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Traveling Without A Human Made Passport by Fania Simon |
No momento em que o país chora, estarrecido, a morte de centenas de pessoas engolidas pelas chuvas e pelos deslizamentos, pode parecer descabido discutir o uso indevido de passaportes diplomáticos por círculos próximos do poder.
A vida, porém, é assim. Dura, implacável, combina sem avisos prévios a tragédia e o ridículo, o drama e a comédia. A virtude de uma boa República também está em saber conviver com essas múltiplas faces, respondendo adequadamente a seus desafios e manifestações.
Se os mortos tragados pelas chuvas revelam a força da natureza e o despreparo do poder público para administrar situações que se repetem há décadas, o caso dos passaportes mostra bem uma das dimensões mais cínicas e sutis do poder como tal.
O passaporte diplomático é concedido basicamente a presidentes, diplomatas, ministros de Estado, militares em serviço, governadores e membros do Congresso Nacional. Trata-se de um documento restrito, de uso extremamente seletivo. Segundo cálculos do Itamaraty, seriam 6 mil as pessoas com direito a ele. O número cresce com os casos de excepcionalidade, quando a concessão fica a critério do ministro das Relações Exteriores.
Que sentido pode haver em portar um documento diplomático quando não se é diplomata, ministro, presidente ou militar em serviço?
Representantes do Estado podem necessitar, quando viajam, que alguns parentes o acompanhem e tenham certas facilidades. Podem desejar, por exemplo, aliviá-los do desconforto de uma fila ou das medidas de segurança em aeroportos, muitas vezes vexatórias. Talvez precisem disso para ganhar tempo. É um procedimento razoável, desde que seguido com critério.
Quando a emissão de passaportes especiais alcança números elevados, é porque algo fugiu do controle e já não se tem mais limites éticos consistentes. A prática passa então a ameaçar o próprio instituto, respingando na República.
Se parlamentares, funcionários públicos comuns, filhos, netos e cunhados de pessoas poderosas passam a dispor de privilégios que acompanham determinados cargos de representação, é porque querem usufruir de algo que não lhes é devido. Em poucas palavras, querem ser tratados de modo especial, diferenciado. Pode-se até aceitar que façam isso sem malícia, por acharem que o dom é lógico, automático, legítimo – não desejam se beneficiar, mas somente fazer cumprir o que julgam ser um “direito”. Nesse caso, não estariam a contribuir conscientemente para pôr em perigo a República, ainda que de fato o estejam fazendo. Não são, porém, inocentes. E, ao fim e ao cabo, quando informados, deveriam devolver os documentos, pedir desculpas e cortar qualquer insinuação.
Um passaporte diplomático concede antes de tudo vantagens operacionais. Dispensa seu portador de obrigações rotineiras para todos os cidadãos, faculta-lhe o acesso a certos espaços e ambientes. Um diplomata ou alguém a serviço do Estado pode perfeitamente necessitar disso, estendendo o benefício a familiares que eventualmente o acompanhem nas viagens.
Mas o passaporte diplomático também traz vantagens simbólicas. Transfere para seu portador uma imagem, um status, um prestígio, empresta-lhe a sensação de superioridade, impulsionada por certas cortesias que distinguem. São privilégios pequenos, quase inexpressivos, mas que valem alguma coisa no mundo de espetáculo e exibicionismo em que vivemos.
Está certo o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), quando observou que há assuntos "mais importantes" a serem tratados no País. Em seu afã de salvar a pele da Casa que pretende continuar a presidir, apressou-se em esclarecer que “os outros Poderes gozam exatamente do mesmo benefício”, ou seja, que a falta de discernimento é generalizada. Tem razão, mas o tema dos privilégios não pode ficar fora de uma pauta republicana. Não derruba governantes, não define o caráter dos governos, não tem peso e densidade para ser tratado como se fosse o principal eixo moralizador da vida pública. Trata-se, no entanto, de um tema que nos ajuda a entender a cultura política prevalecente, o modo como as autoridades governamentais pensam sua relação – sua distância e sua proximidade – com a cidadania e procedem na gestão das coisas públicas. Se deixado ao léu, não destruirá a República, mas poderá impregná-la de hábitos espúrios, que com o tempo se converterão em lama e detrito.
Procedeu bem, portanto, o Ministério de Relações Exteriores quando anunciou que pretende “tornar mais criteriosa” a concessão de passaportes diplomáticos. Não foi uma reação isolada ou motivada exclusivamente pela consciência do ministro Patriota. Com ela fez coro o Ministério Público Federal, que orientou o Itamaraty a analisar todos os passaportes concedidos nos últimos 4 anos e tomar providências num prazo de 60 dias.
Não se sabe se e como isso será feito, mas o mero gesto já é eloqüente: confirma que abuso há e que não se deve conviver com ele. Não é muita coisa, mas pode ser o início de uma nova fase. [Publicado no caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 16/01/2011, p. J3].