Não-coisa - Ferreira Gullar

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  • sábado, 5 de janeiro de 2013
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  • O que o poeta quer dizer
    no discurso não cabe
    e se o diz é pra saber
    o que ainda não sabe.

    Uma fruta uma flor
    um odor que relume...
    Como dizer o sabor,
    seu clarão seu perfume?

    Como enfim traduzir
    na lógica do ouvido
    o que na coisa é coisa
    e que não tem sentido?

    A linguagem dispõe
    de conceitos, de nomes
    mas o gosto da fruta
    só o sabes se a comes

    só o sabes no corpo
    o sabor que assimilas
    e que na boca é festa

    de saliva e papilas
    invadindo-te inteiro
    tal do mar o marulho
    e que a fala submerge
    e reduz a um barulho,

    um tumulto de vozes
    de gozos, de espasmos,
    vertiginoso e pleno
    como são os orgasmos

    No entanto, o poeta
    desafia o impossível
    e tenta no poema
    dizer o indizível:

    subverte a sintaxe
    implode a fala, ousa
    incutir na linguagem
    densidade de coisa
    sem permitir, porém,
    que perca a transparência
    já que a coisa ë fechada
    à humana consciência.

    O que o poeta faz
    mais do que mencioná-la
    é torná-la aparência
    pura — e iluminá-la.

    Toda coisa tem peso:
    uma noite em seu centro.
    O poema é uma coisa
    que não tem nada dentro,

    a não ser o ressoar
    de uma imprecisa voz
    que não quer se apagar
    — essa voz somos nós.

    Poema extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, editados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, pág. 77.
     
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