César Schirmer dos Santos
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Olha só que manchete: «Condenado a 278 anos por violentar 37 pacientes, médico que fugiu do Brasil graças a HC de Gilmar Mendes cometeu mais crimes».
A manchete deixa no ar que o acusado cometeu outros crimes após o habeas corpus, o que é falso. É uma maneira de colocar uma parte da culpa dos feitos do médico na conta do juiz, mesmo implicando que pelo jeito o juiz não burlou lei alguma. É uma maneira de espancar o Judas do judiciário.
Não sou nenhum fã do Gilmar Mendes, e também não me agrada sua decisão, nesse caso e no caso Dantas. No entanto, uma sociedade republicana como a nossa se apoia em princípios e leis impessoais. Mas, se há alguma lei que dê amparo à decisão do juiz, o lance é cobrar dos nossos deputados e senadores no parlamento, caso constatemos algum problema na lei − isto é, desacordo entre a lei e os princípios fundamentais que regem nossa sociedade. Se um habeas corpus dado de acordo com as leis parece problemático ante nossas intuições morais, ou se analisa o caso e sua descrição, ou se investiga as leis. Óbvio, se um juiz burlou uma lei, que ele responda por isso. Isso sim podemos exigir, seguramente amparados em regras. Caso seja preciso revisar as leis, o assunto é da alçada do legislativo. Assim sendo, supondo que a lei e os princípios foram seguidos, e que se não foram seguidos precisamos de processo judicial ativo ao invés de meras emoções reativas, não vejo nenhum motivo pra indignação com o juiz.
Indo do caso específico pra algo mais geral, o moralismo é um saco. Entendo perfeitamente a gurizada mais nova que não aguenta papos "de política" porque não têm estômago pra isso. Eles veem que muitos dos "politizados" confundem indignação-moralista-contra-o-Judas-do-dia com politização, e se afastam disso. A gurizada tá certa, os moralistas "politizados" tão errados. Com menos moralismo no ar, há mais chance da política se tornar algo interessante para essa gente nova que se interessa por jogos, os quais sempre têm regras.
Alguém poderia me acusar de insensibilidade para com as vítimas de Roger Abdelmassih, o beneficiado pelo habeas corpus expedido por Gilmar Mendes. Roger Abdelmassih é acusado de ter violentado 37 mulheres e de ter enganado uns 8.000 casais que queriam ajuda para gerar seus filhos biológicos, mas receberam filhos de outros pais. É claro que sou sensível ao drama dessas pessoas! No entanto, decisões judiciais não são linchamentos, e por isso devem se apoiar em leis impessoais, não em sentimentos íntimos e pessoais. Se nossas leis permitem que um acusado como esse saia da cadeia, renove o passaporte e fuja do país, ao mesmo tempo que sou tocado pelo drama pessoal das vítimas eu espero que o legislativo faça alguma coisa, nem que seja um debate e um esclarecimento sobre as leis acionadas, dado que a formulação de leis é da alçada do legislativo, não do judiciário.
A figura do juiz malvado e sem limites se tornou algo mítico, quase uma lenda urbana. Esse avatar da hybris é uma figura que revela algo sobre nós brasileiros enquanto moralistas indignados. O judiciário é o Judas perfeito pra quem quer curtir uma indignação reativa que não resulta em nada, a não ser em mais combustível pra mais indignação moralista. Em uma sociedade com instituições sólidas como a nossa, mudanças ativas e construtivas se dão via legislativo. Quando o assunto são as leis, quem quer mudança se dirige aos parlamentares (é o que fazem os lobistas!), quem quer um saco de pancada fácil se dirige ao judiciário. O judiciário é um boneco perfeito pra quem quer um alvo sempre aí pra tomar porrada, pois o judiciário não tem poder algum de alterar as leis, o que o deixa imóvel e sem defesa. Pof! Pow! Cabum! Iáaaaaa! Moleza. Além disso, de maneira geral e difusa invejamos e logo odiamos a afetação, a vaidade e a futilidade de muitos advogados, e daí queremos dar vazão ao nosso ódio contra esses caras inteligentes e até pedantes que ostentam luxo vulgar. É uma catarse. É uma via pra liberar nossas emoções reativas reprimidas. Mas é algo ruim pra pensar claramente sobre nossas leis, e algo péssimo para avaliar nossos juízes.