Por Flavio Aguiar, na Rede Brasil Atual:
O neoliberalismo e suas doutrinas ortodoxas vivem renascendo das cinzas: das próprias e das que semeia ao redor, incinerando sonhos, direitos, expectativas no Moloch do Mercado. Como isso é possível? É claro que isso se deve, em grande parte, a renitência de seus arautos – como se vê no Brasil agora que se tenta incinerar o governo Dilma tendo em vista 2014 – em reconhecer alternativas ou os próprios erros, em termos de avaliação e previsão do que vai acontecendo pelo mundo.
Mas essa renitência precisa de algum suporte, nem que seja de fantasia. Assim se deu com o Brasil do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Ou o Chile. Ou a Islândia. Ou a Irlanda. Ou o México. A própria Rússia. Mais recentemente, a Europa inteira. O rastro de destruição é longo e devastador.
Mas sempre resta uma esperança. Aqui na Europa a esperança agora chama-se Letônia.
A Letônia é um pequeno país de pouco mais de dois milhões de habitantes, à beira do Mar Báltico, entre a Estônia, a Lituânia, a Bielorrússia e a própria Rússia. A capital, Riga, tem pouco mais de 700 mil habitantes. Pertencia ao bloco de influência soviética. Depois da desagregação da União Soviética e do comunismo, a economia letã entrou em colapso. Encolheu em 50% e o sistema financeiro do país quebrou. Reergueu-se, “milagrosamente”, como sempre, graças a empréstimos estrangeiros (em particular de bancos suecos), que criaram uma “bolha de prosperidade”. A crise de crédito de 2007/2008 voltou a devastar o país, que recorreu a um empréstimo de 7,5 bilhões de euros do Fundo Monetário Internacional (FMI), mais o amargo purgante que vem junto nessas ocasiões.
E o purgante veio. A crise fizera a economia se retrair novamente em 20%. Abriu um verdadeiro buraco nas contas públicas, além de trazer à tona uma dívida internacional gigantesca – privada, ao contrário da grega, que era pública. O sistema bancário voltou a naufragar. Em cima deste quadro, a “austeridade” dançou e rolou.
O governo dispensou um terço do funcionalismo e esmagou salários. O setor privado também – em nome de restaurar a “competitividade” do país, de olho nas exportações. O setor da saúde foi literalmente deserdado. Tudo isso reativou “a confiança” financeira, no entanto. Os empréstimos voltaram. As exportações cresceram.
Surpreendentemente, não houve protestos. Por isso a Letônia vem sendo apresentada como “a prova” de que o purgante e a cólica podem compensar, desde que haja suficiente dose de conformismo nas veias do país. É a nova menina dos olhos do neoliberalismo, o bom exemplo em meio aos carentes de disciplina: Grécia, Espanha, Portugal, Itália, até a vizinha Lituânia, onde os protestos não param de ocorrer, sem falar no Reino Unido, na Bélgica, na Irlanda. Ao contrário da Islândia (confira aqui no blog as nossas reportagens a respeito), o governo “austero” do primeiro-ministro Valdis Dombrivskis não caiu. Ao contrário, foi reeleito. Líderes sindicais dão entrevistas afirmando a inutilidade de fazer greves. Graças às exportações, cujo aumento foi motivado pelo arrocho salarial, o PIB em 2011 cresceu 5%, um número recorde para uma Europa em naufrágio constante em dilúvios econômicos e doses de adrenalina devastando as economias, as bolsas e os nervos dos cidadãos. Em suma, um Paraíso.
Bom, mas nem tudo é perfeito no Paraíso. A Letônia continua sendo um dos países mais pobres da Europa, com um índice de pobreza de 30,9% da sua população, segundo estatísticas da União Européia. O desemprego diminuiu, mas ao final de 2012 estava em 14,2%. Deste percentual, 17% dos desempregados sequer procura emprego. 5% da população emigrou, e as pesquisas indicam que a possibilidade de volta é pequena.
Tudo isso me lembra de um diálogo que tive, décadas atrás, quando presidia um cineclube em Porto Alegre. Na saída do cinema, comentávamos – alguns cinéfilos – o filme, um faroeste. Ao final, quando os índios iam tomar o forte, em vez da prometida cavalaria chegou apenas uma carroça coberta por uma lona. A indiada se assanhou, atacando em massa, com aquela gritaria e rifles brandidos para o ar. O pessoal da carroça desarmou a lona, e apareceu uma metralhadora de tripé, que devastou os atacantes.
Um dos cinéfilos comentava, entusiasmado, aspectos “progressistas” do filme, revelados nos conflitos entre os defensores do forte. “Peraí”, eu retruquei, “e os índios”? “Ora”, me disse o cinéfilo, “em faroeste índio é cenário”. Pobre John Ford!
Mas a verdade é que no neoliberalismo a metáfora se aplica. Povo é cenário. Não importa a magreza – ou esqualidez – do ator. O que conta é o figurino.
O neoliberalismo e suas doutrinas ortodoxas vivem renascendo das cinzas: das próprias e das que semeia ao redor, incinerando sonhos, direitos, expectativas no Moloch do Mercado. Como isso é possível? É claro que isso se deve, em grande parte, a renitência de seus arautos – como se vê no Brasil agora que se tenta incinerar o governo Dilma tendo em vista 2014 – em reconhecer alternativas ou os próprios erros, em termos de avaliação e previsão do que vai acontecendo pelo mundo.
Mas essa renitência precisa de algum suporte, nem que seja de fantasia. Assim se deu com o Brasil do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Ou o Chile. Ou a Islândia. Ou a Irlanda. Ou o México. A própria Rússia. Mais recentemente, a Europa inteira. O rastro de destruição é longo e devastador.
Mas sempre resta uma esperança. Aqui na Europa a esperança agora chama-se Letônia.
A Letônia é um pequeno país de pouco mais de dois milhões de habitantes, à beira do Mar Báltico, entre a Estônia, a Lituânia, a Bielorrússia e a própria Rússia. A capital, Riga, tem pouco mais de 700 mil habitantes. Pertencia ao bloco de influência soviética. Depois da desagregação da União Soviética e do comunismo, a economia letã entrou em colapso. Encolheu em 50% e o sistema financeiro do país quebrou. Reergueu-se, “milagrosamente”, como sempre, graças a empréstimos estrangeiros (em particular de bancos suecos), que criaram uma “bolha de prosperidade”. A crise de crédito de 2007/2008 voltou a devastar o país, que recorreu a um empréstimo de 7,5 bilhões de euros do Fundo Monetário Internacional (FMI), mais o amargo purgante que vem junto nessas ocasiões.
E o purgante veio. A crise fizera a economia se retrair novamente em 20%. Abriu um verdadeiro buraco nas contas públicas, além de trazer à tona uma dívida internacional gigantesca – privada, ao contrário da grega, que era pública. O sistema bancário voltou a naufragar. Em cima deste quadro, a “austeridade” dançou e rolou.
O governo dispensou um terço do funcionalismo e esmagou salários. O setor privado também – em nome de restaurar a “competitividade” do país, de olho nas exportações. O setor da saúde foi literalmente deserdado. Tudo isso reativou “a confiança” financeira, no entanto. Os empréstimos voltaram. As exportações cresceram.
Surpreendentemente, não houve protestos. Por isso a Letônia vem sendo apresentada como “a prova” de que o purgante e a cólica podem compensar, desde que haja suficiente dose de conformismo nas veias do país. É a nova menina dos olhos do neoliberalismo, o bom exemplo em meio aos carentes de disciplina: Grécia, Espanha, Portugal, Itália, até a vizinha Lituânia, onde os protestos não param de ocorrer, sem falar no Reino Unido, na Bélgica, na Irlanda. Ao contrário da Islândia (confira aqui no blog as nossas reportagens a respeito), o governo “austero” do primeiro-ministro Valdis Dombrivskis não caiu. Ao contrário, foi reeleito. Líderes sindicais dão entrevistas afirmando a inutilidade de fazer greves. Graças às exportações, cujo aumento foi motivado pelo arrocho salarial, o PIB em 2011 cresceu 5%, um número recorde para uma Europa em naufrágio constante em dilúvios econômicos e doses de adrenalina devastando as economias, as bolsas e os nervos dos cidadãos. Em suma, um Paraíso.
Bom, mas nem tudo é perfeito no Paraíso. A Letônia continua sendo um dos países mais pobres da Europa, com um índice de pobreza de 30,9% da sua população, segundo estatísticas da União Européia. O desemprego diminuiu, mas ao final de 2012 estava em 14,2%. Deste percentual, 17% dos desempregados sequer procura emprego. 5% da população emigrou, e as pesquisas indicam que a possibilidade de volta é pequena.
Tudo isso me lembra de um diálogo que tive, décadas atrás, quando presidia um cineclube em Porto Alegre. Na saída do cinema, comentávamos – alguns cinéfilos – o filme, um faroeste. Ao final, quando os índios iam tomar o forte, em vez da prometida cavalaria chegou apenas uma carroça coberta por uma lona. A indiada se assanhou, atacando em massa, com aquela gritaria e rifles brandidos para o ar. O pessoal da carroça desarmou a lona, e apareceu uma metralhadora de tripé, que devastou os atacantes.
Um dos cinéfilos comentava, entusiasmado, aspectos “progressistas” do filme, revelados nos conflitos entre os defensores do forte. “Peraí”, eu retruquei, “e os índios”? “Ora”, me disse o cinéfilo, “em faroeste índio é cenário”. Pobre John Ford!
Mas a verdade é que no neoliberalismo a metáfora se aplica. Povo é cenário. Não importa a magreza – ou esqualidez – do ator. O que conta é o figurino.