O Partido Social Democrático anunciado pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, no último dia 21 de março nasceu com uma mácula difícil de ser apagada: ninguém o levou a sério ou tratou-o com algum respeito.
Veio à luz sob o signo da dúvida e da especulação. Afinal, o que pretendem seus criadores? Liberar o prefeito paulistano das asas protetoras do ex-governador José Serra, verdadeiro promotor da sua entrada no grande circuito da política nacional? Pavimentar o caminho para uma aproximação com a base governista no Congresso Nacional? Criar uma “terceira força” para combater a polarização PT-PSDB que domina a cena eleitoral? Ou tudo se limita a fazer poeira para cegar os transeuntes e colher alguns frutos mais à frente?
As interrogações poderiam se estender ao infinito. Se o plano for, por exemplo, estragar o pas des deux PT-PSDB, seria preciso esclarecer com que trunfos o partido acredita contar. Aqueles que o estão pondo de pé não são propriamente políticos carismáticos, não arrebatam multidões, não detém particulares atributos de liderança. Podem no máximo atrapalhar o jogo, a serviço de causas ainda mal esclarecidas, mas é discutível que consigam articular alguma opção que repercuta para elevar a qualidade do quadro partidário brasileiro. Tudo leva a crer que continuarão a flutuar numa zona pouco relevante, à espera de alguém que deles necessite e os promova.
A criação do PSD não se ajusta a nenhuma consideração criteriosa do sistema político brasileiro. O país voltou a falar em reforma política, e agora de modo mais sensato, menos apocalíptico. Cresceu o consenso de que algo pode ser feito para melhorar o sistema representativo e a maneira como as forças políticas disputam eleições, chegam ao poder e governam. Para o nascente PSD, nada disso merece consideração: ele se lança não para racionalizar o quadro, mas para complicá-lo um pouco mais. Funciona como uma câmara de eco: o que está ruim terá em mim sua mais perfeita tradução.
Não temos déficit de partidos. Eles existem aos montes, deprimidos ou eufóricos, em crise alguns, inexpressivos ou fisiológicos outros, quase todos manchados por algum tipo de imprecisão, vazio doutrinário ou incoerência. O excesso de partidos não é por si só um problema. Pode mesmo ser visto como uma virtude, expressão de um sistema aberto, democrático, competitivo. No Brasil, eles são muitos, mas só alguns poucos realmente contam. Com isso, a mixórdia de siglas acaba por confundir os eleitores e empurrá-los para a indiferença. Em sua maioria, os partidos representam pouco, não fornecem parâmetros valorativos para a cidadania, nem conseguem dizer o que pretendem e como farão para dar vida às suas pretensões. São organizações frágeis, sem magnetismo para manter agregados um punhado de seguidores e parlamentares que, em tese, se associaram por ter convicções parecidas e querer coisas parecidas. Não foram feitos para isso, e não há fidelidade partidária que possa corrigi-los.
Se há algo de que não se necessita no Brasil é de mais um partido tapa-buracos, sem caráter programático, concebido para acomodar pretensões eleitorais tópicas e estratégias políticas imprecisas.
Pois o PSD nasceu respingando isso por todos os poros. Nele cabe o mundo, exceção feita aos desafetos. Comunistas, ou quase, como o ex-delegado e deputado federal Protógenes Queiróz, socialistas do PSB, tratados como irmãos de estrada, liberais, conservadores, desenvolvimentistas, aliados ou companheiros da presidente Dilma, bem como apoiadores e assessores do governador Alckmim. O PSD nasce “independente”, mas sua independência é condicionada: está disposto a ajudar o governo federal e a honrar uma “aliança” com o governo de São Paulo, além de permanecer, firme como uma rocha, ao lado do ex-governador José Serra. Para ele, oposição e situação não são coisas para se levar a sério, deve-se mesmo transitar de uma a outra sem arrependimento. Idem com o programa partidário, que deve abarcar o que for mais útil, atraente e oportuno no momento, do direito de propriedade à modernização das leis trabalhistas, passando por outras tantas platitudes.
A flexibilidade do novo partido é radical, tanto quanto sua generosidade retórica: “Viemos para ajudar o Brasil a crescer. O PSD é um partido que nasce do povo, com o povo e para o povo brasileiro”. Deseja ocupar um espaço etéreo, acima de diferenças entre esquerda e direita, coisas que nem existiriam mais. Seu interesse é ser “o partido que vai em frente”, ciente de que o país é “maior que as siglas partidárias”.
O lugar a ser ocupado pelo PSD, portanto, seria uma espécie de terra de ninguém que abrigaria a todos os que se sentem predestinados a ter relevo na política nacional. Um desaguadouro dos que querem manter equidistância de posições tidas como polares e antitéticas, uma plataforma de onde atrair trânsfugas e incomodados variados, flertar com os poderosos e jogar o jogo do poder. Se chamarem a isso de centro, devemos desconfiar. Não se trata de um centro, mas de um nada.
O ato de criação de um partido político deveria ser saudado como um movimento para emprestar clareza, dignidade e substância à representação política e às disputas eleitorais. O surgimento do PSD não vai nessa direção: é algo feito por políticos para políticos e em nome de conveniências políticas menores. Não diz respeito à sociedade e aos cidadãos. Sendo assim, destina-se a ter vida curta, ou marginal.
O prefeito Kassab não é dono exclusivo da iniciativa. Está acompanhado por políticos que com ele compartilham projetos de poder, interesses e trajetórias. São políticos que já vestiram muitas camisas e se vincularam a siglas, lideranças e projetos diversificados, nem sempre coerentes entre si. Não devem ser condenados por isso, mas não há como converter o trajeto que seguiram e as opções que fizeram em exemplo de conduta. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/03/2011, p. A2).