e para sempre. O filho, ela fala com ele.
E Drácula, as mãos alvas nas dela:
- Depois de amanhã nos casamos, M., depois de amanhã. . .

Estranha o que sente agora: um vento no rosto, intermitente. Com muito esforço, abrindo um pouco os olhos, vê um pano, um pano que vai pra cima e pra baixo, lento, lentíssimo, um pano azul, vupt-vupt, pra cima e pra baixo, o sol batendo no rosto quando ele abaixa, sumindo quando levanta, e sempre o ventinho, uma coisa agradável, o ventinho no rosto, uma coisa tão boa!

Logo, uma correria louca, como se numa montanha russa, dentro de sua cabeça. Tempo atropelado por fatos, restando, apenas, as promessas de Drácula: intocadas, repetidas (falsas?)... A de casamento, como antes as de pagamento, nunca cumprida, "depois de amanhã". . .

Agora, sente que está deitada numa cama macia. Quase sem força entre lençóis bordados (noite de núpcias?). Ouve uma voz, um murmúrio doce em seu ouvido, Drácula:
- Amor, hoje vou pedir uma coisa a você, uma coisa que eu nunca pedi. . .
E segue dizendo, entre carícias e luzes indiretas, mão nos cabelos dela, aquela mão de dedos longos, sua mão alvíssima:
- ...uma coisa que você não faz há muito, muito tempo... Por fim, lambendo-lhe a orelha:
- ...seu sangue. Você sabe que eu gosto.

(Como resistir?). Ela aceita. Um pouquinho, e sendo pra ele, não faz mal.
Pergunta como pretende, ingênua. Ele aproxima, guloso, os caninos de seu pescoço.
Ela, como se houvesse em seu corpo milhões de formigas, adormecidos os músculos, nada sente, a princípio. Mas, logo, tem a certeza (de onde vinda?.) de que está sendo sugada, de que seu corpo, cada vez mais fraco. . . E aqueles dentes em seu pescoço. . .
- Amor, assim eu morro.
Mas Drácula está surdo. Ela, com as mãos, tenta empurrá-lo, mas ele está invisível. Mesmo que abra os olhos com toda força, não o vê mais. Nessas horas, o que vê é um pano azul, lentíssimo, um pano azul que balança e solta um vento fresco em seu rosto, um vento, uma coisa quase santa, mística. . .

Não sabe por que (o vento?), tem certeza de que está morrendo. Rapidamente, ela pensa no filho. Tenta gritar seu nome. Mas não tem forças. Imagina-o, menino, sem ela, já que morre. Nu destino. . .

E assim, com esses pensamentos, morre. Morre, e uma inútil camisa azul segue balançando, tentando um ar para que respire. Morre, e a multidão, ainda imaginando-a viva, pensa na ambulância que não chega, pergunta se não há médico algum no banco de sangue.

- Logo na hora que ela entrou, já vi que ela tava mal. Depois então que deu sangue. . .

Se a gente procura a dona da voz, reconhece, negra e gorda, a companheira de M. Companheira de tudo, e desconhecida. .. O rosto suado, o sol inclemente, sua voz, a realidade:

- Logo na hora que ela entrou, já vi que ela tava mal. Depois então que deu sangue, parece que piorou. Ficou sentada, meio abobada. Duas ou três vezes perguntei se tava sentindo bem, e ela disse que sim. Depois levantou e foi apoiando na parede, mal mesmo, tonta que nem se tivesse bebido. Saiu e veio cair aqui fora. Tudo isso assim, num tem nem meia hora. Quinze minutos, se tanto. Agora, taí, coitada... Ainda rasgaram o vestido dela, o porteiro da casa - disse que pra ela respirar, que ela precisava de ar, de ar...



Madame Flaubert, de Antonio Mello

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Do baú do Mello, 'Casas de las Americas', porque todo mundo já foi poeta um dia




Casas de las Americas

o dia começa com uma pedrada no sol.
aberto, observe-o, hemorrágico,
abundante, abre as trevas,
mostra o trágico
despertar da cidade, desenterra-a.

num canto: cama de tacos,
pai, mãe, filhos, baratas,
móveis quebrados, fome e ratos,
todos ainda intactos
a seu, do sol, contacto;

mais, ei-lo, que já invade,
magnânimo,
um estilhaço de raio,
ainda vermelho, embora exangue;
ei-lo invadindo, alexandre,
o reino anêmico, que range.
o pai, até a janela,
a mãe, à água e panela,
o galo canta cucurucu!

da janela, o homem estica
os braços
estalando a verdadeira cordilheira
de ossos
e grita: bom dia!
do outro lado de nossa américa
do sul
a miséria vizinha replica: buenos dias!

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Trechos do romance Madame Flaubert, de Antonio Mello

Aqui, Ema B. (a Ema Bovary de Antônio C.), num táxi por Botafogo e Copacabana, e com lembranças do primeiro beijo, que recebeu da amiga Marina (e que se tornou sua primeira namorada), à casa de quem se dirige agora, mais de 20 anos depois.


3.
O táxi segue pela noite do Rio. Logo que entrou, Ema disse ao motorista o destino, pediu que desligasse o rádio e fechasse os vidros para não desarrumar seus longos cabelos castanhos.
            O motorista olhou para ela e pensou, aborrecido: nem um “por favor”!... Sim, era o que ele esperava dela, um mínimo de educação: “o senhor pode fechar as janelas, por favor, desligar o rádio, por favor, e ir até a avenida Atlântica, por favor?”...
            Olha-a pelo espelho retrovisor e percebe que está aflita e distante. Repara nela por um tempo, até ter a certeza de que não olha um instante sequer para o taxímetro. Aperta, então, um dispositivo que faz o relógio disparar, aumentando o preço da viagem. Ela nada percebe. Ele sorri. Já não precisa do rádio ligado, nem das janelas abertas, muito menos do "por favor"... Sorri e acelera tranquilamente, vitorioso.
            Ema repara a rua. O motorista seguiu o Humaitá para pegar Copacabana pelo Túnel Velho. Estão na Pinheiro Guimarães, em direção ao Cemitério de São João Batista. Ema pensa que seu pai está enterrado ali. Sua mãe também. E também outros inúmeros parentes e amigos. Pessoas famosas, como Carmem Miranda. Pessoas anônimas.
            Ela pensa que lá nos fundos, em cima do morro, dizem, fica um cemitério de cachorros. Será? Sabe, apenas, que se sente nublada, quase que com um sentimento de luto. Não por ninguém especificamente. Nem pelo pai ou a mãe. Talvez por todos os que já morreram. Ou pelos que ainda morrerão. Muito provavelmente, por ela. E o sentimento de luto faz com que pense na sua morte. E o pensamento da morte, em Deus. Deus leva-a ao sinal da cruz. O sinal da cruz a uma oração. Pai Nosso. Mas mudaram o Pai Nosso. Como é mesmo, em lugar de "perdoai as nossas dívidas"?... Ela se perde na oração, enquanto o carro passa em frente ao cemitério.

4.
As meninas usavam um vestido estilo jardineira azul marinho, quase até os tornozelos. Camisas brancas de mangas compridas, fechadas até em cima, onde um laço de fita também azul marinho lembrava uma gravata borboleta. O colégio das madres era grande, com uma área imensa, no coração da Floresta da Tijuca. Jaqueiras, pés de jambo que enchiam o chão de flores cor-de-rosa.
            O pátio está vazio. É hora de aula, as salas lotadas. Professoras explicam álgebra, geografia, linguagem - como se dizia na época -, com direito a Leitura Silenciosa, e religião.
            Duas meninas, apenas as duas, passeiam pelo pátio apressadamente, como que fugindo de alguém, ou de todos. Uma, morena. A outra, loura. Dez, onze anos. Saem da área cimentada, ao encontro da floresta. Escondem-se atrás de uma árvore, o coração quase na boca, de emoção. Sentam-se. Seguram-se as mãos.
            - Você viu a novela ontem? - a morena.
            - Vi... A briga do Lucas com a Marlene...
            - Eu tô falando de outra coisa...
            A loura tem medo, porque adivinha. Mas um medo que não faz recuar, ao contrário, aumenta o desejo.
            - Do quê? - a loura.
            - Do beijo que ele deu...
            A loura estava certa. Sabia que era sobre o beijo que a morena queria falar.
            - Eu vi... Um beijo na boca - a loura.
            - Você já deu beijo na boca?
            A loura tem a certeza. Mais: medo. E também desejo.
            - Eu não!, diz, com pudor. E você?, pergunta à morena.
            - Eu já dei.
            - Mentira! Mentira sua! Deixa de ser mentirosa!
            - Dei sim!... Foi no Beto, meu primo. A gente brincou de pera, uva ou maçã.
            - Mentira!
            - Eu juro!... Quer ver como é que é?
            A loura sabia que esse momento aconteceria. Desde o instante em que chegou à escola, pela manhã, e a amiga propôs que fugissem na aula da irmã Robleda, velhinha, professora de linguagem. Desde então ela sabia de tudo. E aguardava.
            - Quer ou não quer? - a morena, que parece não ter medo de nada.
            - Quero, diz a loura, num fio de voz.
            Nervosamente, elas se aproximam. Olhos nos olhos, as mãos suadas, o coração mais que disparado. O tempo parece uma eternidade, os gestos lentos e estudados, como os de um ritual. A morena encosta o rosto no da loura, seus lábios nos dela, e coloca a língua lá, para espanto da loura, que arregala os olhos, mas cede, abrindo completamente seus lábios, e deixando o corpo relaxar e deslizar suavemente em direção àquele outro corpo à sua frente.
            - Ema! Marina! - a voz da Madre Silva, responsável pela disciplina, procurando pelas duas.
            O beijo se desfez, restou apenas o medo. E essa não foi a última vez em que as duas tiveram suas cenas roubadas.



5.
E agora é o motorista de táxi quem interrompe Ema.
            - Para que lado da Atlântica nós vamos, madame?
            Ela tem dificuldades em responder. É trabalhoso voltar de há mais de vinte anos. Mas responde.
            Logo, estão em frente ao prédio de Marina. Ema, ao olhar para o taxímetro, percebe que está adulterado. Outra pessoa brigaria. Ela não. Aprendeu de pequena a evitar escândalos, mesmo que para defender seus direitos. Uma mulher de classe não fala alto, não discute, apenas ordena ou se submete, e jamais se rebaixa. Um motorista de táxi, pensa ela, é um pobre diabo, não vai, jamais!, discutir com um. Paga. Deixa o troco, como forma de vingança, como quem diz "tem mais de onde esse veio". O motorista acelera, satisfeito, enquanto ela, a morena, anda em direção ao prédio de Marina, a cabeça altiva, os passos firmes, mas por dentro queimando, insegura, não por causa do motorista, mas por não saber "no que a loura estará pensando"... Há tempos não se vêem. Logo, estarão frente a frente: a menina morena e a menina loura. É com essa emoção que Ema se dirige à portaria do prédio de Marina; uma emoção que talvez seja a única que ainda a toque, mesmo que tão à distância.

Para mais informações sobre o romance, clique no banner abaixo.


Madame Flaubert, de Antonio Mello

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'Madame Flaubert é um romance excepcional' - Gustavo Bernardo sobre meu romance Madame Flaubert

Gustavo Bernardo é escritor e professor associado na UERJ, onde leciona Teoria da Literatura. Talvez seja o único escritor no Brasil a ser finalista do Jabuti em três categorias diferentes: literatura infantojuvenil (A Alma do Urso), romance (Lúcia) e Teoria Literária (A Dúvida de Flusser). Sobre meu romance Madame Flaubert, ele escreveu:

Madame Flaubert é um romance excepcional. 

Seu título, brincando com a afirmação de Flaubert, madame Bovary c’ est moi, indicia que ele se arrisca a fazer um romance dentro de um romance dentro de outro romance, como se fosse uma boneca russa que se naturalizasse brasileira.

Sugere, também, uma daquelas gravuras de M. C. Esher, em que as figuras que parecem sair de um quadro ou de uma folha de papel se encontram, por sua vez, em outro quadro ou folha de papel. Da mesma forma, os personagens desse livro escrevem novelas e livros e parecem interagir com os personagens que por sua vez inventam, matando-os e sendo mortos por eles, o que acaba sendo o enredo de um romance chamado... Madame Flaubert.

Tudo acontece no início dos anos 90, quando Collor foi eleito e depois deposto, e quando uma atriz, por acaso filha da autora da novela em que atuava, foi morta por um ator, por acaso seu par romântico na mesma novela. Glória Perez e Fernando Collor têm participações incidentais, mas importantes, no romance de Antônio Carlos de Mello. A história mostra personagens em crise procurando tanto o sucesso quanto o sentido, comumente confundindo um com o outro.

Lê-se como se fosse um romance genial e sofisticado e, ao mesmo tempo, lê-se como se fosse um romance policial e eletrizante. Ou seja: a chamada alta literatura mistura-se desavergonhadamente com a chamada baixa literatura, a literatura popular, de mercado, e o resultado é fascinante.

Antônio Carlos de Mello, que agora assina simplesmente Antonio Mello, publicitário, até hoje publicou pouco: A metáfora de Drácula (Rio de Janeiro: José Olympio, 1982), um fascinante livro de contos, e A fome e o medo (Rio de Janeiro: edição da InternAD, 1998), um panfleto no nível daqueles que Swift fazia. Ou não tem muita consideração pelos leitores, ávidos de literatura de fato instigante, ou estava se guardando para preparar essa obra-prima, chamada Madame Flaubert.

Aguardo leitura e comentários de vocês, e também uma ajuda na divulgação.

O livro já está à venda no site da editora Publisher, por apenas R$ 30 e com frete grátis para todo o Brasil. Clique aqui ou no banner abaixo para conhecer um pouco mais do livro e também efetuar seu pedido.


Madame Flaubert, de Antonio Mello

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Madame Flaubert, romance de Antonio Mello (do Blog do Mello), lançado pela PublisherBrasil (do Renato Rovai)

Aqui ao lado, você pode ver a reprodução da capa de meu terceiro livro publicado, o romance Madame Flaubert, editado pela Publisher. A seguir, o texto que fiz para as orelhas do livro:






Bem-vind@ a Madame Flaubert.

Desde criança, minha paixão sempre foi escrever. E não ter medo de chavões, caso eles sejam verdadeiros, como na frase anterior.
Tenho dificuldade de falar em público, de me concentrar (especialmente se houver música) e de me comportar segundo as etiquetas.
No entanto, até esses meus mais de 50 anos de vida, vivi assim, ironicamente (uma de minhas frases prediletas é “Deus é ironia”), de fazer o que mais tenho dificuldade.
Como publicitário e marqueteiro político, na maioria das vezes vendi sonhos que nunca foram meus.
Mas também descobri qualidades minhas que nunca viriam à tona se não fosse pela força da necessidade. Aqui, coloco o jinglista premiado e procurado que sou - embora não toque instrumento algum, assim como não consigo andar de bicicleta ou dirigir automóveis (mas sou excelente co-piloto... rsrs).
MADAME FLAUBERT é, seguindo esse estranhamento, um bildungsroman, um romance de iniciação, embora eu tenha publicado com relativo sucesso o livro de contos “A Metáfora de Drácula”, há mais de 30 anos, em 1982, pela antiga e prestigiada Livraria José Olympio Editora, o que muito me orgulha. E depois um maldito (no bom sentido) “A Fome e o Medo”, em 1999.
Este livro é também o primeiro de uma trilogia, que tem como personagem principal o estranho Antônio C. Nele, trabalho a construção do romance, e é possível, a um observador atento, subir degrau a degrau essa montagem.
O segundo, que devo concluir até o final do ano, vai se chamar “Maravilhoso Mundo das Mulheres”, e, nele, a trama tenta ser protagonista, embora a forma literária imponha seus gloriosos limites.
O terceiro ainda está por se construir, mas tem título e provocação literários: Vai se chamar “Afinal, o que elas querem?”, que chupei de uma famosa frase atribuída a Freud. Uma investigação sobre essas criaturas que tanto nos (ou, pelo menos, me) fascinam: as mulheres.
Tenho um blog que não trata de nada disso, mas de política, o Blog do Mello, que completou agora neste 2013 oito anos. E que também me dá muito prazer e me trouxe novos amigos.
O que espero que este romance também possa produzir, ao menos, como diria Antônio C., “pelo prazer de encaixar as palavras umas nas outras, esse roçar erótico de letras e sentenças”.

Aguardo leitura e comentários de vocês, e também uma ajuda na divulgação, como diz o cabeçalho do blog, remando contra a maré.

O livro já está à venda no site da editora Publisher, por apenas R$ 30 e com frete grátis para todo o Brasil. Clique aqui ou no banner abaixo para conhecer um pouco mais do livro e também efetuar seu pedido.


Madame Flaubert, de Antonio Mello

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