Antes do fim do ano fiz uma palestra para alunos de jornalismo. Falei-lhes deste "quarto poder" tão importante em um país onde a crise paira como uma espada sobre nossas cabeças, onde não se consegue aprofundar reformas contra a muralha de interesses fisiologistas que nos dominam.
Temos uma presidente com claros desejos de modernização, mas impedida pelo Legislativo com mais de 300 picaretas de plantão como denunciou uma vez o ex-Lula, que também impede que ela saia dos "porões da ineficácia", induzindo-a a manter a linha de intervenção estatal em tudo, a bater cabeça para os medíocres "peronistas de direita" que infestam o governo. Agora, a barra vai pesar mais ainda com a subida do lado podre do PMDB à presidência das casas do Congresso, e 2013 será um ano de lutas entre atraso e modernização, com a nação impedida de adotar as óbvias medidas de progresso que todos os grandes economistas do mundo recomendam. Com uma oposição desagregada e covarde que traiu até suas próprias vitórias, nossa Imprensa ainda livre (apesar dos bolchevistas que tramam nossa "argentinização") é a única voz para defender a sociedade.
Perguntei aos estudantes: o que nos move? Claro que as empresas querem lucro, profissionais querem viver, comer, aparecer, sim, mas afinal que grão de esperança ou romantismo treme em nossos textos? Amor à pátria, busca de harmonia, combate ao crime e à mentira? O quê?
A imprensa democrática cumpre um papel imenso nesse vazio reflexivo em que nos meteram há quatro séculos. Temos uma população mergulhada na ignorância, fácil de enganar; vejam as multidões de vítimas de evangélicos corruptos e os milhões de votos do neocabresto moderno: os "bolsistas da família".
Nunca me esqueci da formulação de Brecht, o "efeito de estranhamento", ou seja, "ver por trás do familiar o que existe de estranho, desumano". Que fatos sinistros há embaixo dos fatos que nos parecem normais? Que doença se disfarça de saúde? Disse a eles, portanto, que a imprensa deve ser "crítica" em primeiro lugar. E "crítica" não quer dizer "ataque" ou "denúncia" apenas, mas avaliação, busca de entendimento, que pode ir da mais amarela bile de ódio até propostas de positividade. Disse também a eles: tentemos a difícil tarefa de pensar sem ideologia. Isso. Entender os fatos sem um preconceito. O pensamento ideológico distorce a realidade para fazê-la caber numa certeza anterior ao fato. Dificílimo isso, pois somos todos seres "ideológicos". Acho que a única ideologia de hoje (para além de esquerda ou direita, essa velha dualidade) é defender o que seja civilizatório, o que possa aumentar a qualidade da vida pessoal e do interesse público. Como dizia Marco Aurélio (não o Garcia nem o de Mello, claro, mas o imperador): "O que é bom para a abelha tem de ser bom para a colmeia". Disse a eles que a denúncia pura no Brasil é muito fácil, porque há um excesso de absurdos no dia a dia. Vivemos em um momento em que tudo parece desabar, o que pode nos levar a um "delírio de ruína".
Disse-lhes do meu medo de que a denúncia mecânica, o trágico espetacular, possam ser até mais lucrativos para quem denuncia do que para quem sofre. Acho que o catastrofismo beneficia o atraso e aqueles que vivem do erro nacional, dos buracos das instituições, da fraqueza de nossa formação. Falei que somos todos parte do "grande erro" e que devemos nos incluir no que criticamos. Não concordo com articulistas que se salvam do abismo, que falam como se não fizessem parte do país. Os fatos estão cada vez mais além das interpretações, os crimes ocorrem numa velocidade de jatos e as formas de combatê-los se arrastam. Pode ser que agora, com o exemplo de grandeza dado pelo STF, diminua o descaro com que os criminosos agem, sabendo-se impunes. Mas a resistência do atraso é imensa, comandada pelo nefasto Sarney, o "aliado" que vai estimular a guerra entre Legislativo e Judiciário, como já anunciam oportunistas e ladrões.
Falei que ficar na dualidade antiga de esquerda x direita não esgota a análise dos fatos. A agenda progressista do Brasil é outra - o que nos paralisa não é a malignidade de grupos ou "imperialismos", mas velhos vícios ibéricos que nos impedem de progredir.
Lembrei-lhes que nossas doenças são a corrupção endêmica, o burocratismo paralisante, o clientelismo cordial, o personalismo ridículo, o arcaísmo das leis, a ausência de noção de "república". O jornalismo tem de ser uma "psicanálise" de nossos vícios e não a mera procura de culpados.
Disse-lhes que no seio do romantismo revolucionário dos anos 1960 havia uma "finalidade" a se atingir, uma utopia que substituía o presente e o "possível" pelo imaginário. Esse pensamento mágico destrói a administração da vida real em nome de um futuro que não chega nunca. Hoje, temos de aceitar que nunca teremos um país perfeito, resolvido; nunca chegaremos "lá". E isso é bom.
O fracasso da esquerda em 1964 e depois o suicídio da guerra urbana mostraram o absurdo heroico e frágil do voluntarismo. Houve um real espasmo de democracia nos anos seguintes a 1985, mesmo com as tragédias que começaram com a morte de Tancredo até a hiperinflação dos anos 1980 até 94.
Agora, estamos em uma fase em que o perigo é o eterno pêndulo entre liberalismo e Estado centralizador. Temos uma atávica fixação no "Estado salvador". A complexidade lenta da democracia traz saudades do simplismo velho de guerra.
Na primeira fase da era Lula, o petismo "corrupto-bolchevista" tentou tomar o Estado mas, espantosamente, fomos salvos pelo Jefferson, com sua legitimidade de mensaleiro confesso.
O perigo atual é o regresso à burrice.
Aos poucos, o rabo do lagarto do atraso pode se recompor. Com um leve sabor de sacrilégio, disse-lhes que no Brasil só um choque de empreendedorismo privado poderá destruir o bunker de aço do estamento patrimonialista que nos anestesia. Não adianta anunciar catástrofes; é preciso ensinar a população a se defender do Estado vampírico. O resto - disse-lhes - é papo morto.
Fonte: O Globo