Nunca fomos tão felizes

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  • terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
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  • Volto hoje de férias… (“nao fez falta alguma” — pensam meus inimigos…) e me sinto paralisado diante do tempo, das notícias. Um cansaço me toma: analisar o óbvio… CPIs, roubalheiras, gastos públicos, campanha ilegal, Dilma, stress de Lula, PMDB tomando conta das agências, TCU humilhado, PAC, PAC, PAC… Preciso mudar de repertório. Por isso, tento descobrir, com pinça e lupa, alguma melhoria nesses anos de tantos escândalos e desacertos.
    Desculpem meu otimismo — que é visto com desconfiança (“ahhh… alguma coisa ele está querendo…”) —, mas várias coisas boas já nos aconteceram, apesar do país manipulado por interesses políticos sujos, apesar da lentidão de nossa história torta, que anda como bêbada em volta de nosso destino.
    Mas, da bosta, muitas flores germinam.
    A sociedade civil, na falta de nome melhor, ganhou consciência de sua importância. A sociedade já pensa em “nós” e não em “eles” , os remotos donos do poder. Apesar do populismo em alta, já deixamos de ser “vítimas” e passamos a ser “cúmplices”.
    Já entrou na consciência da população a diferença entre “estatal” e “público”. O Estado esteve sempre dentro de nossa alma, muito mais que os burocratas, muito mais que as companhias estatais, o Estado está dentro de nós, em cada célula de nossa formação. Mas, hoje, já confundimos menos “governo” com “Estado”. A ideia do Estado como responsável por nossas vidas já se dissolve com a modernidade.
    A quebra do Estado brasileiro, no meio dos anos 1980, foi ruim e boa. Deu-nos uma “orfandade” diante do gigante quebrado, mas despertou desejo de autonomia na sociedade.
    Deixou claro que o Estado tem de existir para a sociedade e não o contrário, como ainda é.
    Raiou a noção de responsabilidade civil e fiscal; entrou em nossa consciência de coloniais “exilados em sua própria terra”, a ideia de que, em finanças, não se gasta mais do que se tem. O mesmo vale para a vida social e política: já existe em nossas cabeças a ideia do “possível”, em vez da velha bravata das utopias, que ficou apenas para malucos bolchevistas que ainda dormem nos buracos do poder.
    Ao contrário do simplismo de ver tudo por uma ótica “macro”, generalizante, as crises na economia mundial nos ensinaram a importância dos detalhes “micro”, das pequenas causas que derrubam um universo. É mais importante a competência indutiva que as utopias dedutivas. Uns garotos comedores de hambúrguer de Wall Street podem arrebentar o capitalismo, com mais força que os velhos leninistas.
    Sabemos que capital tem de ter limites.
    Resta saber como.
    Diminuiu a divisão ideológica entre direita e esquerda. Agora é pragmatismo e eficiência.
    Mais importante que apontar causas para a pobreza é descobrir formas de combatê-la. O horror do Haiti talvez ensine (um pouco) que a miséria brutal não pode conviver com os satélites dançando entre os anéis de Saturno. Injustiça social dá prejuízo financeiro. O sonho de uma grande economia sem sociedade acabou, pois uma gigantesca fusão corporativa final excluiria a vida em nome do mercado. As corporações descobrem que a justiça social é uma necessidade de mercado.
    A globalização da economia é um bonde carrregado de problemas novos, que pode nos jogar num vazio de excluídos. Mas tem a vantagem de nos colocar mais perto da verdade nacional, rompendo as paredes da “taba imaginária”, uma ilha ibérica de esperança vã.
    A globalização nos trouxe o contato com métodos de gestão e administração mais anglosaxônicos, trouxe dinamismo para empresas, trouxe nova ética empresarial, nova ética contábil. Hoje, já podemos pensar em um novo nacionalismo sem cair nos antigos esquematismos.
    A tal “mão invisível do mercado” pode nos dar bananas, claro. Mas o conceito de “mercado” dinamiza a autorregulação da vida social e econômica do país. “Mercado” como termômetro dos perigos da injustiça, mas também como sensor dos desejos sociais; “mercado” como amenizador de certezas burras; “Mercado” como relativizador de um poder público totalitário. Hoje, o inimigo principal não é mais a “burguesia” gorda e fumando charuto; o inimigo é a incompetência estatal e simbioses corruptas com um empresariado dependente.
    Já entendemos que a ideia de “solução” para o país é um mito. Nunca se chega a uma “solução” histórica. Seria o tal “fim” do Fukuyama, que tantos filósofos amam em segredo.
    E, pelo avesso, a ideia deprimida de “insolubilidade” é também um pretexto reacionário.
    Podemos, no máximo, limpar caminhos, sanear processos. A ideia de “solução” é substituída pela de “processo”.
    A sordidez nacional que a democracia exibe, a corrupção, a falta de vergonha política, a violência, todas as falhas boçais do sistema sugerem que a contrapartida para combatêlas deveriam ser medidas boçais, violentas.
    Só que, para desarmar a eterna bomba suja nacional, há que ter paciência e aceitar complexidades.
    Radicalidade não é apelar para a ignorância. Grossura contra grossura se anulam mutuamente.
    Já percebemos que os problemas do Brasil são muito mais complicados do que uma mera questão de injustica social, a ser resolvida apenas pela dinâmica de uma “luta de classes”.
    A injustica é endêmica e de tal modo paralisante que inviabiliza até um embate de classes. A má distribuição de renda não é causa; é consequência de uma secular estrutura autocrática, de um Estado patrimonialista que tem de ser reformado.
    Já sabemos que o Brasil é este país que está aí, com suas deficiências e políticos atrasados.
    Não há uma outra nação. Mudar o país tem de ser “por dentro”, e não uma intervenção mágica, ditatorial ou golpista.
    Ou seja, alegrai-vos otimistas. Há luz ao fim desse túnel imundo. Com suas alianças espúrias e com o método “contemporâneo” e a cínica praticidade com que Lula governou, enxergamos o país como “nunca antes”.
    As duas grandes obras de Lula: por conciliador, impediu o poder dos jacobinos bolchevistas e, com suas alianças, mostrou que o Brasil é só um grande PMDB. Esta é nossa verdade.


    Arnaldo Jabor
     
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