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Os restos mortais do presidente deposto João Goulart chegaram quinta-feira, 14, a Brasília, onde vão passar por uma perícia que é parte das investigações sobre a causa da morte dele, apontada pela ditadura como “ataque cardíaco”. A chegada mereceu uma recepção com honras dedicadas a chefes de Estado em visita ao país, por decisão de Dilma Rousseff. Antes do ato, a presidenta escrevera no Twitter, para seus dois milhões de seguidores, que se tratava de “um gesto do Estado brasileiro” e de “um dia de encontro do Brasil com a sua história”. A postura estadista de Dilma expressou-se também na organização da cerimônia, para a qual foram convidados todos os ex-presidentes vivos.
É curioso comparar a atitude conciliatória de Dilma com o ambiente político-econômico que se vê a poucos meses da sucessão presidencial. O sentimento que o governo despertou em certos setores e as realizações que Dilma tem a mostrar em busca de voto indicam que Jango estará atualíssimo na eleição. Prenuncia-se uma eleição polarizada, com cara de 1964.
Os estratos mais ricos do país, representados pelo mercado financeiro e por altos empresários, não querem a reeleição de Dilma, mesmo que não o digam abertamente. Eles perderam dinheiro no atual governo – ou deixaram de ganhar como nos tempos de Lula. Sob Dilma, a economia cresce pouco. As empresas vendem menos e lucram menos. Já a redução da taxa de juros do Banco Central e dos bancos estatais comeu ganhos do “mercado”. E prejudicou os empresários que recorriam a aplicações financeiras para compensar a pouca lucratividade na economia real.
Não é por acaso que o “mercado” tem sido fonte de pessimismo sobre o futuro do país. Em outubro, dois organismos internacionais - o FMI e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) - divulgaram relatórios sombrios. O país precisa, segundo estes documentos, de reformas que favoreçam os lucros privados. Ministros e conselheiros do governo temem uma ofensiva do pessimismo em plena campanha.
Também não é por acaso que o vice-presidente da República, Michel Temer, tenha participado em setembro em São Paulo de uma reunião com empresários e financistas e saído com a impressão de que eles não querem mais saber de diálogo com o governo. É uma hostilidade para a qual contribui o próprio estilo de Dilma, mais dura e menos afeita a discussões do que o antecessor.
O capital, decididamente, não tem motivos para querer a reeleição dela.
Por outro lado, o PIB fraco não afetou a vida dos estratos médios e pobres da população. Em alguns casos, ela até melhorou. O desemprego nos últimos três anos ronda os níveis mais baixos da história do país, entre 5% e 6%. O salário mínimo e a renda média dos trabalhadores continuaram a subir. Reforçado e ampliado, o programa Bolsa Família tirou mais 22 milhões de pessoas da miséria.
Se não resolve o problema de falta de dinheiro na saúde, o programa Mais Médicos ajudará a levar atendimento a alguns rincões. O aumento das verbas federais para investimento em transporte público, em decorrência das manifestações populares de junho, contribuirá de algum modo para facilitar o cotidiano dos usuários de ônibus e metrô.
Os mais pobres, aparentemente, não tem motivos para rejeitar a reeleição de Dilma.
O clima de 1964 tem tudo para se infiltrar na eleição inclusive por causa de uma efeméride. Em 2014, completam-se os cinquenta anos do golpe contra João Goulart. E mais: é quando vence o prazo dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade criada para investigar, entre outras coisas, torturas e mortes pela ditadura. Não seria difícil para a campanha governista apregoar que “querem dar um golpe contra o povo e a democracia do mesmo jeito que fizeram há cinquenta anos”.
Alimentar este tipo de associação seria até natural para Dilma. Mais até do que para Lula, cujo passado operário produz uma identidade maior dele com as classes populares. Forjada na luta armada contra a ditadura, Dilma ajudou a fundar o PDT de Leonel Brizola, cunhado de João Goulart. Brizola era um dos expoentes do PTB de Jango na época do golpe e só inventou o PDT porque a Justiça eleitoral, ainda na ditadura, proibiu-lhe de refundar a antiga sigla.
Dilma mergulhou no espírito de 1964 ao assistir, em outubro, ao documentário O dia que durou 21 anos, sobre o golpe contra Jango, durante uma sessão que promoveu para alguns amigos no Palácio da Alvorada. “Mesmo quem viveu os anos 60 fica surpreso com a extensão da interferência americana no Brasil naquele momento, revelada pelo documentário”, escreveu Dilma no Twitter.
Às vésperas do golpe, Jango fez um discurso histórico na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, com passagens que parecem capazes de ilustrar algumas das circunstâncias atuais de Dilma.
“Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância.” É um trecho ilustrativo da atual queda de braço do governo com o “mercado” em relação aos juros e com o empresariado sobre o lucro dos futuros pedágios das estradas federais em vias de serem repassadas ao setor privado.
“Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas 150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional para que venha ao encontro das reivindicações populares”. São palavras que bem poderiam ser ditas por Dilma a propósito da relação dela com um Legislativo de maioria conservadora e eleito à base de doações empresariais.
A tensão política daqueles dias foi resolvida na base na força, com um golpe militar. A que se vê agora tem tudo para desaguar nas urnas e nos financiamentos de campanha na eleição do ano que vem.