A Itália das mulheres enfrenta o machista Berlusconi

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  • segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
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  • Grosseiro, exibido, bufão, machista, mal-educado e, como se não bastasse, fascista de estilo e convicção. Silvio Berlusconi não é certamente um desconhecido. Atual chefe do governo italiano -- cargo que já ocupou diversas vezes ao longo dos últimos 17 anos --, mega-empresário do setor de telecomunicações, político influente e uma das poucas lideranças capazes de dar viabilidade à confusa e ameaçadora direita italiana, trata-se de uma personalidade que ganhou visibilidade inédita no mundo todo. Berlusconi tornou-se famoso pela inacreditável capacidade que demonstrou de desmoralizar e fazer pouco de uma das grandes tradições políticas do mundo ocidental.
    A Itália depois dele assemelha-se ao que sobrou do Império Romano depois de Nero. Exageros à parte, claro.
    A imagem que o mundo tem de Berlusconi deriva de sua conduta governamental, marcada por um personalismo exacerbado e por ações administrativas repletas de corrupção e ineficácia, que contribuiram bastante para travar e empobrecer a sociedade italiana. Tratar-se-ia de uma figura entre o folclórico e o patético, não fossem o clima de violência política que prevalece entre seus seguidores e, mais recentemente, suas próprias perversões como homem privado, relatadas por garotas de programa contratadas para animar as orgiásticas festas por ele patrocinadas.
    Berlusconi acostumou-se a circular pelos ambientes italianos munido de um lote de piadas e gracejos ultrajantes, quase todos de fundo machista. Dá prá imaginar o primeiro-ministro de um país sério que se vangloria de dizer em público que "o famoso ponto G está no "g" de shopping: é fazendo compras que as mulheres gozam"? É uma de suas pérolas.
    Arrastado por uma onda de denúncias e revelações sórdidas, Berlusconi foi mais uma vez levado aos tribunais, acusado de abuso de poder e exploração sexual de menores. Deu de ombros, com desfaçatez:  "Por amor à patria não falo dessas coisas. Somente posso dizer que não estou de modo algum preocupado". Não teve como permanecer indiferente, porém, ao protesto de centenas de milhares de mulheres que saíram às ruas em diversas cidades italianas, nos dias 12 e 13 de fevereiro,  para exigir sua retratação, sua renúncia, sua condenação. A palavra de ordem predominante foi "se não agora, quando?", direcionada para exigir "mais respeito pela liberdade e pelos direitos das mulheres". Berlusconi acusou as manifestantes de subversivas a serviço da esquerda, valendo-se de um velho chavão antidemocrático.
    Alguns dias depois das manifestações, fiz uma pequena provocação em meu mural do Facebook: "Vocês, amigos, que sabem tanta coisa e têm muito mais informação do que eu, por favor me expliquem: como é possível que a "pequena Itália" (mafiosa, provinciana, "cafona", protofascista) consiga se sobrepor à Itália de Maquiavel, de Gramsci, de Bobbio, dos partigiani, do PCI e da democracia progressiva e dar sustentação a um tipo como Berlusconi? Ou não é nada disso e estou me angustiando à toa?"
    Uma animada mesa-redonda se seguiu. Vistas em conjunto, as intervenções me parecem muito interessantes. Reproduzo suas melhores partes abaixo.
    Adami Campos: hoje, lendo os jornais, me fiz a seguinte indagação: será que não há nada de bom que mereceria estar nessas páginas? Confesso que me senti angustiado também. Continuei a pensar sobre isso e cheguei a ideia de que a Itália do Bobbio não perde para a do Berlusconi, ela apenas não é publicada. Feitos importantes, valorosos e especiais não são divulgados como os que denigrem, prejudicam e deterioram o coletivo social.

    Alexandre Caetano: Mas a Itália também foi já foi a do fascismo de Mussolini, farol para os regimes autoritários das décadas de 20 e 30, inclusive o nosso Vargas, com sua estrutura sindical corporativa, que resiste até os dias de hj.

    Andre Siquinelli Nakane: Também não entendo como Berlusconi consegue há tanto tempo estar a frente do governo italiano.

    Luiz Eduardo Motta: Desde o fim do PCI e da Democracia Cristã a Itália não foi mais a mesma no cenário político que marcou inúmeras gerações de intelectuais e políticos.

    Gera Di Giovanni: O combustível dessa história é a mentalidade do" homem médio italiano, o "uomo qualunque": machista, racista e fascinado pelo poder. O cafajeste é um pouco (ou muito) isso aí.

    Carlos H Brito Cruz: Enzo Janacci diria: Penso che sia perché ci sono stronzi in tutti i paesi, Ohh yeah.

    David Campos: Acredito que a resposta está em uma vertente da Sociologia desprezada por alguns - o culturalismo...

    Gera Di Giovanni: David dá uma boa dica. A escolha popular, por meio de eleições diretas ou lista, revela tb uma face da construção de identidades. No caso italiano, a ascensão da nova direita começou nos anos 1990, com o renascimento gradual e seguro do fascismo aggiornato ( Lega Nord, Bosi, Fini, neofascismo). Além das ações políticas coordenadas e eficientes, foram-se criando, aos poucos, oposições simbólicas aos imigrantes, às esquerdas, às instituições do stato sociale, que resultaram numa visão de mundo e num forte núcleo de poder conservador e retrógrado. Berlusconi, é um dos ícones dessa simbologia e desse núcleo de poder . Talvez o mais conspícuo.
    Vanessa Dias: Não esqueçamos que Gramsci morreu no cárcere da Itália fascista. Se existe uma "Itália de Gramsci", o inverso é também verdadeiro, ou seja, existe nas entranhas do país, malgrado a "evolução" histórica, uma cultura fascista latente que dependendo da conjutura, pode emergir de formas diversas. Observemos o que está acontecendo na Europa como um todo para entender a aprovação de Berlusconi em particular. Aí, tudo começa a fazer sentido.
    Jose Claudio Berghella:  Arrisco um palpite. A Itália sempre teve um comportamento profundamente conservador. O lado progressista italiano sempre foi minoria eleitoral apesar de sempre ser a maior expressão ideológica. Ganha na "política" e perde nos votos. Já há alguns anos a Itália é basicamente uma sociedade calcada no "italiano médio" que é, em geral, regionalista, dialetal, pequeno empreendor familiar ou pequeno empregado, clássico evasor fiscal, sonha em ter uma amante, absenteísta, furbo, inculto, conservador e profundamente camorristico. Vivem num mundo fechado de seu comune e reproduzem os valores locais. Vivem nas cidades porém não têm o sentido do urbano capitalista. Diferentemente do eleitor à esquerda, este tipico italiano, quando é chamado a votar, vai e vota (a esquerda tem perdido para a abstenção dos seus eleitores). Berlusconi é de certo modo o alter ego desta gente. A grande tarefa que Berlusconi fez nas diveras vezes que esteve no poder foi introduzir no Estado italiano esta concepção como parte das políticas públicas. É a forma camorristica de ser. A camorra, diferente do sentido mafioso, hoje se configura como forma de ser do Estado. Berlusconi é a garantia disso. Creio que a Itália, como outras nações entre as quais incluo o Brasil e a gestão petista, é a expressão evoluída de relações neofascistas de poder num novo tipo de corporativismo e na subordinação e reprodução de partidos e classes ou segmentos sociais sob o manto do Estado. Não há quase mais sentido em se falar de diferenças entre público e privado na medida em que grande parte do "privado" só é capaz de sobreviver e se reproduzir via mãos e direção do Estado. Este tipico italiano diz abertamente: só sobrevivo na minha atividade porque faço evasão fiscal. Berlusconi simboliza isso. É seu semelhante. Tanto quanto Lula, Chavez, Correa, Lagos e outros tantos. Não podemos nos esquecer também que hoje a classe operária que não chegou ao paraíso vota com a direita. Vota na segurança contra a crise, a imigração, a modernização do parque fabril (vide crise da Fiat). Acho que sua angustia é correta.

    Se observarmos a Itália quotidiana uma coisa é evidente: a unidade italiana nunca existiu.A unidade italiana foi feita de cima para baixo. A sensação que se tem ao observar a Itália do di-a-dia é que este conceito de unidade foi mais uma imposição, mai
    s uma invasão. E há resistências. Cada região, cada provincia, cada comune faz sua própria leitura do que significa "ser Itália". Por paradoxal que possa parecer, o italiano não é a lingua nacional senão formalmente. Isso faz da Itália uma somatória de diversos, e não unidade, cujo eixo báisco de conduta é resistir, conservar e reagir. Nisso se organizam as "direitas". Basicamente no particular, no átomo. Gramsci foi o primeiro pensador italiano a ter esta percepção e a falar em unidade italiana de fato. Mussolini tinha plena consciência disso e nunca teve a ilusão de que pudesse fazer na Itália uma direita italiana. Preferiu sempre ser o ponto de convergência das "direitas" divididas, segmentadas e regionalizadas. Penso que o mais evoluído projeto de unidade italiana foi o patrocinado pelo pensamento de esquerda dos velhos socialistas até mais recentemente o PCI. Berlusconi é a única expressão simbólica capaz de dar unidade à direita italiana e falar em nome da Itália. Penso também que não é por puro acaso que ele se veste, age e usa todos os simbolismos do Duce. Sem ele a direita italiana tem problemas para construir um bloco coeso e unitário capaz de controlar equilibradamente os difusos interesses das "direitas" italianas que são cônscias de que sem o "novo estado corporativo" (profudamente camorristico) têm dificuldades reais de se reproduzir como força econômica e política. Nunca Gramsci teve tanta razão.
    Gera Di Giovanni: Não foi Garibaldi quem unificou a Italia, foi a televisão em 1950! Nessa data, só 40% da população falava italiano, tà?
    Jose Claudio Berghella:  Gera tem grande razão. Foram alguns fatores que deram à Itália um pouco de italianidade (se posso inventar este termo). A TV foi uma, bem como o radio, o cinema e os meios de comunicação em geral, principalmente os jornais de alcance nacional. Nisso também jogou papel importante o movimento operário e sindical e parte dos movimentos sociais (o movimento feminino e os movimentos populares). Não nos esqueçamos contudo do importante papel desempenhado pelo fascismo em fazer a reforma da lingua e impor o italiano como lingua nacional. Nisso teve relativo papel o poeta D´Annunzio (aliás péssimo poeta), um dos ideólogos do fascismo. A Itália é basicamente o pós-guerra, Plano Marshall, muita grana americana e também à direita (moderada) os democratas cristãos e a Igreja.

    Quando falo de que a "unidade italiana nunca existiu" falo não no sentido de um Estado-nação conformado constitucionalmente, mas sim naquele sentido gramsciano de unidade através da cultura, de identidade nacional e de existencia quotidiana. Por incrível que possa parecer, o vocabulário médio de um italiano (tipico medio) é extremamente reduzido se comparado à quantidade de palavras que usa do seu dialeto. O dialeto é uma forma de resistência a uma lingua estrangeira e pode parecer exagerado mas o italiano como língua foi uma imposição da propalada unificação garibaldiana. Lampedusa foi brilhante quanto a mudar sem mudança.Claro que dos reinos, das repúblicas e dos estados pontíficios do ottocento até hoje a Itália deu passos enormes e importantes no sentido da unificação. O mundo velho contudo resiste. O "iluminismo" moderno italiano de amplitude universal e universalizante esteve sempre muito próximo ao pensamento progressista (onde se incluem várias tendências da Igreja), liberal e de esquerda. Não é por acaso que no imaginário do tradicionalismo italiano a "esquerda" (todo movimento progressista) é alcunhado como radical. Isso a meu ver se explica um pouco diante do fato de que a revolução italiana não foi patrocinada como a francesa ou inglesa por uma burguesia revolucionária.
    Luiz Carlos Azedo: Foram tantas as invasões bárbaras.... Lembro do livro Passagens da Antiguidade para o Feudalismo, de Perry Anderson.
    Muito esclarecedor sobre certas coisas que acontecem entre as nações da Europa...e também sobre o mosaico étnico-cultural italiano. A propósito, a Europa vive uma crise de identidade cultural na qual a questão étnica é central.

    José Renato Campos Araújo:  Estudei a imigração italiana em SP, e uma das coisas que mais me chamou a atenção é que para parte de nosso senso comum o imigrante italiano era sinônimo de movimento operário, anarquismo e algum tipo de vanguarda. Sem dúvida, os oriundi foram fundamentais para nosso movimento operário, mas sempre foram minoria no grupo italiano. O homem médio italiano, para citar o Gera, era fascinado pelo Fascismo e os comendadores galhardeados por comendas fascistas. Quem acompanha as notícias da Itália não deveria se surpreender pois o tráfico de mulheres com a paupérrima Albânia é uma realidade, o sequestro de meninas do outro lado do Adriático e a perseguição aos imigrantes são coisas que imperam na realidade italiana há bastante tempo. Quem conhece Nápoles (que faz o morro do Alemão parecer um convento) e outros lugares da Itália verá que a Itália pequena é enorme e majoritária, infelizmente.....Adoraríamos que fosse o contrário, mas a história da Itália é bastante ilustrativa deste momento.
    Renato Perissinotto É que a "Itália pequena" é enorme.
     
     
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