Ao apagar as velinhas de mais um aniversário, a cidade de São Paulo pode estar ganhando um presente inesperado. Nada extraordinário ou especial, mas nem por isso menos interessante.
Calçada do povo, by Eduardo Souzacampus
Na regulamentação para 2011 da Inspeção Veicular Obrigatória, introduziu-se uma novidade. Agora, além da verificação da emissão de poluentes e de itens de segurança como freios, pneus e faróis, será também auferido o ruído dos motores.
Ainda não dá para comemorar. O teste medirá o ruído com o veículo parado e “segundo a percepção auditiva e a experiência do inspetor”. Não há, portanto, garantia de que tudo será devidamente ponderado e auscultado. Seja como for, é um começo.
A poluição sonora deveria entrar na pauta urbana. O ruído acompanha a marcha do progresso industrial e da concentração humana nas cidades, o que incluiu a batalha pelo silêncio na plataforma de lutas pelo avanço e pela consolidação da própria idéia de civilização. Ser civilizado seria, assim, ser urbano: polido, educado, não-invasivo, discreto, silencioso, responsável, participativo. Como na origem dos tempos, aliás, quando a polis grega foi traduzida na civitas e na urbe romanas, ampliando e entrelaçando seus significados. Palavras como política, cidade, urbanidade, civilização e civismo vieram daí. Cidadão tornou-se o indivíduo com direitos e deveres de cidade, isto é, referidos não somente ao espaço físico mas também aos espaços públicos, compartilhados em comum com todos os habitantes.
O índice de barulho reflete o padrão de cidadania de uma comunidade e o silêncio funciona como requisito para uma vida mais justa, igualitária e de melhor qualidade, que são precisamente as grandes promessas da civilização. Uma República de cidadãos não cria barulhos superlativos, desnecessários, por sobre os ruídos inevitáveis.
As metrópoles do mundo contemporâneo vivem à procura de silêncio. As mais antigas, sem tantos desníveis sociais e impregnadas de cultura pública, conseguem preservar padrões consistentes de convívio e privacidade. Nelas, são muitos os nichos onde há condições sonoras adequadas para a conversa e o repouso. Outras, como São Paulo, que além de novas são também um compósito de formas arcaicas e ultramodernas de vida turbinadas pela miséria e pelo crescimento selvagem, vivem oprimidas pelo ruído, que se converte em fator de risco para a saúde e a convivência.
Não há paulistano que não se incomode com ele. Muitos sofrem sem saber, sem se dar conta de que o barulho invade silenciosamente o sistema nervoso de cada um, desmonta equilíbrios, afeta a audição e o bom humor, perturba o sono e trava a comunicação. Alguns reagem, ora com indignação, ora com violência, quase sempre com a sensação amargurada de impotência. Nada parece deter o ruído crescente.
Barulho intenso, sistemático e abusivo é um sintoma de ausência de regulamentação. Em São Paulo, o poder público não só é omisso na fiscalização dos barulhentos, como dá maus exemplos o tempo todo. O caso dos ônibus paulistanos é emblemático: velhos, sujos, sucateados, são poderosos agentes de poluição sonora. Roncam e guincham pelas ruas da cidade como verdadeiros arautos do apocalipse. O poder público, além do mais, assiste passivamente ao passeio dos caminhões pesados. Só consegue impor restrições inócuas, muitas vezes não respeitadas. Para piorar, não é criativo nem ousado em termos de política de transportes.
À falta de regulamentação soma-se a falta de educação de muitos cidadãos. Ninguém a rigor importa-se muito com o sossego alheio. Excitados pelo frenesi urbano, os motoristas transformam seus carros e motos em armas contra a vida e o silêncio. Exibem-se uns para os outros o tempo todo, em alto e bom som, como se fossem os únicos donos da cidade. Em casa, exibem sem pudor a potência acústica dos eletrodomésticos. O volume alto é regra na cidade. Os moradores parecem surdos ao problema.
Inexistem campanhas específicas ou mobilizações dedicadas ao assunto. Também não se conhece qualquer vitória conseguida contra a poluição sonora. O máximo que se obteve, até agora, foi o crescimento das empresas fornecedoras de portas e janelas acústicas, ou seja, o aparecimento de novos negócios e de alguns recursos defensivos, que não atacam a raiz do problema.
É em condições razoáveis de silêncio que se pode ter vida inteligente. Ler e escrever, aprender e ensinar, dialogar e refletir. É no silêncio que se pode descansar. Nada a ver com a paz dos cemitérios, porém. A cidade civilizada reclama o silêncio democrático, no qual tem lugar o ruído das massas e das festas populares, do frenesi da política e das vibrações esportivas. A cidade brasileira, em particular, é alegre, comunicativa e espontânea. Não pode ser cerceada em seu caráter. Que continuemos a ser irreverentes, festeiros, improvisadores, amantes da música, da dança e da batucada, sabotadores criativos das regras tirânicas ou artificiais.
O motorista que buzina alucinado, o ônibus que trafega com o escapamento estourado, o motoqueiro que extrai o máximo de sua moto, a construtora que bate estacas em horários obscenos e o adolescente bem-nascido que barbariza seu prédio não têm relação alguma com o “caráter nacional”. Não são exemplos de espontaneidade e alegria, mas de má-educação. Expressam uma coletividade que perdeu consciência de si mesma, que está se tornando indiferente e pulverizada em ilhas de individualismo possessivo. São deformações e caricaturas perversas de uma cultura fundada na informalidade excessiva, produtos da modernização desregrada, excludente e predadora em que vivemos.
O ruído que vem com o progresso não é uma fatalidade, pode ser domado e civilizado. São Paulo tem potência para tanto. Precisa, porém, traduzir essa potência, convertê-la em cidadania ativa, único fator que pode efetivamente atuar como força propulsora do silêncio democrático, inerente à cidade republicana. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/01/2011, p. A2]