Há ou não uma teoria política no PT?

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  • domingo, 9 de janeiro de 2011
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  • Maria Errani (Etiopia, 1940), Cosmo
    Na virada do ano,  só pra provocar, postei uma questão no Facebook:  existe uma teoria política a embasar a ação governamental de Lula e do PT? Se sim, qual é ela e onde está exposta? Se não, por que não?
    Para minha surpresa, houve grande reação e repercussão. Muita gente leu, curtiu, e diversos amigos comentaram o post, acrescentando considerações extremamente pertinentes e esclarecedoras, que sugerem uma agenda de pesquisa aberta para os próximos anos.
    Reuni parte dessas intervenções aqui no blog, pois acho que elas, lidas em conjunto, podem incentivar a que outras pessoas explorem a questão e a que a discussão prossiga.
    Como disse meu amigo Rogério Baptistini na primeira resposta à postagem inicial, “a questão é excelente para uma tese acadêmica. As repercussões políticas dela são óbvias e justificam a realização de uma pesquisa”. Independentemente disso, creio que ela pode nos ajudar a pensar o Brasil dos dias atuais.
    Reproduzo as intervenções em estado bruto, sem editá-las. Como não pedi autorização a ninguém, espero que os autores não se sintam mal ao encontrarem seus textos aqui. Mas o Facebook é algo público (até demais) e tudo o que está lá está imediatamente ao alcance de todos. Além disso, os autores são intelectuais públicos militantes, dispostos sempre ao diálogo e à discussão.
    Vamos lá.
    Rafael Faria: É uma questão difícil pra um final de ano. Mas deixo aqui algo interessante, principalmente pela data em que foi escrito, do Perry Anderson. Em 2002 o historiador inglês, no plano econômico, notava: “De modo geral, porém, nem o PT nem o presidente eleito têm qualquer alternativa pronta para opor à ortodoxia reinante, como deixa clara a imediata adesão deles à diretivas do FMI”. Agora, mais interessante ainda é a preocupação de Anderson, no plano político, com uma sobrestimação da figura do Lula: “A cultura brasileira é sentimental e cínica, e neste momento a mídia está se fartando de divulgar informações biográficas sobre o presidente. O exemplo de Lech Walesea deveria bastar como aviso contra os excessos nesse departamento. Isto posto, não deixa de ser verdade que Lula personifica uma experiência de vida popular e um registro de luta social e política de baixo para cima inigualado por qualquer outro governante no mundo atual. Além disso, por trás dele está o único partido de massas novo a ter sido criado a partir do movimento sindical desde a Segunda Guerra – um partido que em termos de números, influências e coesão não tem igual na América Latina. No entanto, Lula recebeu o dobro de votos dados ao PT – que corre o risco de ser acentuado pela Presidência reforçada. Mas a combinação de Lula e PT ainda é muito forte”. E continua: “Muito mais que na Itália, que lançou o conceito para o mundo, o Brasil é por excelência o país do ‘transformismo’, a capacidade que possui a ordem estabelecida de abraçar e inverter as forças transformadoras, até que fica impossível distingui-las daquilo que se propunham a combater. É o lado sombrio da cordialidade brasileira. O ‘paz e amor’ é, por antecipação, um vocabulário de ingestão e derrota”.
    Alexandre Curtiss Alvarenga: Primeiro - antes de ler o que já foi postado - pensei em responder assim: é uma questão que deve cobrança aos intelectuais orgânicos do próprio PT. Sei que é tranquilamente legítimo que intelectuais de outras procedências e tradições façam suas interpretações e julgamentos. Mas há uma diferença - crucial - nos esforços de uns e de outros. Uns são “cobrados” para demonstrar e garantir algo como “competência”, resultados. Muitas vezes quem critica não tem esse ônus, a crítica é como um “ensaio” (enquanto gênero, modo de raciocínio).
    Retornando então: os intelectuais do PT têm essa teoria política a fundamentar o acontecido? O PT tem publicações, escolas de formação, intelectuais que formulam idéias e atuam. Seria o caso de fazer o levantamento das teorias que embasam esses núcleos e essas pessoas.
    Depois de ler o que já se postou, acho que pensei outras coisas. Perry Anderson vem da tradição marxista e aparece como um dos "críticos" que podem apontar defeitos, mas não vão 'pagar' por eles, nem se o diagnóstico apresentar erros - a não ser dentre pares e na comunidade acadêmica, onde pode sofrer um processo de desqualificação. Aqui a questão ganha uma perspectiva distinta, mais 'metodológica'. Teorias existem "prontas" para diagnosticar realidades e dar diretrizes, ou teorias são práticas de entendimento e, daí, crescem “no confronto com a realidade social"? Neste sentido, o PT estaria, também, “aprendendo” a construir realidades e não teria lá muito bem "uma" explicação a priori para seus “rumos” e decisões tomadas. Alguma base - os princípios -, mas também muita contingência (até porque não se pode esquecer que o executivo age sob pressão, desqualificação constante, sabotagem - além de suas próprias limitações históricas e genéticas).
    Por fim, a pergunta toma o PT como referência, mas o que se questiona vai muito além e poderia ser uma colocação “prá cima” também do que restou de comunistas e/ou marxistas por aí. Ou seja, a política “hiperrealista” praticada hoje tem mesmo que se conformar com horizontes curtos, e daí os políticos estão fadados a administrar o capitalismo capenga "naquilo que for possível"? Ou há no horizonte uma “alternativa” colocada? Uma superação do capitalismo - muito cantada, mas... E aí entramos numa bibliografia muito explorada pela editora Boitempo...
    Cláudio Gonçalves Couto: Essa me parece uma pergunta que faz pouco sentido para o PT, embora fizesse muito sentido para os partidos comunistas. Esses, de fato, tinham uma teoria (por vezes, apenas uma mesmo, oficial), de modo que seria relativamente simples deduzir sua aplicação a uma experiência prática de governo, ou da vida partidária como um todo.
    Em algum momento no final dos anos 80 (ou seria no começo dos 90?), Carlos Nelson Coutinho questionava justamente isto: a falta de uma teoria que embasasse a ação política do PT. Mas seria difícil demandar tal teoria de um partido que já era à época (na verdade, desde sua fundação), e é ainda hoje, um grande conglomerado de forças sociais e políticas, além de reunir intelectuais de diferentes matizes teóricos e ideológicos, todos a formular e propor suas próprias diretrizes (talvez não teorias) para a ação política.
    Ou seja, no PT havia sindicalistas pragmáticos sem qualquer preocupação ideológica, leninistas variados, trotskistas múltiplos, social-democratas, socialistas liberais, liberais de esquerda, socialistas cristãos, ambientalistas etc.. Seria possível formular diversas teorias a partir daí, mas dificilmente uma teoria. Os documentos oficiais do PT, em particular aqueles produzidos nos Congressos do partido, procuravam contemplar essa diversidade, ponderada pelo peso das diferentes correntes e, dentro delas, das diversas lideranças. Nunca me esqueço do Primeiro Congresso do PT, em 1991, que assisti in loco numa pesquisa para o Cedec. Houve uma discussão muito interessante e acalorada sobre a questão da luta armada como via para o socialismo. Como o acordo era difícil, foi-se à votação e o encaminhamento dela foi sensacional. Vladimir Palmeira defendeu acaloradamente a luta armada com legítima, lançando mão de seus dons de orador, mas perdeu a votação. O encaminhamento contrário ao texto que advogava a luta armada foi feito pelo Rui Falcão num discurso em que ele defendeu... a legitimidade da luta armada! Incrível! Satisfez às fantasias ideológicas da base do partido no gogó, mas pragmaticamente defendeu um texto que a excluía das estratégias oficialmente contempladas.
    Com o tempo, como todo o discurso ideológico oficial converteu-se em peça de ficção para afagar a alma e os idílios afetivos da militância (um discurso de mentirinha, como gosto de chamá-lo), levar tal "teoria" dos textos oficiais em conta é perda de tempo - que o digam os operadores do mercado financeiro que acreditaram nisto em 2002.
    Por fim, vale lembrar. O que temos no Brasil é um presidencialismo de coalizão e, portanto, o governo não é só de Lula ou do PT, mas é também do PMDB, do PP, do PTB, do PR, do PDT, do PSB, do PC do B... E não há nenhuma teoria que tenha como sair daí, há apenas pragmatismo. Se já seria difícil formar uma teoria no caleidoscópio de esquerda que é o PT, imagine num governo de coalizão tão amplo.
    Mas, apenas para concluir, acho que nada melhor resume o Lula (não necessariamente o PT) do que a resposta que ele deu no final dos anos 70 (acho que foi no programa Vox Populi, da TV Cultura) à pergunta de se ele era comunista. Ele respondeu: "Não, sou torneiro mecânico".
    Jorge Fazendeiro de Oliveira: De uma provocaçãozinha do Marco Aurélio, o Cláudio Couto escreveu um belo texto, sem desmerecer os demais. Provocaçãozinha aqui vai no bom sentido. Como eu ando dizendo, essa sofisticação da oposição vai render bons frutos...
    Adelia Miglievich: Vamos pensando e vamos vendo os frutos ... se o Estado se fortalece ou não com as políticas sociais... quais? Vamos vendo o relacionamento com os países do Eixo Sul-Sul... vamos vendo se a palavra igualdade se repete (inócua ou consistentemente). Ufa!! E os fogos no céu? Terão muitos por aí?
    Ana Dora Partos: Li por ai:" O Estado mudou o PT muito mais do que o PT mudou o Estado...
    Marco Aurélio Nogueira: Beleza de conversa! Excelente comentário do Cláudio. Muita coisa prá pensar. Eu diria, prá manter a bola rolando, que é impossível governar e fazer política sem uma teoria. Ela não precisa, porém, existir nem como algo estruturado, nem como algo totalmente "consciente". Quanto mais clara e estruturada, melhor. Talvez parte dos problemas e dificuldades do PT venha da impossibilidade de se ter uma teoria clara e estruturada, como observou o Cláudio.
    Alexandre Curtiss Alvarenga: Fiquei pensando no assunto e lá pelas tantas cogitei tratar-se de uma discussão na qual o PT é apenas um instante. Ela seria a "velha discussão" da teoria do partido político. Houve um tempo em que ela fez bastante sentido e vários italianos - do PCI - foram traduzidos aqui. O que restaria para os partidos “mais ideológicos” no mundo contemporâneo?
    No concernente ao PT diretamente, acabou de sair do forno este artigo do André Singer - publicado no último número da Novos Estudos Cebrap (onde, aliás, tem também artigo teu, Marco, no dossiê Joaquim Nabuco). Vai o link do artigo, em pdf: http://novosestudos.uol.com.br/acervo/acervo_artigo.asp?idMateria=1408
    É um começo de avaliação sobre 'partidos' - no caso, o PT. Não terminei de ler o artigo, porque a revista chegou no meio do turbilhão de encontros e desencontros de fim de ano, mas me chamou a atenção o “cuidado sociológico” quantitativo, expresso em tabelas e gráficos, mostrando um partido que sofre uma transformação considerável. No início, muito “cacique” para pouco “índio”; passados os anos, transforma-se cada vez mais num partido de massa e, como tal, de limites fluídos ("líquidos"?) e perspectiva esgarçada, dado pluralismo de grupos em seu interior.
    Quando leio coisas assim, penso como seria interessante aplicar os mesmos critérios em pesquisas sobre os outros partidos políticos importantes. Idéias surgem e logo a imaginação demanda explicações. Teorias em andamento...
    Bruno Pinheiro Wanderley Reis: Conversa boa mesmo, Marco! Só vi agora, e tendo a acompanhar Cláudio e Alexandre quanto à viabilidade/pertinência/necessidade de uma teoria no PT. Mas queria acrescentar uma cerejazinha no bolo.
    Acho que, na lata, a resposta é inequivocamente não: não existe mesmo uma teoria política, consistentemente digna do nome, a embasar a ação governamental de Lula e do PT. Mas veja que sou acadêmico, e não militante (o mote do Alex cabe aqui, talvez com sinal trocado). Logo, meu problema não é saber se há teoria (boa ou não) a orientar o PT, e sim se há teoria apta a explicar ou ao menos enquadrar o que se passa ali/aqui. E a meu juízo há sim, boa ciência política, e bem estabelecida, perfeitamente canônica e convencional, a enquadrar analiticamente a experiência, o "caso" do PT e de Lula no Brasil. Só que ela não é marxista (ou só é de uma maneira muuuito diluída), e sequer é teoria política no sentido normativo. Estou pensando na literatura sobre corporativismo (ou "neo" corporativismo, pra ficar do bem), socialdemocracia, Claus Offe etc.
    Mutatis mutandis, cá como lá tivemos partidos com genuína base sindical, outsiders relativamente ao sistema de poder previamente constituído, de origens com fumaças revolucionárias (muito mais lá do que cá, diga-se) que vão sendo progressivamente abandonadas/renegadas ao longo de sua ascensão ao poder.
    A ironia é que o PT, em todas as suas multiplíssimas correntes, sempre renegou ostensivamente a socialdemocracia europeia (pelo menos até o Lula chegar lá). Mas, quer saber? Isso é largamente irrelevante. (E essa constatação não deixa de ser pertinente para um esforço de resposta à tua pergunta...) Se é que a sociologia política serve pra alguma coisa, restrições estruturais limitam o leque de opções efetivamente abertas aos atores em cada época, de maneira em larga medida independente das crenças desses mesmos atores. Esses partidos, todos, lá e cá, ao optarem pela luta eleitoral, domesticaram-se, moveram-se rumo ao centro, fixaram compromissos, deram anéis pra não perderem dedos, renegaram cláusulas programáticas, burocratizaram-se e, enfim, corromperam-se em alguma medida. Michels (em 1911!) que o diga.
    Até institucionalmente a coisa vale: em que pesem as naturais peculiaridades próprias a cada contexto, é irresistível a similaridade entre o corporativismo tripartite europeu e o conselhismo "participativo" petista: ambos os experimentos, em seus respectivos limites, são o patente resultado institucional da ascensão de outsiders ao poder, e da consequente necessidade de abrir novos espaços de influência pra seus aliados sociais, tradicionalmente alijados dos espaços de representação previamente existentes.
    Ao fim e ao cabo, porém, mesmo no meio dessa mixórdia toda, mesmo num perpétuo ajuste adaptativo que parece feito às cegas, se olharmos para os resultados - que diabo! - é preciso reconhecer que todos eles têm apreciáveis resultados redistributivos pra exibir. O que terá dirigido isso? Lá como cá, acredito ter sido menos a clareza doutrinária/programática do que a intensidade do vínculo e a dependência até identitária de cada partido com as organizações sindicais dos trabalhadores, do "andar de baixo" a que se refere com verve o Elio Gaspari. As resoluções dos congressos? Como a narrativa do Cláudio sugere fortemente, acredito que elas sejam antes racionalizações ex-post daquilo que de fato o partido viu-se compelido a fazer do que orientações prévias para a ação.
    Acho, portanto, que o pragmatismo não é problema. Será antes vantagem, se pelo menos a vinculação orgânica com a base se mantiver. A revolução é que vai pro beleléu nessa história toda. O Lênin tinha carradas de razão quando batia duro no trade-unionismo e no cretinismo parlamentar: desse mato, definitivamente, não sai coelho. Ou melhor: não sai o coelho que ele queria tirar do mato. Sai outro.
    E o capitalismo? Vai durar eternamente? Não. Será superado pelos séculos, e um dia os historiadores do futuro vão olhar com curiosidade erudita para o termo usado por nós pra conceituarmos nosso tempo - porque eles vão estar usando outra classificação, que vai-lhes parecer perfeitamente natural. As gerações passadas também não estavam conscientemente engajadas na superação revolucionária do feudalismo pelo capitalismo, e muito menos na superação do escravismo pelo feudalismo, ou do paleolítico pelo neolítico etc. etc. etc...
    Marco Aurélio Nogueira: Muito legal, Bruno! Também acho que o pragmatismo é uma vantagem e uma virtude, especialmente se se pensar na esquerda. O PT demorou a chegar perto disso, e enquanto não o fez perdeu mais do que ganhou. O problema, a meu ver, é que uma entrega cega ao pragmatismo despe o partido (qualquer partido) de identidade programática mais densa e o ameaça de flutuar oportunisticamente. Para a esquerda, isso é grave, porque a esquerda não almeja somente introduzir melhorias na distribuição de renda e na gestão, mas também no modo de pensar o mundo. Claro, pode ser que essa esquerda seja "só minha" e não tenha mais como existir. Se assim for, quanto mais se souber disso melhor. Daí a questão da teoria.
    Vc tem razão, e acho que todos concordam com isso, que temos uma teoria (teorias, na verdade) para explicar a conduta governamental do PT. Estamos até bem servidos nisso. Há também uma "teoria" intra-partidária que justifica o que o PT fez no governo, suas opções, etc. Parte disso está nas resoluções congressuais do partido, parte na intelectualidade mais propriamente partidária. Mas mesmo aqui é algo que deixa a desejar, ou seja, até como justificativa se avança pouco.
     
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