A guinada conservadora de Dilma

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  • terça-feira, 21 de agosto de 2012
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  • Por Maurício Caleiro, no blog Cinema e Outras Artes:
    A oportunidade histórica de se apresentar como uma liderança capaz de oferecer uma alternativa de centro-esquerda à hegemonia do receituário neoliberal – panaceia que ora destrói a economia europeia - foi desperdiçada por Dilma Rousseff. Seu governo acaba de acentuar ainda mais, e de forma irreversível, uma guinada conservadora.
    Enquanto Lula herdara de Fernando Henrique um país aos cacos, à beira da insolvência, com índices pornográficos de desemprego e baixa atividade econômica, Dilma recebeu um Brasil renovado, recém reestruturado socioeconomicamente - através da diminuição expressiva dos índices de miséria e de pobreza e da ascensão de uma nova classe média – e com uma economia interna vibrante, marcada por inclusão e aumento no consumo e por recordes de baixo desemprego, a qual permitira que a crise mundial fosse aqui sentida (quase) como “uma marolinha”.
    Eleita, em tais condições, presidenta de um grande país emergente, potência regional e um dos principais incentivadores do diálogo Sul-Sul, muitos acreditavam que a nova mandatária, livre da “herança maldita” tucana, estava fadada a aprimorar e expandir o legado de Lula, seja - como prometera no discurso de posse - priorizando o muito que se há de fazer na Saúde e na Educação, seja expurgando de vez as políticas de orientação neoliberal que, voltadas à satisfação desse ente caprichoso chamado mercado, tanto mal já causaram ao povo e à economia brasileiros. “Venho para consolidar a obra transformadora do presidente Luis Inácio Lula da Silva”, anunciava a candidata.
    Decepção inicial
    Já a partir do segundo mês de governo, com a imposição de um duríssimo choque anticíclico – que o futuro confirmaria não apenas desnecessário, mas deletério à saúde econômica do país – tais alvissareiras possibilidades foram dando lugar a um retorno à primazia, no interior da administração, do economicismo mais tacanho, de planilha. Este tem, desde então - e de forma ainda mais intensa nos últimos meses - mantido o governo permanentemente apavorado ante a iminência do agravamento da crise econômica internacional, gerando o que Paulo Kliass, em imperdível artigo na Carta Maior, chama de “síndrome da perda de popularidade”, a qual estaria levando Dilma a agir da forma apressada e improvisada que temos verificado.
    Em seu texto, Kliass observa, em relação às pífias consequências advindas do aperto macroeconômico acima referido: “Quando a maioria esperava justamente uma mudança de rota a partir de tais resultados colhidos ao longo do primeiro ano de seu mandato em termos da economia, eis que Dilma inicia 2012 com a mesma lenga-lenga da ortodoxia conservadora: esforço fiscal para geração de superávit primário e contenção de despesas orçamentárias essenciais (…) Apesar de ela ter revelado uma atuação importante no sentido de provocar a reversão da taxa oficial de juros (SELIC), isso só começou a ocorrer muito tarde, a partir de 1 de setembro de 2011” (e, acrescento eu, não conseguiu até agora que tal medida significasse uma redução realmente expressiva do spread que os grandes bancos, com exceção dos estatais, cobram do cidadão comum, notadamente no que concerne a cartão de crédito e cheque especial).
    Como decorrência de tal contexto, no lugar do avanço esperado, o que se observa nas áreas sociais desde o início do governo - ressalvados os programas de renda mínima - é, além do agravamento das condições de alguns campi das novas federais, do sucateamento das Defensorias Públicas e da adoção de um programa de ajustes (que, levando dezenas de médicos a pedirem demissão, prejudicou sobremaneira o funcionamento do SUS), é o absoluto desprezo pelos servidores em geral e pelos professores universitários em particular, cuja greve já supera inacreditáveis três meses, sob a intransigência irresponsável do governo.
    Direita, volver!
    Porém, o ponto culminante da guinada conservadora do governo Dilma, o qual enterra de vez as esperanças de que pudesse contribuir para a constituição de uma alternativa ao neoliberalismo - obstáculo principal aos avanços sociais e à efetivação de uma agenda politicamente avançada - deu-se na semana que passou, com o anúncio de um megaprograma privatista para obras de infraestrutura (rodovias, portos e aeroportos), pelo qual o governo desembolsa, só na primeira fase, referente a estradas, R$133 bilhões à iniciativa privada.
    Como observa Kliass, “Se os recursos existem e estão disponíveis, não há razão para oferecê-los graciosamente ao setor privado. O Estado brasileiro teria todas as condições de iniciar os projetos necessários, bastando para isso a sinalização da vontade política por parte da Presidenta”. O governo Dilma prefere, no entanto, ignorar as graves implicações político-ideológicas de tal decisão e se coloca mais uma vez contra o Estado (e seus servidores) enquanto protagonista da economia nacional, apostando, como forma de aprimorar a infraestrutura - mas talvez ainda mais de criar empregos e fermentar a economia – numa espécie de aggiornamento neoliberal do New Deal de Roosevelt, o que é, por si, uma contradição em termos.
    Diferenças mínimas
    Deve-se reconhecer , para o bem do debate, que, como argumentam muitos defensores do governo, as privatizações (ao estilo FHC) e as concessões (à moda Dilma) não constituem exatamente a mesma coisa, já que as primeiras são para sempre, enquanto as últimas duram várias décadas. Mas, excetuada essa diferença de duração, não há como negar que se trata, nos dois casos, de uma operação privatizante, que segue uma lógica caracteristicamente privatista, ao transferir do Estado para a iniciativa privada a tarefa de executar grandes obras de infraestrutura – e de auferir, para sempre em um caso, durante um longuíssimo período em outro, lucros com isso.
    Convém apontar, ainda, que tanto privatizações tucanas quanto “concessões” petistas têm em comum uma original contribuição ao receituário neoliberal à brasileira, na constatação de que grande parte do capital demandado por tais obras advém de dinheiro público – ou seja, o povo paga para construir e pagará para usufruir, mas o lucro ficará com a iniciativa privada. Trata-se do “governo pagar pra capitalista administrar mal, cobrar caro e lucrar sobre um bem que é do povo brasileiro”, como resume “na lata” a blogueira Maria Frô.
    Tão importante quanto assinalar essas coincidências, digamos, operacionais entre privatizações tucanas e “concessões” petistas, é atentar para o fato de que a lógica política que orienta ambas é muito similar e, obediente aos preceitos do Consenso de Washington, deriva da mesma ideologia neoliberal que apregoa o protagonismo do mercado como agente econômico e que, se tanto, tolera a limitação do Estado à função reguladora. O retrocesso que um governo dito de centro-esquerda promove ao sucumbir a tal ideologia orientadora de políticas oficiais – a mesma que a oposição à direita que nas urnas derrotou cultivava – é imensurável. Mas não quero me estender neste tema. Tudo o que eu tinha a dizer sobre a agenda privatista do governo Dilma e suas diferenças – ou ausência delas – em relação às privatizações tucanas já o fiz em outro post (link).
    Traição eleitoral
    Dilma fez toda uma campanha eleitoral condenando as privatizações e os políticos que as promoveram, ao mesmo tempo em que reiterava o compromisso com um Estado atuante e promotor do desenvolvimento do país. Eram críticas fortes, contundentes, que não deixavam margem à dúvida: transferir ao setor privado a administração de áreas estruturais do país, e ainda por cima fazê-lo com dinheiro público, era uma prática condenável do passado, que sua administração não cometeria. Não há, nos discursos de campanha, nenhuma referência à possibilidade de que viesse a adotar um modelo temporário de privatização, que a novilíngua petista prefere chamar de concessão mas que, como já aludido acima, significa, na prática o retorno de um modelo privatista, e com duração assegurada por longas décadas.
    Portanto agora, ao recorrer, com dinheiro público, a uma política privatista de longo prazo, Dilma Rousseff trai os seus compromissos de campanha e a confiança de muitos daqueles que acreditaram em sua palavra. O desprezo que demonstra pelos aspectos político-ideológicos de suas medidas, além de permitir a seus adversários tucanos se refastelarem em gozações e provocações, coloca, com sua guinada rumo ao conservadorismo, a centro-esquerda e seu programa político em uma situação extremamente desconfortável. Cría cuervos...
     
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