Não seria preciso arder uma nova fogueira em Brasília – a do ministro do Trabalho, Carlos Lupi – para que a corrupção voltasse às manchetes. Não haveria como retornar ao primeiro plano algo que dele não sai há anos.
A primeira reação de quem se incomoda com a corrupção é apontar um culpado. Culpados evidentemente existem. Ninguém que esteja numa função de responsabilidade deixa passar como rotina certos procedimentos explosivos, que deslocam a tomada de decisões para a beira do precipício. Governar ou administrar é uma operação delicada, e quem vacila no cumprimento das obrigações e abre espaços para lobistas inescrupulosos, parentes vorazes, protegidos e amigos, ou deseja testar os limites da legalidade, não pode merecer perdão. Por bem menos muitos cidadãos são presos ou têm a vida reduzida a pó. Não há ingênuos na alta administração, muito menos anjos. Todos sabem distribuir favores, castigos e recompensas com a mesma desenvoltura. Ninguém rasga dinheiro, assina cheque em branco e pode alegar ter sido enganado. Porém, se sempre há culpados, nem sempre é fácil descobri-los ou atribuir as devidas responsabilidades na cadeia de comando da corrupção. Punições exemplares e cortes de cabeças coroadas são importantes, mas não desmontam esquemas.
A corrupção pode derrubar governos ou atrapalhar sua atuação. É uma arma de todas as oposições. Isto acaba por fazer com que denúncias e apurações fiquem envoltas numa névoa de suspeita. Serão os fatos aqueles mesmo ou tudo não passa de armação para desgastar o governo? Como as coisas hoje vêm a público de modo espetacular e ganham rápida difusão graças aos circuitos midiáticos, sempre haverá alguém para dizer que a “grande mídia golpista” está por trás dos escândalos. Tal tipo de acusação faz parte do jogo e ajuda a que muita gente reflua da luta anticorrupção por receio de ser confundido com os adversários de seu partido ou representante.
Corruptos e corruptores são malvistos. A petulância, a desfaçatez e a arrogância deles agridem a ética do cidadão comum, embora possam ser assimiladas pela ética dos políticos. Irritam e intimidam as pessoas, que procuram seguir com a vida tanto quanto possível longe de atritos com a legalidade. Quando a corrupção surge na esfera governamental e na política, o efeito é ainda pior, pois as pessoas tendem a perder a confiança que algum dia depositaram em seus representantes, transferindo isso para todo o sistema representativo. Não é por acaso que a presidente Dilma cresça em prestígio quando afasta ministros suspeitos de atos ilícitos ou indignos. Perderá pontos se acobertá-los, permanecer indiferente ou paralisada diante deles. A ética do cidadão comum manifesta-se invariavelmente misturada com lampejos moralistas, podendo chegar mesmo a ser inteiramente comida por eles. Pode-se atacar a corrupção de um ponto de vista ético, político, econômico ou moral, cada um com seu mérito. É insensato, por exemplo, fazer como o ex-deputado José Dirceu, que dias atrás etiquetou as atuais denúncias de corrupção como “campanha moralista”. O que teria desejado dizer com isso? Que não é correto pensar a corrupção pelo registro do bom e do mau, de certo e do errado, ou que o correto seria interpretar certos desvios de conduta como sendo inevitáveis em quem tem responsabilidades governamentais?
Se quisermos descobrir como e porque a corrupção ressurge sem cessar, teremos de cortar mais fundo, ir além da caça aos culpados. A corrupção anda de braços dados com a desmoralização da política, dos políticos e de seus partidos. Nunca como hoje a classe política foi tão ruim, nunca os partidos foram tão frouxos e desorientados, nunca a política foi tão improdutiva. Na melhor das hipóteses, as pessoas esperam resultados dos governos em sentido estrito, do Poder Executivo, que costuma emergir cercado de pompa, inflado de expectativas e disfarçado de “vítima” de subordinados incompetentes e interesses poderosos. Um círculo, assim, se fecha: a má-qualidade da política fornece oxigênio para a corrupção e dificulta o combate a ela.
Mas não se trata só de má qualidade dos representantes. Políticos despreparados e sem visão social abrangente, tanto quanto corruptos e corruptores pendurados na administração pública, são impulsionados por defeitos sistêmicos. Nosso “presidencialismo de coalizão”, por exemplo, é parte importante do problema. Sem coalizões, os governos não governam; mas com elas, encharcadas que estão de interesses fisiológicos, ficam expostos a muitos malfeitos e dissonâncias, têm de carregar peso desnecessário e perdem coerência e unidade de ação. Embalada e protegida por este sistema, a corrupção se reproduz, governo após governo.
Por fim, há um fator que deriva da época. Sendo verdade que passamos a viver de modo mais rápido, individualizado e fora de controle, inseridos em redes e estruturas cortadas por riscos e crises permanentes, então ficou mais difícil controlar o que quer que seja. A corrupção adquiriu “vida própria”, atingindo áreas e pessoas antes tidas como inatingíveis. Também cresceu a percepção social dela, o que a torna ainda mais intolerável.
Isso não significa que somos impotentes perante este problema que se alimenta de hábitos seculares, bebe em muitas fontes e afeta tanto o setor público quanto o privado. Não poderemos, porém, eliminá-lo pela raiz se o reduzirmos à responsabilização pessoal ou acharmos que a solução virá da mera (e difícil) mobilização da sociedade civil. Avanços consistentes dependerão de múltiplas ações combinadas e só alçarão voo sustentável se estiverem articulados com uma perspectiva reformadora e democrática do Estado e da política, que entre outras coisas ajude a República brasileira a se tornar efetivamente republicana. [Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 26/11/2011, p. A2].