Por Wladimir Pomar*
Quando acontecem tragédias, como a de Santa Maria, na qual mais de duas centenas de jovens perderam suas vidas, o senso comum é o de buscar as responsabilidades individuais. Parece haver um sentimento arraigado de que, embora as vidas perdidas jamais sejam resgatadas, penalidades sobre os indivíduos diretamente responsáveis ao menos demonstrariam a existência de justiça e mitigariam parte da dor dos parentes, amigos e conhecidos. Esse sentimento é alimentado pelas reportagens e comentários de muitas personalidades e autoridades.
Poucos suscitam a discussão sobre o senso, também comum, propalado insistentemente pela publicidade, de que a propriedade privada é melhor, mais responsável e menos onerosa do que a propriedade pública. E de que governos e autoridades públicas não deveriam se imiscuir nas atividades empresariais. Parecem esquecer que empresários privados, pressionados pela competitividade, buscam sempre materiais e equipamentos menos custosos. Entre um forro de material bem mais barato, mesmo que contenha elementos tóxicos, e um forro mais caro, livre de tais elementos, ele comprará o primeiro, porque esse é um dos inúmeros fatores que contribuem para a sua rentabilidade. Portanto, para a sua continuidade como empresário privado.
Se examinarmos cada item que contribuiu para essa tragédia e para as inúmeras outras ocorridas em qualquer lugar do mundo, vamos encontrar diversos elos formando cadeias, relativamente longas. Elas incluem os empresários que montaram o negócio de alto risco, os empresários que venderam os materiais e equipamentos de segunda categoria para eles e os empresários que produziram tais materiais.
A cada uma dessas cadeias de responsabilidade privada podemos relacionar inúmeros elos e cadeias do poder público. Desde os que deveriam fiscalizar a aplicação das normas, os que fornecem os alvarás de funcionamento e os que permitem a produção e a venda de equipamentos e materiais de risco, até os que elaboram as normas, regulamentos e leis que deveriam prever os riscos e impor restrições e exigências à produção, venda e instalação de equipamentos e materiais pouco seguros.
É essa cadeia diluída de responsabilidades que pode criar, eventualmente, a absurda probabilidade legal de que os proprietários do salão de eventos e os músicos da banda pirotécnica não estivessem infringindo qualquer norma jurídica. Talvez o excesso de público seja o único crime passível de imputação. Do ponto de vista prático, é evidente que todos eles já vinham, há muito, praticando ações de alto risco, que ameaçavam a vida dos frequentadores de seus shows e baladas.
A tragédia estava, portanto, programada, porque todas as condições para sua materialização estavam dadas. Nesse sentido, nada muito diferente do que ocorreu com o desabamento de três prédios na cidade do Rio de Janeiro, com o deslizamento de encostas na região serrana de Teresópolis, e com outras tragédias que se repetem periodicamente.
Infelizmente, tudo indica que há uma série de outras tragédias programadas em nosso país. Não só em casas de show da maior parte do Brasil. Mas também relacionadas com as evidentes mudanças climáticas que vêm ocorrendo em todo o mundo. Os conjuntos habitacionais, precários e não-precários, construídos em encostas de morros e à beira de córregos e rios, tiveram enormemente aumentadas suas taxas de risco. Os sistemas de esgotamento pluvial das áreas urbanas tornaram-se ineficientes, especialmente naquelas cidades sem muitos espaços públicos arborizados.
Seria possível listar uma série de outras situações potencialmente trágicas. Apesar disso, essas questões não parecem merecer a atenção devida. A legislação continua incompleta e atrasada, não municiando nem modernizando o poder público para enfrentar nem mesmo os velhos riscos, quanto mais os novos. Assim, em homenagem aos jovens engolfados pela tragédia gaúcha, talvez o povo brasileiro não devesse se contentar apenas com a punição dos indivíduos diretamente responsáveis, ou com a elaboração de normas mais duras para o funcionamento de casas noturnas.
Talvez seja o momento de exigir, além da reforma política que extinga o financiamento privado de campanhas eleitorais, uma das raízes das lacunas no controle dos riscos de funcionamento das empresas privadas, uma reforma mais séria da legislação brasileira sobre o uso do solo agrícola e urbano, e sobre todos os pontos que apresentam riscos evidentes para a população.
*Wladimir Pomar é escritor e analista político. -Via sítio Correio da Cidadania