Classes e luta de classes: nascimento do capital

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  • quarta-feira, 6 de novembro de 2013
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  • Por Wladimir Pomar*

    Os recursos monetários acumulados pela classe comercial e por parte da nobreza endinheirada inglesa só se transformaram em capital quando tiveram uma aplicação produtiva. Isto é, quando o dinheiro passou a comprar armazéns, ferramentas, equipamentos de trabalho, matérias primas e, principalmente, força de trabalho livre, dando início a um novo modo de produzir.

    Utilizando forças humanas de trabalho, compradas livremente, que colocavam em funcionamento as ferramentas e os equipamentos de sua propriedade, os comerciantes conseguiam fazer com que as matérias primas fossem transformadas em produtos. Assim, apesar da acumulação de riqueza que levou ao capital ter sido realizada totalmente por meios extra-econômicos, a partir do momento em que tal riqueza se uniu ao trabalho, tudo tendia a funcionar estritamente através de regras econômicas. A rigor, não havia mais necessidade de outras ações que também não fossem econômicas.

    O dinheiro, ou capital dinheiro, passou a ser o intermediário universal. Ele permitia adquirir ferramentas, máquinas, galpões, matérias primas e outros meios de produção, transformando-se em capital constante, ou bens de capital. Além disso, o dinheiro também passou a comprar a força humana de trabalho pelo tempo necessário para colocar em funcionamento as ferramentas e as máquinas, transformando-se em capital variável.

    Durante o tempo pago pelo capital variável, o trabalhador transformava as matérias primas num número determinado de produtos vendáveis, adicionando a tais produtos um valor superior ao capital variável que lhe era pago. O que permitia ao comerciante, no ato de venda, não só recuperar o custo da amortização das ferramentas, máquinas e matérias primas, mas também extrair um lucro daquele valor extra adicionado pelo trabalhador.

    Nessas condições, as relações entre trabalhadores sem-propriedade de meios de produção e comerciantes proprietários de meios de produção passaram a ser uma relação entre homens livres, mediada pelo salário, ou capital variável. Isto é, por uma quantidade de dinheiro supostamente equivalente ao trabalho (ou quantidade de produtos) realizado pela força humana. Tais relações eram qualitativamente diferentes das relações extra-econômicas existentes no escravismo e no feudalismo.

    Portanto, sem ter qualquer consciência do que estavam gerando, os comerciantes ingleses que acumularam riquezas durante o período de expansão mercantil deram nascimento a uma nova forma ou modo de produzir, e a uma nova relação social. Isto representou uma revolução econômica, social, cultural e política mais profunda do que todas as ocorridas anteriormente. Mas tal revolução só foi possível porque, na Inglaterra, a acumulação de recursos monetários ocorreu paralelamente a uma profunda revolução agrícola no sistema feudal. Essa revolução, além de introduzir novas técnicas e relações sociais mediadas pelo dinheiro, expropriou massas populacionais imensas e as jogou na vagabundagem, isto é, as transformou em ralé.

    A Espanha, a China e vários outros reinos europeus e asiáticos que haviam avançado no feudalismo, ao contrário, não realizaram qualquer revolução desse tipo. Mantiveram intocado seu sistema feudal, ou o reforçaram, intensificando a submissão das massas camponesas à terra e aos senhores fundiários. A França, no entanto, mesmo sem haver mudado o sistema feudal, ingressou rapidamente na produção manufatureira de bens de luxo. Nessas condições, o reino francês viu serem acirradas, de forma extremamente conflituosa, as contradições entre a necessidade de forças de trabalho livres para as manufaturas e a manutenção dessas forças amarradas aos feudos.

    Certamente por isso, mais do que na Inglaterra, a necessidade de trabalhadores livres na França tenha se tornado uma bandeira radical de luta da burguesia comercial e manufatureira contra os feudais. Não por acaso, foi na França que os slogans de liberdade, igualdade e fraternidadeforam empunhados pelos representantes ideológicos e políticos da incipiente classe burguesa. E que a reforma agrária, a extinção do feudalismo e a libertação do campesinato tiveram um caráter social e politicamente muito mais revolucionário do que na Inglaterra.

    Apesar disso, seus efeitos foram idênticos. Isto é, criaram o mesmo novo modo de produzir, as novas relações de produção e as novas classes sociais, embora por caminhos diferentes. Na Inglaterra, os embates entre a classe burguesa comercial e a classe fundiária nobre, embates várias vezes atravessados pela interferência radical dos camponeses diggers e levellers, não levaram à extinção da nobreza fundiária. Esta já havia se tornado uma fração da burguesia mercantil, permitindo um acordo para a manutenção da monarquia constitucional. Na França, ao contrário, aqueles embates levaram à revolução política violenta para derrubar a monarquia, proclamar a república, implantar a ditadura da pequena-burguesia e instituir o terror para eliminar a nobreza feudal.

    Porém, tanto na Inglaterra quanto na França, a burguesia comercial sofreu uma clivagem à medida que o sistema manufatureiro original desembocou no sistema industrial, com a revolução técnica da máquina e vapor e, depois, da eletricidade. Ocorreu uma importante divisão entre as atividades industriais, comerciais e financeiras, resultando no fracionamento na classe capitalista burguesa. A burguesia industrial passou a predominar sobre as demais frações. O mesmo tipo de fracionamento ocorreu na classe trabalhadora assalariada, com sua fração industrial predominando sobre as demais, seja em virtude da maior demanda da indústria por trabalhadores, seja pelo fato de que as fábricas ofereciam condições mais favoráveis para a conexão, a organização e a luta dos operários.

    Olhando com atenção a experiência histórica de nascimento do capital e sua evolução em capitalismo, podemos concluir que a burguesia, isto é, a classe capitalista, surgiu da classe comercial presente no feudalismo. Essa classe comercial, em aliança com parte da nobreza feudal monárquica de alguns reinos, acumulou riquezas no processo de expansão marítima e predação de outros povos. Isso lhe permitiu ingressar na manufatura, aproveitando-se da massa ralé expropriada dos campos, seja pela ação da própria nobreza, seja pela extinção revolucionária dos feudos. No seu processo de evolução, a classe mercantil transformou-se em classe capitalista manufatureira e, depois, em classe capitalista industrial, financeira e comercial.

    Já os excedentes populacionais provenientes do campesinato feudal transformaram-se em ralé, ou diretamente em classe trabalhadora assalariada. A ralé, ou parte considerável dela, por sua vez, também se transformou em classe trabalhadora assalariada à medida que a burguesia comercial se tornou burguesia manufatureira e industrial e demandou mais forças de trabalho.

    Essas metamorfoses de umas classes em outras são típicas dos processos de evolução dos modos de produção e das formações sociais. E sempre estiveram relacionados com a propriedade dos meios de produção e com as relações de produção que cada propriedade específica gera. A propriedade fundiária do sistema escravista promoveu uma relação de produção baseada na propriedade privada sobre os trabalhadores, como se meios de produção fossem. A propriedade fundiária do sistema feudal promoveu uma relação de produção baseada na propriedade privada legal (real ou concedida) sobre o solo, mas não formalmente sobre os trabalhadores, que eram proprietários de meios de produção, mas não da terra.

    O capitalismo subverteu tudo isso, ao restringir sua propriedade privada aos meios de produção e estabelecer uma relação de produção com homens livres proprietários de força de trabalho, mediada pelo salário, ou seja, por parte de seu capital. Isto, no entanto, que parece ser a base para a divisão social e para a definição das classes sociais sob o capitalismo, tem sofrido constantes tentativas de revisão.

    Primeiro, porque o capitalismo, mesmo onde se desenvolveu mais rapidamente, não eliminou todas as classes anteriores. Muitas vezes as manteve como adereços econômicos, políticos ou culturais, a exemplo das nobrezas de vários países europeus que se tornaram capitalistas, e da persistência do patriarcalismo, mesmo modernizado. Depois, porque fez uso amplo de formas extra-econômicas de exploração de seus trabalhadores e de outros povos, inclusive utilizando-se do escravismo e de sistemas feudais ou aparentados, para obter lucros ainda maiores, em especial a partir da segunda onda de colonização imperial do século 19.

    Finalmente porque a constante expansão do capitalismo pelo planeta tem se dado de forma extremamente desigual, descombinada e conflituosa, como veremos adiante.

    *Wladimir Pomar é analista político e escritor.

    Via http://www.correiocidadania.com.br
     
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