A crise capitalista continua forte, intensa e assustadora, ao mesmo tempo, que se agrava e maltrata a sociedade. A ruptura passa por eminente, como uma ponte pênsil sobre o abismo. A gente se preocupa e teme, mas ela é ainda transferida para amanhã, como tem ocorrido nos últimos meses. Existem até agora medidas que servem para ganhar tempo. O problema se centra na queima de capital e na reorganização da economia e da política como um todo. Digo queima de capital porque, quando ele constrói um aumento excessivo de produção e de acumulação financeira, há a necessidade profunda do sistema se despojar do que está a mais. Um sintoma de que o capital precisa se renovar e encontrar um novo formato. Quer dizer que o negativo está apontando para um possível positivo: uma nova economia. Todavia, não sem problemas, não sem barulhos. Por essa razão, o capital faz uma sangria no próprio corpo. E isso só ocorre porque a mudança é como se fosse uma passagem de um dia para outro, com uma noite de permeio, garantindo o trânsito. Só que a noite da Europa está com uma voz cada vez mais escura de tempestade.
CRISE: ABUNDÂNCIA E CARÊNCIA
A primeira coisa que ocorreu na crise capitalista foi, sem dúvida, a ruptura do único eixo que dominava a economia mundial, “a exuberância irracional” da economia americana. A crise de 2007/08 permitiu ver que tínhamos passado de um eixo singular para um duplo. O eixo único tinha se quebrado em dois. E a economia mundial, com essa ruptura, revelou que tem agora duas partes: uma dinâmica, a economia chinesa, e outra em decomposição, que é a economia americana-européia. E como um relâmpago, ficou muito claro a emergência do eixo chinês-asiático – insistente, se reformando em velocidade inimitável, de um modo geral em grande movimento, invejadamente ativa, mas incapaz de reanimar a economia mundial como um todo. E o outro eixo da economia americana-européia, coitado, tem que queimar capital de forma lenta e dolorosa. Ignácio Rangel, o fantástico economista brasileiro, dizia que o grande problema das economias seria como reorganizá-las, como reenlaçar o que ficou separado durante a crise. Porque essa deixa, de um lado, abundância de recursos, e do outro, carência deles. Não é o que está acontecendo com a China, com grandes saldos de reservas, e os Estados Unidos-Europa, numa crise de liquidez e, em alguns casos, de insolvência? Por que não se faz um laço entre os dois eixos? É que aqui, o problema está além do quintal, ele é geoeconômico e geopolítico. Pois os Estados Unidos temem a invasão chinesa, temem o domínio de empresas e bancos nacionais pela China. Seria dar vantagem no jogo estratégico. Vejam o caso da SUNOCO que o Congresso americano vetou a venda.
O QUE É QUE A CHINA TEM DE DIFERENTE?
Há que registrar, nesta crise, a profunda novidade da China dentro do capitalismo financeiro. Inúmeros economistas e políticos de diversos países não entendem porque o pólo chinês resistiu à crise neoliberal. Acusam a China de manipulação do câmbio, etc. etc. Os Estados Unidos estão até aprovando uma lei que permite sanções contra países que não praticam o livre mercado. Quá, quá, quá. Claro que isso vai perturbar as relações sino-americanas, mas a questão é outra. A questão é que China não sofreu os problemas dos ocidentais, porque ela tem um Estado atento à sua segurança, à sua capacidade de desenvolvimento, à sua constante expansão. Um Estado desenvolvimentista. E um Estado desenvolvimentista é um Estado que planeja a atividade econômica, que comanda o câmbio, que dirige o comércio exterior e que trabalha para recompor a estrutura produtiva e financeira quando uma crise ocorre. E, nas crises, o Estado tem, como um moto no trânsito, uma capacidade e uma rapidez de resposta que é muito maior que a instabilidade desordenadora da economia de livre mercado.
A RAPIDEZ DO ESTADO, A RAPIDEZ DOS CAPITAIS
Isso quer dizer que o processo de acumulação de capital tem como regulador intrínseco o próprio capital. E entra em atividade disparando seu lado corretivo quando há superacumulação, seja produtiva, seja financeira. Emerge, assim, no cenário, a necessidade de repor as coisas em ordem. Fazer uma faxina na casa. E uma crise se resolve através de duas forças maiores: pelo mercado e pelo Estado. De um modo geral, conjugadamente, só que dirigidos por uma delas. Quando a direção vem pelo Estado, o planejamento global e a rapidez das iniciativas ocorrem com mais eficiência (para usar a palavra neoliberal) do que quando são feitos sob direção e inspiração exclusiva dos capitais. Por que? Porque o Estado pensa sempre em termos do capital em geral, sendo ele, Estado, o árbitro das disputas e das discórdias das frações empresariais. E pode sempre sair pelo incentivo ao investimento – público, privado ou misto – que acaba por disparar a lucratividade privada e amparar o crescimento do emprego. Com isso, acaba também, por causa dos seus instrumentos e sua amplitude de atuação, resolvendo, com menos dores, os problemas de toda a sociedade. O que não quer dizer que alguns grupos sociais não possam ser afetados fortemente. Mas quando são os próprios capitais que decidem, os mercados levam tempo para reativar os lucros das empresas, a demanda só reaparece quando a eficiência marginal do capital sobe. Na crise, o capital é muito lento para escolher o que é melhor para si. Depende da fricção entre a concorrência capitalista. E a coisa piora muito para a sociedade. O leitor pode ver o tempo que demora para que o emprego retorne a níveis aceitáveis. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego, nos melhores momentos, ficou todo o tempo ao redor de 9%.
PARA ROMPER COM A CONTAMINAÇÃO
Então, partiu-se o eixo único, ficaram dois eixos, o americano e o chinês. O eixo americano vive o momento fundamental de inflamação completa. E mais, ocorre um circuito vicioso. Os Estados Unidos contaminam a Europa, agora a Europa está na eminência de contaminar os Estados Unidos. Tudo isso faz parte do processo de queima de capital. Pois, quando se fala em recapitalização nada mais se busca do que novos sócios, novos aportes de capital, de tal maneira que o capital se conjugue, se concentre, se centralize e possa enfrentar, com galhardia, a nova etapa do processo de acumulação capitalista. Porém, a crise se estendeu por todo o Ocidente. E estamos num processo de renovação do capitalismo em todo o planeta. Então, há que destruir o que se embaraçou, o que se complicou. Por exemplo, há que impedir que o capital especule do jeito que especulou. Nos Estados Unidos temos a chamada “emenda Volker”, para que os bancos sejam, grosseiramente dito, divididos em bancos de depósitos e bancos de investimentos financeiros, ou seja, bancos dedicados à especulação. Embora a questão chave para mim esteja na idéia das finanças como crédito. O que hoje se precisa é crédito para a produção, para a produção que possa dar emprego. E também que haja crédito para a tecnologia, seja para pesquisa, seja para inovação, seja para apoio à instalação de indústrias em setores avançados. É essencial impedir que o crédito vá sempre para a especulação. E nesse sentido, o Estado tem uma capacidade maior de fazer direcionar o elemento creditício para os setores fundamentais. Uma vez que pode absorver o rendimento de juros baixos ou juros negativos ou conceder juros privilegiados. O crédito é um dos pontos decisivos de uma política econômica. E o mercado não tem política econômica.
A ASFIXIA DO ESTADO PELA DÍVIDA
Então vejamos o que aconteceu com a relação Estado/capital financeiro no capitalismo neoliberal. A mudança foi substituir, em grande parte, o financiamento do Estado através do imposto pelo financiamento através da dívida pública. Ou seja, para fazer transformações profundas, ele tem que se endividar. Ora, é por intermédio da dívida, principalmente pública, que as rendas dos capitais financeiros se substancializam. Mas essa idéia de dívida também foi inoculada na sociedade como um todo. Ou seja, todo mundo faz dívidas para comprar seja carros, apartamentos e residências, seja para adquirir meios de produção, matérias primas, ou vender produtos. É a dívida que potencializa a valorização do capital. Portanto, nos dias de hoje, não se pode retornar aos impostos, porque todo mundo está endividado. Dessa forma, quando um Estado entra numa crise fiscal, a economia balança, e quando temos um conjunto de Estados endividados, acrescidos de uma crise bancária, chegamos à crise sistêmica. Não é um pouco o que Trichet dizia da Europa?
O único setor que não está endividado é o dos mais ricos – a classe alta e a classe média alta – e que ganharam como nunca. No entanto, dado o poder político destas classes, aparece o impedimento de encaminhar uma taxação expressiva sobre eles. Acabar com o neo-liberalismo é sim acabar com a especulação financeira; é sim acabar com a diminuição do Estado; mas, fundamentalmente, acabar com o financiamento estatal através da predominância da dívida sobre os impostos. Só nessa linha estratégica pode-se conduzir o Estado a ser o orientador e o líder de um planejamento social que se sustente no investimento e que, por conseqüência, traga empregos. Sem isso, ficamos nesta ronda incendiária da crise dos bancos, da crise dos Estados (chamada apenas de dívida soberana) e de nova crise dos bancos, como está ocorrendo na Europa e se avizinhando nos Estados Unidos. O mundo só mudará quando os financistas, quando a sociedade, perceber que tem que alterar este modelo de acumulação financeira. A solução para os diversos países e os diversos capitalismos não é necessariamente uma incondicional presença do Estado, mas as finanças não podem fazer do poder do Estado, do poder coercitivo dele, um benefício exclusivo para si. É o conjunto de forças da sociedade, sem a ditadura de qualquer classe – a financeira, principalmente – que poderá levar o atual capitalismo a um novo estágio econômico, com uma política econômica que encaminhe e desenhe um novo padrão de acumulação. É importante levantar a asfixia do Estado.
A realidade é profundamente política. É na política que vai se resolver a mudança do modelo que falamos acima. Para isso, os financistas têm que se dar conta de que o seu modelo chegou ao fim. E eles estão com esta consciência? Sim, e não. Quando o Morgan Chase diz que, para as recapitalizações dos bancos na Europa, são necessários 148 bilhões de euros, ele está dizendo que houve uma queima enorme de capital. Quando se fala que os bancos estão “perdoando” as dívidas, também estamos falando de queima de capital. Quer dizer que todos esses planos de resgate de países e de bancos são a busca de quem vai pagar por essa queima de capital, de quem vai perder a corrida capitalista. E o que torna ainda mais violento e contundente a situação é que essa derrapada não se dá somente com empresas financeiras. Tal acontece igualmente com o setor produtivo, alcança o setor estatal (diminuição de funcionários e conseqüente diminuição da qualidade dos serviços, decréscimo do consumo do governo, inexistência de investimento público) e chega ao paroxismo com a população (diminuição de empregos, de salários, de aposentadorias, de assistência social). Meu caro amigo Franklin Cunha, é isso que está acontecendo com a Grécia, ela é o elo mais fraco do Ocidente: Estado bichado, receita caindo, impostos aumentados mas sonegados, queda de salários, desemprego público e privado, bancos em desgraça, indústrias quebrando. E é tão desastroso que o desastre grego se torna um desastre europeu e, talvez, americano, pois está contaminando bancos de outros países, e vai criar problemas para outros Estados. A chuvarada na Grécia vai levar tudo numa enxurrada. Parece a hora de todos os segmentos do planeta pensarem e negociarem um outro caminho. Já existe um, que é o da China. Mas o Ocidente ainda não demonstrou ter chegado a uma estratégia, a um itinerário.
E…
E tem solução para o Ocidente? Tem. Duas! Uma: a profunda anarquia: deixar o barco correr para ver o que sobra, que é a chamada solução de mercado. Uma solução prolongada e desastrosa. E a outra: a solução política que começa por negociar a recomposição do Estado, a impossibilidade de salvar todos os capitais, a necessidade de promover um bem-estar social de melhor qualidade, a visão da necessidade de fazer investimentos e proporcionar empregos, visando começar a reativar as economias, pois, isso também contamina. Para tal é preciso derrotar politicamente os que insistem em ganhar financeiramente à custa dos Estados, da especulação e em detrimento dos benefícios sociais, etc. E isso é uma luta profunda, uma batalha permanente e um desforço social imenso. Nesse objetivo, é preciso ter bem claro que o que importa são alguns aspectos decisivos. E quais são eles?
PARA ONDE PODEMOS IR?
Destaco agora aspectos decisivos para a mudança da economia. Cabe considerar os seguintes pontos:
1) os Estados tem que se proteger construindo barreiras – fiscais, financeiras e monetárias – ao furacão da crise. Devem estar sempre abertos para se encaminhar na direção do desenvolvimento produtivo e social. E não necessariamente financeiro;
2) a idéia política tem que ter um alvo seguro: transformar o modelo de acumulação, saindo do financeiro para o produtivo. E, nesse caminho, alterar o padrão produtivo de produção em massa – baseado na industria automobilística e regida pelo petróleo – para um novo padrão de acumulação, baseado na microeletrônica, na internet, nos novos materiais, etc. Está na hora de construir o padrão de acumulação sustentado pelas indústrias da informação e da comunicação;
3) a busca de tornar dinâmica a competição dos dois eixos, o americano e o chinês. Para tal, é preciso estabilizar a profunda instabilidade e desordem do eixo americano, principalmente, detendo a crise européia, impedindo-a de fazer um rebote sobre os Estados Unidos;
4) a consciência de que o processo continuará sendo capitalista, com profundas mudanças no produtivo, que, obviamente, alcançará a necessidade de transformação da finanças, passando para a geração de crédito à produção e confinando a especulação ao próprio setor financeiro. Com isso, impedindo que ele avance sobre a produção e sobre o Estado;
5) a necessidade de uma transformação profunda do Estado: controle democrático e Estado unitário (comandando o Ministério das Finanças e o Banco Central). Essas alterações seguem na construção de uma economia desenvolvimentista, com investimento indo à frente e com o emprego sendo fundamental. E, como conseqüência imperiosa dessa metamorfose, a nacionalização e estatização daquilo que o neoliberalismo capitalizou: educação, assistência social, saúde, e cultura. Essas políticas públicas deverão estar à serviço do país e da sociedade e não do lucro ou da imagem das empresas.
6) a necessidade de construir ou reconstruir instituições políticas que acompanhem e regulem a dinâmica de expansão do capital na ordem financeira e multinacional. Portanto, reformas do FMI, OMC, do Banco Mundial, etc., etc., para que estejam a serviço da coletividade. Essa tensão entre capital multinacional e Estado nacional requer ser projetada para pensar e executar soluções criativas, lógicas e dinâmicas. Considere-se o caso da Europa: há que ter um Estado político, um Tesouro Europeu, um Banco de Desenvolvimento Europeu, um Banco de Resgate Financeiro Europeu, acompanhando esse já criado Banco Central Europeu, que está só ligado às finanças.
O desafio é claro: ou o capitalismo avança – e os capitais mais frágeis serão destruídos ou aglutinados – ou ele atravanca o seu próprio desenvolvimento. E, com isso, poderá ficar à deriva por muito tempo. Isso se não fizerem besteiras, como as aventuras de guerra. Os pretextos estão aí, pululando, se oferecendo para os pensamentos mal cheirosos. E hoje, o panorama ainda é confuso. As finanças não têm projeto, a não ser quebrar Estados e bancos mais frágeis (os gregos, por exemplo) e fazer a população pagar. O seu projeto de futuro é não ter futuro. Por isso, que “Occupy Wall Street” avança. Essas manifestações populares com presença eletrônica ainda são muito tímidas, sem perfil político definido. Mas, estão aí. Já o capital produtivo está cindido entre o capital velho, que está mais para as finanças do que para um futuro; e um capital Steve Jobs, um capital Google, um novo capital para a área de comunicações que pensa, sim, numa outra sociedade. Será melhor? Ninguém sabe. As ameaças podem ser muitas. Mas, se o capitalismo sair, ele vai sair por esse canto. E o Estado pode ter futuro se se der conta de seu lado desenvolvimentista, mas também de seu lado social. E isso vai se decidir na luta política e social que está em curso. Como sempre digo a amigos: o mundo vai para o caos, mas para os cientistas sociais (economistas, sociólogos, politólogos, etc.), a realidade atual é sempre assustadora e inquietante, porém excitante e novidadeira. E o que se sente: o rio do futuro está forçando a ruptura das barragens do passado e do presente. Mas, por enquanto, só se vê esse passado indigesto da financeirização em ruínas.
* por Eneas de Souza, economista.