Um ano para Nabuco

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  • quarta-feira, 31 de março de 2010
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  • Joaquim Nabuco morreu em janeiro de 1910, quando ocupava o cargo de embaixador do Brasil em Washington.

    Havia retornado á diplomacia na virada do século, depois de ter ficado no ostracismo com a chegada da República em1889, ele que era monarquista e havia acumulado muitas afinidades com a dinastia dos Bragança e o ritual mais pomposo do parlamentarismo monárquico. Vivera preocupado com o risco de que a República, sem quadros dirigentes bem preparados e tendo de se fixar num território gigantesco e mal povoado, derivasse para algum tipo de tirania ou entregasse o país às oligarquias. Tentou combatê-la, mas não havia ressonância monarquista confiável no país. O golpe de Deodoro da Fonseca o desnorteou. Voltou-se então para si mesmo, dedicando-se a escrever sobre a vida de seu pai e a elaborar suas próprias memórias.

    Dessa fase de quase reclusão resultaram dois grandes livros, Um Estadista do Império e Minha Formação, obrigatórios em qualquer brasiliana que se preze.

    Antes da República, Nabuco apostou todas as fichas no abolicionismo. Fez o melhor diagnóstico dos males e desdobramentos do trabalho escravo. Percebeu que a escravidão deformava a sociedade e proibia o progresso, além de ser indigna e corromper hábitos, pessoas e costumes. Foi radical naquele momento, procurando ir às raízes do problema social brasileiro para abordá-lo de maneira abrangente, mediante um ousado plano de reformas concatenadas (trabalho livre, educação universal, democratização da propriedade da terra, previdência social, federalismo), que não saíram do papel. Acreditou, ingenuamente, que a Monarquia seria salva pelo 13 de Maio, que escravos e pessoas de bem seriam eternamente gratos ao Trono e o apoiariam de modo incondicional. Ficou decepcionado com os acontecimentos e com a forma como se deu o fim da Monarquia, na calada da noite e sem resistência. Acabou saindo de cena, para depois se reconciliar com a República e voltar à cena pública, como diplomata.

    Tive a oportunidade de realizar longa pesquisa sobre a figura e o pensamento de Nabuco, e desde então nunca mais deixei de me interessar por sua trajetória e pelas possibilidades que ela nos oferece de continuar pensando o Brasil. O livro acaba de ser reeditado pela Paz e Terra, com o título de O Encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo.

    Nabuco foi abolicionista, monarquista, deputado, memorialista, historiador, diplomata, escritor talentoso. Protagonizou um período de importantes mudanças no país e no mundo. Sua trajetória foi sinuosa, composta por etapas que se negam mas também se integram e completam. Radical no abolicionismo, tornou-se mais conservador depois da República, mas manteve, por exemplo, a mesmo paixão pelas belas causas, capazes de empolgar uma nação e fazer sentido como pleitos de história universal, a mesma disposição de estilizar as operações em que se envolveu. Viu na libertação dos escravos e, depois, na união das Américas sob direção norte-americana, duas dessas bandeiras. E buscou brigar por elas.

    Sua trajetória e especialmente o modo como se engajou na abolição são um convite precioso para que continuemos a interrogar o Brasil e o comportamento de nossos políticos.

    Nabuco mergulhou na sociedade, em suas raízes, para ver como a organização e o funcionamento do mundo social condicionava todos os passos e âmagos da vida nacional. Percebeu como poucos que a escravidão fornecia o ar que a sociedade respirava, invadia e degradava tudo, fato que a convertia no maior e no principal problema a ser enfrentado. Sem sua eliminação, nada se resolveria de modo satisfatório.

    Deixou um legado raro: a de um político e intelectual de formação liberal que soube descer às catacumbas sociais e “visitar a nação em seu leito de paralítica”. Pôs-se à frente do liberalismo do seu tempo, demonstrando que liberais coerentes podem abraçar a questão social, ou ao menos não se omitir diante dela.

    Nabuco certamente tem algo a nos dizer sobre as questões e os dilemas com que nos debatemos hoje, em nossa República consolidada, antes de tudo sobre o modo como temos praticado (ou não) a reforma social e buscado construir uma sociedade que inclua de fato todos os seus integrantes. Terá sido ele uma exceção, um liberal atípico, ovelha negra de uma família ideológica inteira que flutuou sobre as questões mais candentes da constituição da nacionalidade ou que as considerou exclusivamente en passant, sem o devido empenho e a necessária radicalidade? Ou sua própria sinuosidade reflete à perfeição as oscilações do nosso liberalismo espasmódico, ora sensível à agenda social, ora alheio a ela?

    Como pude escrever na nova edição do meu livro, “a agenda política de Nabuco – a reforma social, a democracia política, a cidadania, o desenvolvimento da nação – permaneceu a demarcar a vida brasileira durante todo o século XX e chega viva ao inicio do século XXI”. Ela nos ajuda a compreender “uma impressionante linha de continuidade histórica, que nos fez chegar ao século XXI com um país economicamente poderoso mas socialmente deplorável, no qual a concentração da riqueza ultrapassa qualquer patamar razoável e a repartição da renda chega a indignar”.

    Nabuco pode nos ajudar, também, a perceber que a política brasileira atual não poderá prescindir dos liberais, mas não avançará se os liberais não ganharem vigor e coerência doutrinária. Se permanecer o liberalismo espasmódico que tem prevalecido em nossa história – ora impetuoso e reformista, ora indiferente e antidemocrático, em alguns momentos traduzido como liberalismo político, em outros aprisionado pelo laissez-faire –, a política como um todo sairá perdendo.

    No mínimo por isso, mas também porque o personagem vale a pena, o ano de 2010, centenário de sua morte, é uma excelente oportunidade para conhecê-lo melhor, continuar investigando sua trajetória sinuosa e decifrando sua personalidade. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/03/2010, p. A2].

     
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