Muitos eleitores votaram em 3 de outubro com a expectativa de um segundo turno que calibrasse o debate eleitoral e reformulasse o modo como os dois principais candidatos ao Palácio do Planalto se apresentaram ao país. Acreditou-se que, com mais tempo de exposição, Dilma e Serra disporiam de uma situação que o primeiro turno inviabilizara. Teriam melhores condições de anunciar e detalhar suas propostas, pondo-as frente a frente num confronto substantivo.No entanto, as três semanas de campanha que se teve até agora não podem ser comemoradas. Tudo nelas foi decepcionante.Serra e Dilma atuaram como se fossem candidatos a gerentes do país. Não contribuíram para que a população compreenda que todo governante é um político, não um técnico ou um pai, nem muito menos a “mãe” a que Lula se referiu recentemente, dedicada a cuidar de seus filhos. Responde pela gestão pública, mas também coordena inúmeras atividades, zela pela Constituição, toma decisões de impacto coletivo e deve liderar a sociedade mediante um projeto que sirva de guia para a cooperação, o bem-estar e a auto-realização de todos. Em vez de assim se apresentarem, Dilma e Serra abusaram da primeira pessoa, prometeram mundos e fundos, falaram em metas e planos, mas pouco esclareceram.Foram arrogantes e presunçosos. Não trataram os eleitores como partícipes da ação governamental, mas como espectadores, aos quais, se tudo der certo, serão distribuídos alguns direitos, benesses e vantagens.Nenhum deles falou em democracia política, por exemplo, a não ser de modo genérico e abstrato. Não se ficou sabendo a que conceito de democracia se associam, que compromissos democráticos concretos estão dispostos a fazer, que tradução prática pretendem dar aos governos democráticos que farão. Elogiaram a democracia e seus valores, é verdade, mas nada além disso. Sequer a luta histórica dos brasileiros pela redemocratização veio à tona, só sendo mencionada como detalhe biográfico dos candidatos.Também não se discutiu política. Nada se falou sobre o sistema político ou sobre como o futuro presidente lidará com o Estado, a administração pública, os direitos, as liberdades, os parlamentares, os adversários, a política externa e as relações internacionais. Ambos mantiveram-se distantes da política: ela seria mais um problema que uma solução. A começar do PT e do PSDB, que mal apareceram. Os candidatos parecem ter concluído que falar em política – mesmo que com P grande – implicaria perda de votos e apoios, que seriam obtidos e consolidados num território alheio à política. Jogaram fora, com isso, excelente oportunidade para ajudar a população a compreender as dificuldades da vida real, a complexidade do ato de governar, a natureza agonística da política. Reduzida, no palco do debate, a troca de acusações, a política se deteriorou ainda mais aos olhos do eleitor.Dilma e Serra são quadros democráticos de qualidade, posicionados em dois pontos distintos mas convergentes da social-democracia. Suas biografias contam a favor deles. Têm preparo técnico para governar o país, sabem do que falam e pesam nas respectivas coligações. Como entender que tenham deixado suas campanhas naufragar num oceano de mediocridade, absurdos e baixarias?Uma explicação fácil, mas não equivocada, é dizer que cederam passivamente aos apelos do marketing, deixaram-se formatar sem reação, ainda que tenham centralizado as decisões de campanha e controlado seus respectivos staffs de comunicação e propaganda. Prova disso foram os debates de que participaram. Assimilados para constranger e difamar o adversário, pressioná-lo ou desequilibrá-lo, foram politicamente desastrosos e eleitoralmente discutíveis.Outra hipótese é que ambas as campanhas se deixaram sugar pelo novo significado que vem sendo assumido pela política: política como sinônimo de gestão e acesso ao poder, por um lado, e como fardo, esperteza e trucagem, por outro. É um significado que brota da era em que vivemos, movida a globalização, consumo, desconstrução social e individualização, na qual tudo ganha dimensão espetacular e por isso necessita aparecer como espetáculo, mais pelo efeito que pelo conteúdo. Guerra de bastidores, pequenas e grandes agressões, artimanhas oportunistas de teor obscurantista e muito protagonismo paternalista dominaram o drama que se buscou encenar, impossibilitando a discussão aprofundada dos importantes temas que foram postos na mesa, do aborto à questão social, do desenvolvimento à reforma política.Porém, por mais que se tenha desperdiçado uma chance de ouro para a renovação da política e do discurso eleitoral, o país que sairá do segundo turno não será necessariamente pior. A sociedade resistiu à política de má qualidade exibida pelas duas campanhas. Vetou a lógica plebiscitária e maniqueísta que se tentou imprimir às eleições, mostrou que sabe pensar além de ganhos imediatos e neutralizou a introdução enviesada de temas morais e religiosos, ainda que nesse último caso também tenha deixado se excitar parcialmente por eles.Ainda teremos uma semana pela frente, e algum fato novo sempre poderá surgir. Mas, salvo acidentes inesperados, a sucessão presidencial será cumprida sem atropelos ou tensões, seja quem for o vencedor. Desse ponto de vista, a sociedade amadureceu. Mostrou ser uma plataforma consistente, que pode se impor. A ruindade do debate, a indigência política das campanhas e as táticas empregadas não impediram que o país enfrentasse com serenidade e espírito cívico o processo eleitoral.A expectativa, agora, é que a mesma sociedade que soube ser superior aos candidatos consiga processar o declínio político que estamos assistindo e, com isso, crie condições para que a política renasça e empreste maior qualidade à democracia. Se algo assim vier a acontecer, os eventuais efeitos colaterais da disputa serão amortecidos e desarmados. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/10/2010, p. A2].
A sociedade superior à política
Posted on segunda-feira, 25 de outubro de 2010 by Editor in