O descolamento de Danuza e a exclusão da PM
Violência e preconceito
por Pedro Estevam Serrano
O conceito é antigo. Não sou historiador mas, certamente, a ideia tem ao menos alguns de seus elementos constituídos na antiguidade greco-romana. Com a cristandade, ganhou consistência e sentido maior. O conceito de “pessoa”. Integrante da espécie humana. Filhos todos do mesmo Pai. Irmãos, portanto. Por mais diferenças que possamos ter como indivíduos, somos dotados de uma igualdade essencial e inalienável que nos é dada pela comunhão da mesma espécie, pertinência à mesma comunidade global e à humanidade.
Com a modernidade o conceito de “pessoa” ganha foro laico, no âmbito político e jurídico. A “pessoa” vira “cidadão”. A pertinência e a comunhão da mesma espécie biológica passam, então, a serem reconhecidas como fato constitutivo da proteção política. Basta ser uma pessoa, basta ser um integrante da humanidade para ser reconhecido como titular de direitos mínimos perante uma ordem jurídico-estatal, inicialmente liberdades públicas oponíveis à própria autoridade estatal – que, no correr do século XX, são complementadas com direitos a um mínimo de existência material digna, ou seja, no conjunto os chamados direitos humanos ou direitos fundamentais.
Na contemporaneidade, o conceito de pessoa, em sua dimensão jurídica – sem perder sua dimensão política nem sua dimensão histórica-cristã – é mais que um mero ente exercente de direitos e obrigações. É o sopesamento perfeito entre os princípios ou valores de igualdade e liberdade.
Só há noção de pessoa a par da noção de igualdade, pois só a partir dela é que se entende o humano como igual ao outro humano, filhos que são do mesmo Pai, integrantes da mesma espécie, iguais em essência, portanto.
Ao mesmo tempo, só a partir desta noção igualitária de pessoa, como a do ser pertencente à espécie, pertencente à grande família humana, é que se tem o conceito da mais relevante entre as várias formas de liberdades humanas, qual seja não a de liberdade individual que se opõe à maioria, mas a liberdade de pertencer à maioria como comunidade, como família.
Não à toa a maior punição a que ordem jurídica opõe ao individuo é aparta-lo da convivência com sua comunidade. Não se trata de restringir seu direito de ir e vir genericamente considerado, pois este pode ser restringido de forma genérica em várias situações sem graves ofensas a vida individual, mas sim de restringir o direito de ir e vir de forma a subtrair o indivíduo da vida em comunidade E todos sabemos como isso fere! Fora a subtração da vida não há pena maior que nos separar dos entes queridos e da vida em comunhão com nossa espécie.
Por mais que a ideologia liberal queira nos fazer esquecer, a mais relevante liberdade é a de viver em comunidade, na maioria e não contra ela. É com a sua subtração que a própria sociedade liberal pune o indivíduo que realiza o crime, para proteger a sociedade mas também para evitar o cometimento de crimes pela dissuasão, pois é sabido o temor humano da perda da alteridade em sua existência.
Se de um lado a historia humana registra desde a modernidade estas tentativas laicas de conformação jurídica e politica deste conceito inclusivo de “pessoa” criado pela cristandade
Mas, de outro, desde priscas eras se registram de forma contínua nesta mesma história humana formas mais ou menos mascaradas de exclusão deste conceito comum e inclusivo, ou no sentido de excluir pelo privilégio que diversas formas de elite procuraram se destacar do restante da espécie por se considerarem superiores ou por formas de exclusão de parcela dos integrantes por serem considerados hostis, inimigos, estranhos, perigosos ou daninhos à sociedade ou mesmo não dotados de condições sociais, físicas, estéticas ou intelectuais mínimas para se integrarem de forma saudável à convivência com os demais em condições de igualdade. Obviamente as forma de descolamento por superioridade tiveram sempre íntima relação com as de exclusão por inferioridade.
Sem querer tratar de tema tão vasto em tão poucas linhas, mas apenas para lembrar brevemente, assim foi com senhores feudais de um lado e servos de outro, aristocratas e plebeus, elite rural e escravos. Uns dotados de privilégios e outros não providos da condição de “humanos”. Na antiguidade Zaffaroni se refere à exclusão dos hostis no direito romano, Agambem a dos “Homo Sacer”.
Mas mesmo depois do surgimento da figura jurídica do cidadão tivemos a constituição do “inimigo” sob vários nomes e formas – mas sempre de modo a excluir certos grupos “a priori” da condição de pessoa sem lhes conferir a proteção política e jurídica comuns aos demais cidadãos. Assim aconteceu e acontece com os supostos “terroristas” (Patriotic Act), os “drogados” (internação compulsória), os “mendigos” (expulsão dos locais de convivência, violência etc), os “traficantes” e os “fichados” pela polícia (execução sumária) e assim por diante.
Por outro lado os grandes contribuintes das campanhas políticas, os muito ricos, as figuras públicas de grande influência no publico, os donos dos meios comerciais de comunicação continuam sendo uma cidadania especial, privilegiada, que é ouvida pelos poderes de Estado de uma forma diferenciada que o resto da cidadania em suas decisões.
A última semana de notícias retratou este triste quadro de cidadania excludente no Brasil. De um lado os queixumes de Danuza Leão quanto à presença maior de integrantes da plebe ignara e deselegante brasileira nas vias públicas e nos centros comerciais de Paris e Nova York, produto da melhor distribuição de renda de nossos tempos. Ou seja: da melhor realização do comum – e talvez não elegante – conceito de “pessoa”. O “comum”, o irmão pobre e filho do mesmo pai, invadindo o que até pouco tempo atrás era praia do irmão meio besta, descolado da família e elitista.
De outro lado, os mapas da morte do inimigo. Jornalistas investigativos. Sim, eles ainda existem (são poucos, mas existem). Apontam a execução de pessoas por agentes estatais pelo simples fato de terem antecedentes criminais. E pior: com o apoio expressivo de parcela de nossa sociedade. O suposto “inimigo” desprovido da condição mínima que deveria ser outorgada a qualquer “pessoa”, o direito a vida.
O conteúdo das pesquisas de opinião desenha a tragédia. Se fôssemos pela opinião de cerca de 40% dos entrevistados outorgaríamos a nossos policias o poder máximo da exceção, do poder político bruto, da soberania estatal em sua maior violência. Decidir sobre quem é o “amigo” e o “inimigo”, decidir sobre a vida e a morte das pessoas. Decidir, portanto, sobre quem merece ou não ser “pessoa”. No plano teológico, ocupar o papel de Deus.
Acho que não há necessidade de argumentar muito para mostrar a absoluta falta de senso na opinião destes 40% dos entrevistados. A vida social, por óbvio, descambaria para a total barbárie e para um patamar de violência muito maior da que já temos hoje. Sim, ela pode aumentar muito e ficar muito pior. E não, é melhor não experimentar. A vida pública não é um jogo de dados.
Pedro Estevam Serrano é advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP,mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-descolamento-de-danuza-e-a-exclusao-da-pm/?autor=363