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O julgamento da Ação Penal 470 – o chamado mensalão – e os papéis da mídia, do Judiciário e do Estado Democrático de Direito foram tema de debate na noite desta segunda-feira (17), em São Paulo. Com o auditório do Sindicato dos Engenheiros repleto de lideranças políticas e de movimentos sociais, além das presenças de José Dirceu e José Genoíno, os debatedores criticaram o desfecho do caso e apontaram, inclusive, graves falhas jurídicas do ponto de vista técnico.
A mesa foi composta pelo jornalista Paulo Moreira Leite, da revista Época; pelos juristas Pedro Serrano e Carlos Langroiva, doutor em Direito Constitucional e doutor em Direito Penal, respectivamente; pelo ator José de Abreu, além do jornalista Raimundo Pereira, da revista Retrato do Brasil. A mediação foi feita por Renata Mielli, secretária-geral do Barão de Itararé, acompanhada do jornalista e escritor Fernando Morais. O evento teve transmissão ao vivo pela TVT.
Langroiva iniciou a discussão apontando diversos erros técnicos cometidos ao longo do julgamento. “Pela TV, enfrentamos uma triste realidade. Quando o relator começou a se manifestar, todos tiveram certeza de que alguma coisa havia de errado na Casa da Justiça. Encontramos na mídia cópias da peça da acusação, coisa que não pode acontecer Os indivíduos são sempre inocentes até a sentença final e não podem ser expostos publicamente dessa forma”, comenta.
O professor de Direito da PUC-SP também afirma que os julgadores precisavam ser imparciais, mas o próprio caso foi apresentado em cima da peça da acusação. “O julgador não pode se apegar nem à acusação, nem à defesa, apenas à análise e descrição dos fatos. Foi um julgamento tendencioso”, dispara. Ele também acrescenta que os ministros passaram a trabalhar com elementos externos à área penal e comuns à área civil, como indenizações.
“A Constituição de 1988, conquistada com sangue e suor de muitos aqui presentes, garante a presunção da inocência. Diferente de como é no civil, no criminal quem acusa tem de provar suas acusações e não a defesa provar o contrário”, diz. Em sua avaliação, a fala da acusação já embutia suas provas, no entendimento dos ministros. “Se eram suficientes ou não, tanto faz. Isso é presunção de culpa. Uma inversão da Justiça”.
Pedro Serrano, por sua vez, se apresentou como professor de Direito Constitucional na PUC-SP de forma irônica: “o tema parece pouco importante no país hoje em dia”. Em sua visão, o julgamento da ação penal 470, em termos constitucionais, foi uma “catástrofe”. “A forma como a mídia tratou o tema já mostrava que não seria imparcial. Alguns juízes pareciam ameaçar de linchamento quem votasse pelos réus. Não houve o valor do juízo imparcial, para começar”, afirma.
Serrano também lembrou a questão da presunção da inocência. “Teve ministro que alegou que ‘o ordinário se presume e o extraordinário há que se provar’. Mas o ordinário é a presunção de inocência. A culpa, sim, precisa ser provada”, diz. “A doutrina do Domínio do Fato foi usada de forma equivocada em vários momentos, o que foi apontado pelo próprio teórico alemão que a criou. Foi uma ‘festa da cocada’: um ano atrás, foi decidido que o Judiciário não poderia cassar mandatos, que isso caberia ao Legislativo. Agora, mudou de opinião, somente neste caso”.
O acadêmico ainda criticou a falta de coerência do Judiciário no caso. “Uma decisão dada para o caso do mensalão tucano foi negada para a ação penal 470. O cidadão tem direito a um Judiciário coerente. Em três semanas, não se pode dar decisões contraditórias para dois casos”, diz.
Os rumos da democracia no país
Na avaliação de Serrano, a decisão tomada nesta segunda-feira pelo Supremo Tribunal Federal (de cassar mandatos políticos, papel atribuído ao Poder Legislativo) é “de rasgar o texto constitucional”. “A ginástica feita pelo STF para distorcer a Constituição é um desrespeito à cidadania”, opina.
Paulo Moreira Leite, jornalista da revista Época, concorda. Ele afirma que “seria uma comédia se as consequências não fossem trágicas”. “Este episódio que se consolida hoje é um acontecimento grave e que precisa ser refletido. O ‘mensalão’ não acaba por aqui, pois os setores responsáveis por esse julgamento não suportam apenas o José Dirceu, mas qualquer conquista do povo”, afirma.
Em sua opinião, o ato, além de ser violento, é uma monstruosidade política. Condenar pessoas sem provas, por suposições, não é aceitável, segundo ele. “Não foi um julgamento comum, não foi um caso apenas jurídico. É um caso político. Estamos vivendo um processo de mudanças: a população teve conquistas, como a melhoria da distribuição de renda, sendo que o Brasil poderia ‘ter virado uma Grécia’ durante a crise econômica”, diz. “Somos um país com história colonial e colonizada. Para algumas pessoas, este novo quadro é insuportável”.
Leite mostrou-se preocupado com os rumos da democracia no país. A mensagem do debate, segundo ele, foi a de que temos que esclarecer o caso como jornalistas e como cidadãos, pois o processo deve continuar. “Cheguei aqui, vi todos vocês e vi alguns mais velhos, mais gordos. Mas o movimento que sempre se reagrupa quando a democracia está em risco está presente mais uma vez”, sentenciou, recebendo uma prolongada salva de palmas do público.
Raimundo Pereira fez uma breve releitura do caso, desde a acusação inicial, demonstrando todas as contradições e a falta de consistência das acusações ao longo do julgamento. “Nós da revista Retrato do Brasil temos pesquisado intensamente o tema e estamos na quinta matéria, intitulada ‘A prova do erro’ (do STF). Concluímos e demonstramos, por meio de documentos, que o desvio de dinheiro público não existiu”, diz.
Ele compara o obscurantismo do julgamento à caça às bruxas na Idade Média: “O julgamento medieval era assim: você pegava a bruxa, dava um ‘trato’ nela e ela confessava até que havia matado o Papa, mesmo com o Papa vivo. Não necessitava materialidade. Na Idade Moderna, precisa-se provar a materialidade do crime. O mensalão é uma invenção cuja tese central é um desvio do Banco do Brasil, logo, a primeira necessidade é se provar o desvio”.
Com base no julgamento, afirma Pereira, abre-se precedentes para condenar inocentes. “Não podemos tolerar uma coisa dessas. Gostaria muito da presença do Merval Pereira e outros colunistas para debater o assunto. Como se pode condenar uma pessoa quando não existe e não é provado o crime?”, completa.
Com irreverência, José de Abreu destilou críticas ao julgamento e, em especial, ao ministro Gilmar Mendes. “O nome mensalão é tão ridículo como ter sabatina no domingo. Ver José Genoino condenado corruptor numa terra de empreiteiros é um absurdo”, diz. Ele também revelou estar sendo seguidamente processado por Mendes. “Sou perseguido por ter falado coisas na Internet ao ter ficado em casa, vendo o espetáculo do mensalão e me expressando. Ora, eu tenho o direito de expressar minha indignação de cidadão”, bradou.
Democratizar a mídia: uma tarefa urgente
A necessidade de ampliação das vozes e da liberdade de expressão no país foi praticamente consenso no debate. Os debatedores se mostraram preocupados com o papel partidarizado da grande mídia e chamaram a atenção para a necessidade de um novo marco regulatório da comunicação.
“A Argentina tem nos dado lições, desde à punição aos torturadores do regime militar até a Lei de Meios”, opinou Fernando Morais. Ele ainda disse que “o caso da ação penal 470 nos mostra a urgência em termos o marco regulatório para democratizar o setor, já que o papel da mídia foi preponderante ao longo do julgamento”.
O jurista Cláudio Langroiva também criticou a cobertura. “Dia a dia, vimos a mídia insuflada e levando um debate judicial não sob a ótica do julgamento penal, mas de um julgamento público, de um palanque televisionado diariamente. Até o termo ‘mensalão’ não faz parte de nenhum lastro jurídico formal no país. Trago meu inconformismo técnico, jurídico e pessoal, como cidadão de direitos.
Serrano, também especialista em Direito, mencionou que um repórter do Estadão entrou em contato com ele: “não arrumamos ninguém de Direito Constitucional pra defender a decisão do STF, você pode me ajudar?”. Segundo o jurista, nenhum livro, nenhum manual de Direito Constitucional diz que cabe ao Judiciário o papel do Legislativo, o que impossibilita sustentar a tese que o veículo quer defender.
“A despeito da fragilidade dos meios da imprensa popular, ela precisa crescer neste momento, para mobilizar o povo, conquistar a regulação, para que mais vozes sejam escutadas no país”, opinou o jornalista Raimundo Pereira.
Renata Mielli, que integra a comissão executiva do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), também falou sobre o tema. “O papel cumprido pelo Supremo mostra que nosso país precisa urgentemente passar por duas reformas: a do Judiciário e a da mídia, que ameaçam o Estado Democrático de Direito”.
De acordo com ela, a importância dos meios alternativos (sites, revistas, blogs) que têm pouco recurso, mas muita vontade, tem crescido intensamente. “Nós, do FNDC, lançamos no dia 27 de agosto a campanha Para Expressar a Liberdade, por um novo marco regulatório das comunicações. A sociedade brasileira precisa lutar por essa lei e o governo brasileiro, eleito democraticamente e de esquerda, não pode se furtar da responsabilidade de enfrentar o monopólio midiático do país”, afirma.