Já faz uns anos, escrevi um artigo, "Os direitos humanos ameaçam a democracia?", indagando se o inegável avanço dos direitos do homem em nosso tempo não poria em risco o regime democrático. Criticava o senso comum atual, que reza que só há democracia com pleno respeito aos direitos humanos. Mas a questão continua sendo pertinente. Isso porque os direitos humanos são em boa medida proteções do indivíduo, ou de grupos, diante do Estado ou mesmo contra ele - ao passo que a democracia, em seu cerne, é a atribuição do poder, no Estado, pela decisão majoritária do povo. Assim, governos eleitos pelo povo, hoje, acabam sendo mais limitados, em nome dos direitos humanos, do que governos autoritários. Direitos particulares podem refrear a vontade da maioria. Idealmente falando, a voz do povo e os direitos do homem deveriam convergir. Mas isso nem sempre sucede. E então?
Comecemos pelo conceito. A democracia nos vem dos gregos. Democracia não é só a eleição do governo pelo povo, e sim a atribuição, pelo povo, do poder - que inclui mais que o mero governo. Inclui o direito de fazer leis. Na democracia antiga, direta, isso cabia ao povo reunido na praça pública. Um grande êxito dos atenienses, se comparados com os modernos, era o amor à política. Moses Finley, um dos maiores conhecedores do tema, conta que em Atenas a assembleia popular se reunia umas quarenta vezes ao ano. Pelo menos mil pessoas costumavam comparecer, às vezes dez mil, de um total de quarenta mil possíveis (a presença não era obrigatória). Comparo esse empenho ao nosso. Quantos não resmungam, para votar uma só vez cada dois anos? Nesse período, o ateniense teria passado oitenta tardes na praça, ouvindo, votando.
Mas a "falha" dos atenienses era a inexistência de direitos humanos. Não havia proteção contra as decisões da assembleia soberana. Ela podia decretar o banimento de quem quisesse, sem se justificar: assim Temístocles foi sentenciado, pelo mesmo povo que ele salvara dos persas, ao ostracismo. Ora, desde a era moderna os direitos do homem, protegendo-o do Estado, se tornam cruciais. Estes são os grandes legados das três revoluções modernas, a inglesa, a americana e a francesa. Somos protegidos não só dos desmandos do monarca absoluto, contra os quais o melhor antídoto seria a soberania popular, mas também da tirania do próprio povo e de seus eleitos.
A tensão entre voto popular e decisão judicial
Desde os gregos, se alerta que o povo pode ser tirânico, tal um mau rei. Na Revolução Francesa, os jacobinos abusam do poder extraordinário. Mesmo nos Estados Unidos, mais moderados em política, isso sucede. No "Vermelho e o Negro" (1830), Stendhal já critica o controle exercido pela opinião: "Devido a essa feia palavra [despotismo], morar nas cidades pequenas é insuportável para quem viveu nessa grande república que se chama Paris. A tirania da opinião, e de que opinião! é tão idiota nas cidadezinhas francesas quanto nos Estados Unidos da América".
Ainda pior que o despotismo da opinião popular, é a tirania expressa no voto. Daí que, quando surgem Estados democráticos, se pense em proteger o indivíduo dos excessos do povo. Mas aqui há um problema adicional, porque para aplicar os direitos humanos são necessários juízes e tribunais. Estes têm poder. Mas por que um poder não eleito terá maior poder que os eleitos pelo povo? Um problema dos franceses e ingleses com a União Europeia é que esta subordina seus poderes eleitos a cortes constitucionais, inclusive supranacionais. Resumindo esse ponto, os direitos humanos são aplicados por tribunais que, ou são eleitos pelo povo e se partidarizam, ou não o são e então constituem o elemento aristocrático, não-democrático, na Constituição.
Espanta vivermos hoje uma situação desse tipo no Brasil? Desde a Ficha Limpa à cassação dos mandatos no mensalão, há uma tensão entre um braço democrático de nosso regime, a Câmara, e o mais aristocrático, o STF. O Supremo tem sido feliz, a meu ver, na questão dos direitos humanos. Foram ampliados para além da letra da lei. Se dependesse dos poderes eleitos, dificilmente os homossexuais teriam conseguido o que obtiveram. Esse é o maior mérito de nosso Supremo. Mas com a democracia ele tem certas dificuldades. Deve tutelar o eleitor, barrando a candidatura de pessoas com o nome sujo? Devem algumas sentenças condenatórias ter efeito eterno, tornando inelegíveis para sempre quem cometeu certos crimes, como o de corrupção? Devem pessoas que ninguém elegeu decidir em última instância sobre assuntos que cabem ao povo e seus representantes? Quando o presidente do STF diz que a pior tirania é a do grande número, quem distinguirá a expressão legítima e a "tirânica" da vontade popular?
Faz parte da cultura aristocrática, que é a do nosso Judiciário, a aposta no certo, na verdade, no melhor. Um tribunal tem o dever de condenar o culpado e de absolver o inocente. Já o povo pode e deve, votando, fazer escolhas na área do que não é certo nem errado. Queremos boa educação, boa saúde, mas são tantos os meios de chegar a elas; e mesmo o que entendemos por elas. Pois, afinal, na democracia o importante é acertar ou é decidir? Há questões, como o confronto liberalismo-socialismo, que não são assunto de certo ou errado, mas de preferência. Podemos substituir o direito do povo a decidir, pela missão do tribunal de acertar? Penso que não, mas não devemos esquecer que a discussão atual em nosso país não é nova nem só nossa, é um debate que constitui a democracia moderna e constitui sua contradição fundamental, talvez insuperável.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico