Muito do sucesso teórico do marxismo deve-se à tese de que o modo de produção, a economia, determina o modo como se vive e se organiza a vida social. Boa parte da hostilidade contra ele, também.
Seus adversários sempre usaram esta tese para condenar as ideias de Marx, atribuindo a elas, entre outras coisas, uma crônica incapacidade de compreender diversas questões tidas como mais relevantes: a liberdade, a autonomia da política e da cultura, o valor da democracia. Condena-se Marx, também, por seu amor pela revolução e por seu radicalismo, mas a principal frente de combate a ele sempre foi a da denúncia de seu determinismo.
Uma rápida passagem pelo noticiário cotidiano, porém, revela o quanto há de falsidade e hipocrisia nesta denúncia. Tudo passou a ser economia e a ser lido como expressão da economia. As diferentes nuanças da vida social, as aspirações populares, as disputas entre os partidos políticos, o desempenho governamental – tudo se converteu em derivação do econômico. Os mercados tornaram-se donos de nosso destino e modelam nossas instituições, condutas e expectativas existenciais.
Lutas e movimentos da sociedade civil são modulados pela dinâmica, pelas falhas gritantes e pelos malefícios da economia. Greves continuam a ser feitas sem a consideração dos prejuízos que causam aos que dependem dos serviços paralisados. Wall Street é “ocupada” para forçar instituições financeiras a reduzir seus excessos e a assumir a responsabilidade pela crise. Todos nos indignamos diante da voracidade com que o dinheiro invade a política, desvirtua os partidos e corrompe políticos e servidores públicos. Queremos reduzir o “custo Brasil” para aumentar a produtividade e pagar menos impostos. Imploramos por mais desenvolvimento e produção. Olhamos para 2014 e vemos a Copa estritamente pelos cifrões que serão gastos ou arrecadados com ela.
Estamos enredados nas malhas do mercado.
Aliviado de suas generosas dimensões humanistas, separado da dialética que o faz conceber a vida como uma totalidade histórica articulada, dinâmica e contraditória, esvaziado da ênfase no valor do trabalho e na capacidade de autodeterminação dos sujeitos, o marxismo foi assimilado como caricatura. Travestido em seu contrário, vaga pelo mundo capitalista atual. Todos se tornaram inconscientemente “marxistas”: passaram a achar que nada mais importa a não ser a voz dos mercados e que tudo que respira deve ser modelado pelo ritmo da economia. O economicismo tornou-se cultura da época. Temos à disposição teorias econômicas da democracia, do comportamento político, da religiosidade, da cultura e da personalidade. E os Estados parecem não ter outra meta a não ser a conquista do mercado mundial.
Há uma incomensurável distância entre o marxismo de Marx e este marxismo caricato e inconsciente que trafega por aí, quase como senso comum. A começar da ideia mesma de economia. Marx jamais a reduziu aos mercados ou à produção em sentido estrito. Sua teoria fala em economia política, em relações sociais de produção, e sempre afirma que é preciso ligar e articular a economia com capacidades sociais, instituições políticas, ideias e ideais. Não pensava que tudo derivava da economia, mas sim que a economia determinava em última instância o modo de vida, ou seja, admitia sem dificuldades que o modo de vida também reagia sobre a economia e a determinava. Não imaginava haver uma via de mão única ligando a economia ao resto da vida, mas sim, precisamente, uma interação dialética, em nome da qual seria possível conceber a liberdade e a autonomia dos sujeitos e, assim, pensar em maneiras de fazer com que a vida ficasse melhor e mais humana. Era esta a revolução radical com que ele sonhava, algo bem diferente da irrupção violenta e sanguinária dos trabalhadores contra o capital, que muitos a ele atribuem.
Olhando a realidade atual, nenhuma pessoa sensata pode dizer que Marx não estava certo. Ninguém pode negar que o mundo está torto e fora de controle por excesso de mercados e de economia.
Devidamente expurgado dos fanatismos fundamentalistas e dos excessos doutrinários que o contaminaram, o grandioso legado teórico e político do marxismo ainda é o melhor antídoto contra este rebaixamento geral da vida, contra esta maldição que ameaça até mesmo a busca da felicidade, ao convertê-la no prazer de consumir e de ganhar mais e melhores salários.
Claro, sempre será preciso dar a Marx o que é de Marx, ou seja, reconhecer seus limites e suas falhas, perceber a deformação que sofreram algumas de suas ideias, o mau serviço que prestaram quando foram convertidas em ideologia de Estado ou verdade política. Além disso, o marxismo é mais do que Marx, se completou, se deformou e se corrigiu ao longo do tempo, incorporando novas dimensões e novos conceitos. Foi assim que chegou ao século XXI.
A crise do marxismo está em boa parte determinada pelo economicismo extremado de várias das suas vertentes, que, paradoxalmente, transbordou no economicismo generalizado de seus adversários e que hoje comanda a vida. Nada indica que seja uma crise terminal. Passa-se o mesmo com o capitalismo, aliás. Sua crise atual tem componentes que a aproximam de uma crise sistêmica, da qual, precisamente por sua abrangência, podem emergir sociedades menos desiguais, menos produtivistas, mais humanas e generosas.
É sinal de bom senso e honestidade reconhecer os méritos e a vitalidade do marxismo. Na presente fase histórica, ele pode ser decisivo para que encontremos uma maneira de nos libertar da tirania dos mercados e do econômico. Como Marx diria se estivesse a ver o nosso mundo, é nos momentos mais difíceis que as grandes teorias mostram seu valor e sua utilidade. [Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 22/10/2011]