Os dois Fernandos, Aloysio e a política

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  • sexta-feira, 9 de novembro de 2012
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    Logo na abertura do pós-eleitoral paulistano, momento de distensão e relaxamento, ganharam destaque alguns construtores políticos e lideranças partidárias, animados, um, pela vitória, e outros dois, pela derrota.
    Quando o prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, do PT, em entrevista publicada dia 31/10/2012 pelo jornal O Estado de S. Paulo, pediu que se levasse em consideração o seu passado, que é um “testemunho da minha disposição para construir consensos em torno de propostas que atendam ao interesse público”, ele não quis somente valorizar sua trajetória. Quis estabelecer um princípio de conduta, reforçado com a declaração de que “gestos de distensão” “são importantes para mostrar que divergências são discutidas durante a campanha”.
    Foi um recado para fora – para o mundo político – e para dentro, para seu partido, que tem integrantes que ainda permanecem “em campanha”, dispostos a aproveitar a onda para esmagar e triturar seus adversários e “inimigos”. Para o mundo político, o novo prefeito enfatiza que fará um “governo de coalizão” mas que “não faço toma lá dá cá” e resistirá com firmeza e serenidade ao assédio e à pressão desenfreada por cargos. Não loteará seu secretariado. O norte a ser seguido é o plano de governo aprovado nas urnas. A que se esperar com calma até que a pressão saia do alto-mar e chegue à praia, diluindo-se. Uma bela imagem, com muito de sabedoria.
    A pressão vem de fora, mas também vem de dentro. O PT é um partido de correntes, e partidos de correntes são sempre associações de interesses que competem entre si. É razoável supor que briguem nas derrotas, jogando a responsabilidade por elas para os “outros”, e que briguem nas vitórias, procurando ocupar posições e controlar recursos de poder que sejam compatíveis com o que julgam ser sua contribuição para o êxito eleitoral. O prefeito vitorioso, no caso, tende a ficar no fogo cruzado, e pode perder terreno nisso.
    A favor de Haddad, conta muito seu passado. Ele não é um militante típico do PT. Nunca esteve no coração da máquina partidária, mas na sua periferia: fez mais parte da “sociedade civil” petista que do Estado-Maior do partido. Não foi preso político, nunca (ao que eu saiba) se engajou com paixão nessa ou naquela corrente. Teoricamente, está livre de maiores compromissos e tem hábitos diferentes, procede por outros canais e segundo outras regras. Tenderá a se apoiar nisso para fazer dois movimentos decisivos para seu futuro: (a) administrar a pressão dos companheiros e (b) imprimir caráter mais “racional” a seu governo. O segundo movimento é a porta que ele tem para realizar de fato um governo que “mude São Paulo”, tarefa que não sairá do papel se não contar com recursos técnicos e intelectuais poderosos. Não será um governo técnico, mas com mais técnica, mais conhecimento: um governo composto por intelectuais de novo tipo, cujo modo de ser “não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente, já que não apenas orador puro”. Especialistas que desejam ser dirigentes: “especialistas + políticos” (Gramsci).
    Na entrevista, Haddad também se livrou de uma canga incômoda. Declarou que sua própria declaração de que seria “o segundo poste de Lula” e de que outros postes virão não passou de “uma conversa com a militância, celebrando a vitória”. Para bons entendedores, poucas palavras bastam.
    A entrevista do prefeito eleito coincidiu (no tom e no efeito) com manifestações de próceres tucanos. Fernando Henrique Cardoso veio a público, já na véspera do segundo turno, dizer que Serra mostrou tenacidade e energia, mas que o PSDB "precisa voltar a ter uma atitude muito mais próxima do que o povo está sentindo". Disse que o partido "tem que estar alinhado com o futuro” e vai “precisar de renovação”: a gente "tem que empurrar os novos para ir para a frente". Foi interpretado como se estivesse a criticar a velha guarda ou os mais velhos. Mas pôs na roda uma palavra densa – renovação – que precisa ser considerada por qualquer um que queira fazer política partidária. FHC enfatizou que não seria preciso eliminar "os antigos líderes”, mas sim fazer com que eles animem as pessoas mais novas, pois elas sempre trazem ideias novas. "O importante são ideias, não necessariamente novas, mas renovadas para fazer frente às conjunturas". Sem isso, nenhum discurso será convincente.
    Quase que como fazendo um dueto com os dois Fernandos, o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) foi à tribuna do Senado para abrir o debate dentro do PSDB e tentar compreender a derrota em São Paulo. Ambiente tenso, repleto de mágoas, ressentimentos e dificuldades, a reanimação do mundo íntimo dos tucanos será um desafio tão grande quanto à gestão de São Paulo, exageros à parte. Ainda que absolvendo Serra de responsabilidades, o que certamente não pode ser feito, Aloysio foi direto ao ponto: a derrota na cidade ocorreu por "negligência do PSDB", que não teve "presença política" suficiente para sustentar suas pretensões eleitorais. "Por que o resultado eleitoral adverso? Porque a ação administrativa não foi acompanhada da luta política; do esclarecimento das consciências; da articulação com a base da sociedade; com a presença cotidiana do partido, nas associações, nos movimentos sociais; com o distanciamento da população; com a burocratização da estrutura partidária".
    Não disse tudo, nem o mais correto em termos de análise política, mas disse muita coisa boa. Pôs o dedo na ferida maior do PSDB: ter dificuldade para ser um partido de quadros e massas, sem o que o ideal da social-democracia não se concretiza. O problema é antigo, mas quase nunca foi discutido em público ou reconhecido.
    Alguns leram a intervenção de Aloysio como limitada e equivocada, porque não admitiu a culpa de Serra e dos coordenadores de sua campanha. Não vi assim. Vi na intervenção dele a mão de alguém que pensa a política como uma ação coletiva. Homens políticos não carregam culpas sozinhos; também são estragados, ou tem seus defeitos agigantados, por seus partidos, amigos e apoiadores. Serra tem uma biografia política complicada. É responsável por seus acertos e sobretudo por seus erros, como os da atual campanha. Errou ao postergar a candidatura, comprou brigas internas evitáveis, queimou seu filme junto à opinião pública ao não conseguir explicar direito a saída da Prefeitura em 2010. Errou feio não por ter forçado sua candidatura (não sei se o fez porque não privo da intimidade do PSDB) e sim por não ter conseguido resistir á tentação de permanecer no primeiro plano. Falhou por excesso de protagonismo, digamos assim. Poderia até ter vencido as eleições (seria difícil dada a conjuntura), mas jamais apagaria a imagem de ter apetite demais. E perdeu as eleições não por ter escolhido mal os aliados (ele não tinha com quem se aliar) ou por ter subestimado os adversários (todo mundo sabe que o PT tem força na cidade), mas por não ter encaixado um eixo de campanha, por ter falado bobagem demais e por ter deixado a campanha ser conduzida por gente incompetente (e por ter deixado isso acontecer, assinou um atestado de incompetência).
    Mas o PSDB tem muita culpa no cartório, e deve ser parte da boa análise política reconhecer isso. Ficar chutando Serra agora acrescentará pouca coisa à compreensão dos fatos, ainda que sirva para desopilar o fígado dos que estão saboreando sua derrota ou dos que choram seu fracasso.
    Muitos analistas políticos não costumam considerar que a vida partidária tem suas limitações e suas obrigações. Aloysio Nunes não disse tudo porque não poderia tê-lo feito, do mesmo modo que muitos petistas cortejam militância ao dizer que o STF está sendo "politizado".  Tucanos sem maiores "responsabilidades partidárias" podem soltar cobras pela boca, mas um dirigente não pode, sob pena de perder o chão partidário. Aloysio não disse que faltou apoio do PSDB a Serra, mas sim que "faltou presença política" do PSDB, o que me parece ser fato incontestável. Talvez ele venha a sacrificar Serra, ou a fazê-lo sangrar, mas terá de ter muito timing para fazer isso sem perder bases de apoio no partido. Acho que ele quer sim abrir o debate, porque sabe que alguém tem de fazer isso. Mas não pode sair dando tiros para todos os lados, como nós, analistas, gostaríamos que acontecesse. Na linha maquiaveliana, está dando pistas do que poderá e deverá ser feito: cortando a carne do partido, que é e sempre deveria ser o "dono" das campanhas dos candidatos. Acho um erro atribuir peso excessivo à personalidade de Serra ou a seus erros pessoais (ou mesmo grupais). Everything is connected.
    Se o PSDB quiser discutir de verdade, pouco valor terá a tentativa de preservar José Serra. Será preciso de fato dar a "Serra o que é de Serra".  Mas será preciso olhar as coisas no conjunto. Política é vontade e circunstâncias. Haddad ganhou porque soube se beneficiar dos erros do PSDB e porque entrou em sintonia com a população. Virtú e fortuna. Foi uma vitória “circunstancial” no sentido de que soube aproveitar circunstancias favoráveis. Inquestionável e meritória.

     
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