Digam e pensem o que bem entendam os políticos “de cima”, o império norte-americano é um sistema, não uma política, baseado em interesses das grandes corporações e dos militares. (Ilustração: Belle Mellor).
Seumas Milne
“Quem governe Washington lidera um império global. A política norte-americana afeta a vida das pessoas em todos os cantos do mundo; quase sempre, é vida ou morte. Portanto, não surpreende que mais de 40% da população em todo o mundo reivindique, como mostram algumas pesquisas, o direito de votar nas eleições presidenciais nos EUA.
Afinal, a revolução norte-americana se fez sob o mote “nenhum imposto sem representação”. Assim, se o governo dos EUA arroga-se o direito de impor sua “liderança”, à força, em todo o mundo, versão contemporânea da reivindicação dos colonos pró-independência bem pode ser: “nenhum poder global sem dar satisfação a ninguém”.
E, com a presidência encharcada de sangue de George Bush ainda fresca na memória, deve-se esperar, sim, 81% da população global deseje ver reeleito o menos beligerante Barack Obama. Só no Paquistão, alvo e vítima de massacre ininterrupto de civis pelos aviões-robôs drones comandados por Obama, a maioria dos cidadãos prefere o oponente, Mitt Romney.
Claro que dar direito de voto a estrangeiros é fantasia. Só cidadãos norte-americanos terão voz nessas eleições (mesmo que menos da metade desses privilegiados manifeste qualquer interesse em votar). Escolherão movidos, sobretudo, por questões domésticas, sem pensar em como o governo emprega seu aterrorizante arsenal contra cidadãos que vivem do outro lado do mundo.
A disputa está apertada, principalmente porque a economia ainda rateia e a miséria cresceu 19% desde 2000. Mas, apesar das frustrações que Obama gerou e de o sistema eleitoral ser operado como feudo dos ricos, a opção doméstica é bastante realista: de gastos e impostos para a saúde pública e aborto – contra um adversário desafiante que acha que 47% dos cidadãos dos EUA são caloteiros.
Mas, em matéria de separar entre os dois candidatos, no debate sobre política externa a que o mundo assistiu na 2ª feira à noite, são tão próximos e grudados que não se consegue passar entre eles nem um fio de cabelo. Esforçaram-se para mostrar, cada um, mais compromisso incondicional com a segurança de Israel do que o outro; cada um mais determinado a impedir que o Irã desenvolva bombas atômicas que o outro; cada um mais decidido a obrigar a China a “jogar pelas regras” que o outro.
Romney baixou muito o tom ameaçador da retórica. À parte resmungar sobre Obama carecer de “liderança forte”, o falcão conservador que vive na alma de Romney só mostrou as garras duas vezes – ao insistir que os EUA devem armar os rebeldes sírios, e na necessidade de aumentar ainda mais o já assombrosamente gigantesco e deficitário orçamento militar dos EUA.
A certa altura, o republicano da direita linha-dura criticou Obama por agir como se os EUA pudessem “abrir saída a tiros para escapar dessa confusão” [orig. kill our way out of this mess] no mundo muçulmano. Mas o conselho não deve ser tomado em sentido literal. Há exemplos bem vivos de dizer a mesma coisa e fazer o contrário, no próprio governo Bush – que se apresentou como conservador compassivo, com “política exterior humilde”, em 2000, e, em seguida, lançou o país na guerra mais devastadora de toda a história moderna dos EUA.
Mas Romney estava determinado a espantar a imagem de brucutu belicista sanguinário, o que prova que percebeu a necessidade de, no mínimo, fazer um aceno à opinião pública norte-americana. Pesquisas já mostraram que, diferentemente do ‘establishment’ em Washington, vasta maioria de norte-americanos entende que o país jamais deveria ter-se envolvido nem no Iraque, nem no Afeganistão; mais de ¾ dos cidadãos entendem que os EUA querem fazer-se de “policiais do mundo”, muito além do necessário e razoável; muitos se opõem aos gastos militares, rejeitam qualquer tipo de ataque ao Irã e não admitem que os EUA forneçam armas à oposição na Síria. Pesquisas interessantes e úteis para mostrar, também, que os eleitores pouco influem nas políticas exteriores dos EUA (como, aliás, tampouco influem na Grã-Bretanha) ou nas aventuras militares em que se metem os governos norte-americanos.
Por mais que Obama fale e apesar de ter-ser realmente oposto à guerra do Iraque, não se pode dizer que Obama tenha currículo considerável no quesito paz. Acelerou a retirada do Iraque, mas escalou a guerra no Afeganistão, onde não conseguiu derrotar a resistência local armada, nem ao preço de milhares de mortes extras. Obama intensificou terrivelmente a guerra dos drones no Paquistão, levando-a também para a Somália e o Iêmen, ao mesmo tempo em que passou a trabalhar pessoalmente sobre as macabras “kill lists” [listas dos alvos dos assassinatos premeditados que Obama legalizou]; e flexibilizou a definição de “alvos legítimos” a qual, hoje, já se aplica a qualquer homem em idade de prestar serviço militar.
Obama apoiou a ação da OTAN na Líbia, decuplicou o número de vítimas e promoveu ali um processo de limpeza étnica; apoiou a repressão aos protestos internos nas monarquias do Golfo; e administrou violento golpe de Estado em Honduras, até uma “conclusão bem-sucedida”. Com pequena ajuda do Congresso, Obama desistiu de cumprir a promessa de fechar o campo de concentração de prisioneiros que os EUA mantêm em Guantánamo; aceitou que Israel ignorasse completamente qualquer lei ou norma e prosseguisse a “colonização” ilegal de território palestino; e, bem recentemente, Obama também já enviou soldados norte-americanos para a África Subsaariana e para a Jordânia.
Digam e pensem o que bem entendam os políticos “de cima”, o império norte-americano é um sistema, não uma política, baseado em interesses das grandes corporações e dos militares.
Romney pode vir a ser presidente muito mais perigoso, mas praticamente todos os presidentes norte-americanos já autorizaram ação militar; e os riscos crescentes de guerra contra o Irã ou de intervenção na Síria também persistem num segundo mandato de Obama.
Mas é, sim, também, sistema em declínio evidente, acelerado pela extensão da guerra ao terror e que está custando muito caro em sangue e em dinheiro, tanto para os norte-americanos como para muitos povos em todo o mundo. O orçamento militar dos EUA é maior que os orçamentos militares de todos os 20 países que aparecem abaixo dos EUA na lista das potências mundiais, somados. Os EUA têm de manter soldados em incontáveis países, por todo o mundo.
Evidentemente, o resto do mundo não quer, de fato, votar nas eleições norte-americanas. O que o resto do mundo quer é ver se arranca os EUA das próprias costas ou da própria jugular. Muito melhor seria, também, para os cidadãos dos EUA, se aquele orçamento militar superinflado fosse fatiado; se os soldados fossem evacuados das bases onde vivem e as bases fossem fechadas – e que todo o dinheiro desperdiçado nesses projetos pudesse ser aplicado em criar empregos, escolas e melhor saúde para os próprios EUA.”
FONTE: escrito por Seumas Milne, no jornal inglês “The Guardian”, sob o título original “Americans would also gain from scaling back the empire”. Artigo traduzido pelo “pessoal da Vila Vudu” e postado no blog “Redecastorphoto” (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/10/uma-desescalada-do-imperio-ajudaria-ate.html).